José Santana Filho é escritor, médico e psicoterapeuta, autor de Flor de Algodão.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante anos lamentei ter de acordar cedo, e, feito a maioria das pessoas, quase sempre precisei, não apenas acordar, mas sair da cama. Primeiro para estudar, depois, trabalhar. Nos últimos tempos isso mudou por completo, descobri as manhãs: “a juventude do dia”, escrevi então. Tornou-se a parte do dia que mais me agrada, a começar pela luz. Faço uns alongamentos de frente para a janela aberta, bato um papo com Bento, nosso cachorro, e vou para o café da manhã. Se não tenho compromisso de trabalho (diminuí minha carga horária profissional, em função da escrita), sento na biblioteca, que também funciona como consultório de psicoterapia, abro o computador, dou uma sapeada nos e-mails, o Facebook, e entro no arquivo da história que estou escrevendo no momento. Se houver disponibilidade, fico por ali até a hora do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã. Naquela zona flutuante entre sono e vigília ocorre uma percepção do mundo quase onírica, ainda não inteiramente intermediada pela razão. Isso é bom, porque não acredito em escrita (em arte) sem liberdade interna, arrebatamento, permissividade. Além disso, esse momento quase sempre se acompanha do vigor físico necessário à sua execução. Costumo acordar bem disposto e de bom humor.
Não tenho ritual de preparação para a escrita, só preciso de recolhimento e silêncio, ainda que relativo. Às vezes deixo algum som de fundo, talvez uma ópera, um cântico sacro ou outro tipo de música distante do meu dia-a-dia, capaz de me fazer companhia, mas não de me dispersar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo praticamente todos os dias de segunda à sexta, incluindo aí as reescritas, elas nunca têm hora para acontecer. Se estou com um projeto em andamento, o notebook dorme no chão, ao lado da cama. Não hesito em abrir o arquivo e mexer nele, seja a hora que for. Não me dou bem com metas em literatura. Talvez por ser uma atividade paralela (minha atividade formal é a medicina), ainda tem sido possível mantê-la descompromissada de qualquer coisa que não minha demanda pessoal. Recentemente decidi participar de um concurso de contos, e me impus certa carga de trabalho em função das exigências do edital, número de páginas, prazo de entrega, etc. Não gostei. Evidente que a escrita é, sobretudo, trabalho, entretanto este compromisso formal, aliado à escassez de tempo, à obrigação de criar, de certa maneira me indispôs com a própria criação, e isso, para minha surpresa, me emperrou. Acabei perdendo o prazo de inscrição.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ainda não escrevi nada que exigisse uma pesquisa acadêmica, algo longo ou formal. Meu romance mais recente, Flor de Algodão, abre com o pouso forçado de um teco-teco, em função de uma pane no motor. Precisei me informar sobre o que poderia ter acontecido com ele, do ponto de vista mecânico. Também quis me inteirar sobre santa Margarida, a padroeira da cidade, e descobri uma imolação tão impressionante que resolvi incluir na narrativa. Mas são pesquisas assim, ligeiras, em nada indispensáveis para a estrutura da história. Meus dois últimos romances se passam em pequenas cidades do interior, vivência que tive na infância, acho que sei do que estou falando. Quando quero relembrar algum procedimento ou costume destas regiões úteis à história recorro a meus pais, meu irmão mais velho, em especial no que se refere aos nomes próprios, porque eles impressionavam o menino curioso que fui, e hoje, às vezes me escapam. Parece superficial, mas me ajuda a esquadrinhar o todo, insuflando-lhe a alma sem a qual a narrativa não se impõe. Alguns leitores se surpreendem com os nomes de alguns personagens, me atribuindo uma criatividade indevida. Dona Chuta, Angústia, João Mocinha, Caxixé, Esperança, e mesmo Morrido de Pouco, dono da funerária de Flor de Algodão, foram pessoas com as quais convivi naquele período e me fascinavam, pelo que sugeriam. Outras vezes, um simples comentário deflagra tudo. Uma tia comentou, em função da longevidade da família de minha mãe, que minha bisavó, quase centenária, estava sempre a morrer, mas quando lhe botavam a vela na mão e chamavam correndo o padre para a extrema-unção, ela respondia as orações lá de dentro dos lençóis, apagava a vela e dizia: que marmota é essa? Isso não só virou o primeiro parágrafo de A casa das marionetes, como me apresentou a casa, os habitantes, a comida, os animais de cria, os interstícios, conduzindo todo o resto.
