José Rodrigo Rodriguez é professor do programa de pós-graduação em direito da UNISINOS e pesquisador permanente do CEBRAP (Núcleo Direito e Democracia). Ganhador do Prêmio Jabuti de melhor livro jurídico por Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro) (FGV, 2013).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim, um ritual sagrado e imprescindível. Todos os dias em que eu acordo de manhã, assim, bem cedo, eu costumo enviar as minhas boas energias para a mamãe dos responsáveis por me fazerem acordar a essa hora. Além disso, eu também costumo chupar um limão, assim, em jejum, sem nada no estômago. O limão é um arremate muito importante para este começo de dia, afinal, depois de passar por tudo isso logo de madrugada, tudo o que vier depois será lucro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ultimamente eu acabo trabalhando bem nos dias em que não preciso dar aula ou preparar aula. Já trabalhei melhor durante a noite, mas ultimamente isso tem variado muito. Tenho escrito muito bem durante o dia e sempre com a TV ligada, mas sem som. Gosto de ver o mundo se movendo em desarmonia à minha volta. Acho que isso me estimula a buscar organizar as coisas.
Eu não tenho ritual algum para começar a escrever, talvez uma mania. Sempre que vou escrever eu alcanço o meu estojo de canetas e lapiseiras, um caderno ou bloco de anotações, e deixo tudo ali, bem perto de mim, a despeito de escrever sempre no computador.
Não sei bem porque eu faço isso, mas acho que é para que elas, as canetas e as lapiseiras, sintam menos o peso da sua inutilidade crescente. Deve ser triste perder assim a sua função social, não? Capitalismo, destruição criativa, enfim… Mais ou menos como está acontecendo com a velha dogmática jurídica, ao menos em suas feições tradicionais. Pobre pandectística, de tão saudosa memória…
Por essa mesma razão, para que ninguém fique triste, eu procuro nunca deixar as canetas e as lapiseiras sozinhas: sempre formo pares ou trios e as deixo juntas por alguns meses. Ponho todas elas para namorar ou simplesmente para bater um papo sobre a vida e sobre o destino, durante o longo tempo em que se dedicarão a fazer quase nada. De vez em quando eu mudo as duplas e os trios, afinal, ninguém aguenta ficar junto de ninguém vinte e quatro horas por dia, por mais que haja afeto e amor sobrando.
Como é o seu processo de escrita? Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar?
Eu só consigo escrever quando o texto está transbordando de mim, digamos assim, quando ele se mostra absolutamente necessário, incômodo. Então eu escrevo para me livrar do texto, para ver se ele sai logo de dentro de mim, se ele para de encher a minha paciência e me deixa ver televisão, bater um papo com alguém ou chupar limão, atividades muito mais nobres.
Momentos assim só acontecem quando eu me sinto saturado de leitura e de reflexão: eu preciso passar por um período, longo ou concentrado, de imersão em leituras e reflexões variadas para conseguir elaborar um argumento claro. É apenas depois de muita maturação, no momento em que consigo formular o argumento central do texto; no momento em que eu consigo dizer o que eu desejo escrever em três ou quatro frases bem simples; simples a ponto de qualquer idiota conseguir entender, especialmente o idiota que mora dentro de mim; é nesse momento que eu consigo sentar e escrever sem fazer muito esforço.
Mas quando eu começo a escrever, aí sim tenho metas diárias. Não existe escrita profissional sem prazo. Feliz ou infelizmente, escrevemos hoje para prestar conta ao governo e às nossas instituições, em grande parte financiadas por dinheiro público, mesmo as privadas. Esse modelo de financiamento democratizou o acesso à atividade intelectual. Os grandes intelectuais do século XIX, que supostamente tinham todo o tempo do mundo para ler e escrever sem a necessidade de fazer relatórios para agências de fomento, viviam do dinheiro de família. Intelectuais mais pobres passavam grandes dificuldades. É só ler sobre a vida de Marx e ver a quantidade de obras inacabadas que ele deixou.
Seria genial, mas é difícil imaginar, que o Estado ou o poder privado possa reproduzir para nós, na periferia do capitalismo, as condições de trabalho da grande burguesia do século XIX. Não devemos nos deixar levar por esta miragem sedutora, ao menos nós, pesquisadores e pesquisadoras que não são herdeiros ou herdeiras de fortunas. Ser rico significa enfrentar menos limites, ao menos os limites da sobrevivência digna. A melhor coisa a fazer é lidar com essas limitações e exigências pragmaticamente e fazê-las trabalhar a nosso favor.
Pois de um outro ponto de vista, os prazos são os maiores amigos dos escritores e das escritoras. Eles ajudam a organizar o tempo e até definir o gênero e a extensão do texto que iremos escrever. Não adianta querer escrever um livro de 400 páginas se você tem apenas um mês, simples assim. A menos que você organize seu projeto de livro em tarefas menores e as vá executando ao longo do tempo. Particularmente, é muito ruim para o meu processo de escrita ficar completamente solto, sem data de entrega à vista.
Se eu não tiver um prazo claro e alguém para me cobrar, uma instituição de financiamento, as exigências de produção do meu PPG, afinal, desemprego, corte de bolsa, de adicional produtividade e descadastramento da pós-graduação são excelentes incentivos para a escrita, eu invento um prazo e tento cobrar de mim mesmo.
Caso eu não consiga ser suficientemente rígido comigo mesmo, pois, é claro, às vezes eu tapeio a mim mesmo ou acabo não me levando lá muito a sério, sempre posso pedir para a minha mãe me ligar para cobrar o texto, ligar de três em três dias ameaçando me matar e se matar caso eu não termine de escrever; ligar perguntando o que será que ela fez de ruim para Deus para ter dado a luz a um filho assim, vagabundo. Normalmente funciona muito bem. Minha mãe é muito boa nisso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não existe expectativa nenhuma em relação ao que eu escrevo, eu acho, e projetos longos só fazem sentido se o argumento que eu consegui formular for difícil de demonstrar. Neste caso, ele precisa ser dividido em passos mais curtos, em algumas etapas, portanto, cada etapa se torna um projeto curto: não vejo muito problema nisso.
Mas entenda o seguinte, nós vivemos em um país pouco letrado, com um público universitário pequeno e um público de pesquisadores e pesquisadoras menor ainda. Com a PEC, ainda por cima, a coisa tende a piorar: os jovens vão começar a torcer para que os mais velhos morram ou fiquem muito doentes para que aconteçam novas contratações nas Universidades, como acontecia, aliás, na época em que eu fiz minha iniciação científica.
Enfim, não há um clamor popular, uma demanda urgente, um desejo louco e desvairado das massas pelos meus textos. Na verdade, meus textos não importam lá grande coisa, ainda mais por serem escritos em português. São bons textos; sem