Até aqui, não comecei qualquer história a partir de anotações prévias. Tenho apenas uma cena inicial que vai ganhando corpo, produzindo desdobramentos que nunca sei onde vão dar. Preciso escrever para descobrir o que está acontecendo, inclusive o que já aconteceu por ali, antes de eu chegar. Neste sentido, sou de fato o meu primeiro leitor, gosto de ser surpreendido pelos acontecimentos superpostos. Esta é uma parte do processo que me diverte e muitas vezes me emociona. Escrever também é fazer emergir estes naufrágios internalizados.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tendo a procrastinar, matutando a história quando deveria a estar escrevendo, falando dela além do necessário, mas, como disse, não costumo me cobrar excessivamente nesta área. Às vezes, mesmo ausente da tela ou do papel, o universo no qual se está inserido vai sendo montado sem que se perceba, de certa forma nos impregna, fica a espreita, chega a exigir passagem, mas não tenho pressa. Não há ninguém em desespero por uma mínima linha escrita por mim, nem recebi qualquer adiantamento financeiro ao qual precisasse atender, portanto somos eu e o cavalo e a estrada e o silêncio, o caminho, enfim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito e releio com obstinação. Mesmo que esteja na página 150, por exemplo, preciso voltar ao começo quase que a cada retomada da escrita. Ainda que não leia na íntegra, é necessário me reinserir na narrativa, aproveitando para refazer alguma coisa. Não posso estar lá na frente sabendo que vou deixando arestas, das quais tenho conhecimento, pelo caminho. Evidente que deixo, mas não consigo ter esta consciência e prosseguir escrevendo como se não soubesse, argumentando “depois eu volto lá”. Sei que este é apenas um processo pessoal, e que há circunstâncias em que seria melhor avançar, até mesmo concluir a obra para não ficar emperrado, o que pode paralisar um texto por tempo demais, talvez o inviabilizar, como já aconteceu comigo, inclusive. Entretanto, ainda me sinto melhor indo e voltando na narrativa, deixando atrás um terreno razoavelmente terraplanado. Depois vou perceber que a terraplanagem precisa de reparos, pode estar precária, talvez excessiva, vou descobrir que ainda há muito onde bolinar, mas este é outro momento, aquele que só termina quando o editor decreta definitivo: “a gráfica não pode esperar mais um dia sequer”.
Quanto a mostrar o trabalho: faço parte de um grupo de literatura, o Clube das Três, onde trocamos impressões sobre a produção de cada um. Mesmo que estejamos um tanto dispersados nos últimos tempos, são pessoas com as quais mantenho ótima comunicação, todas credenciadas em sua voz, e às quais ouço com atenção. Tenho uma amiga, que não tem nada a ver com literatura, para quem eu lia quinzenalmente o desenrolar de Flor de Algodão. Gosto de, nesta fase, ter leitores com uma visão digamos mais formal, e alguém que tenha o hábito esporádico de ler, movido apenas pelo interesse por aquilo ali, do tipo encheu, deixa pra lá. Uma das grandes questões que me imponho diante do texto é: isso teria interesse para alguém além de mim? Por que eu tornaria essa experiência pública? A troco de quê isso precisa sair da minha gaveta? Para mim, esta é a pergunta fundamental.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Apesar de ter cadernos em casa e manter um bloco de anotações na bolsa, os rascunhos são escritos no computador. No bloco e cadernos, as ideias súbitas ou a informação ouvida no rádio do carro, a frase de uma canção, o comentário irreverente de um amigo, certa sensação ainda indefinida, uma palavra orelhada, mas não propriamente rascunhos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tenho um olhar atraído pelos subtextos, as nuances, os avessos e as entrelinhas. O exercício da medicina, em especial a psicoterapia, contribuiu para esta percepção. Na hora de criar, não tenho medo de viajar, transgredir, subverter racionalidades, deixo a imaginação passear à vontade. Trabalhei nos últimos quatorze anos em um posto médico de geriatria, verdadeiro celeiro para o escritor, o médico e o cidadão. É necessário ampliar o repertório pessoal, vamos precisar dele. Leitura é determinante, e nos últimos anos retomei este hábito, quase obsessivo na infância e começo da juventude. Se eu tivesse que apontar o mote da minha escrita, diria: a miséria que nos acomete a todos, os humanos. Estou atento a ela. Embora submisso, a denuncio sempre que posso. Mesmo quando escrevo com humor, quando privilegio a lírica da narrativa, ou conto alguma historinha de aparente “era uma vez”, estou me referindo a esse desamparo essencial, tentando perceber até onde somos capazes de ir, o que somos capazes de aprontar a partir dele. Quando conseguimos alguma comunicação, nos sentimos, mesmo que momentaneamente, livres da solidão absoluta a qual estamos submetidos pelas digitais. E proporcionamos o mesmo do lado de lá.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando redescobri a escrita (escrevia muito no começo da juventude), fui praticamente “possuído” por ela. Não sabia que tinha tanta coisa represada aqui dentro. Deu-se um jorro de ideias e sensações à procura de palavras escritas. Essa demanda continua grande, porém estamos mais pareados os dois. Felizmente, logo me dispus a ser honesto com a escrita, portanto não tenho feito nada que considere responsável por desvirtuar esse propósito inicial.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de atualizar o meu primeiro livro O rio que corre estrelas, e publicar uma edição ilustrada. Uma ilustração que traduzisse a delicadeza e verdade daqueles fragmentos de infância. Mas isto não é um projeto que dependa apenas de mim, precisaria ter uma editora interessada, e os tempos não estão para chá nos jardins da marquesa, portanto não se trata de um projeto de fato exequível no momento. Aliás, não chega a ser um projeto, talvez um afeto.
Acho que estamos sempre tentando escrever o livro que gostaríamos de ler. Como “não há nada de novo sob o sol”, e só devem existir dois ou três enredos de fato originais, é preciso dar a nossa versão dos fatos.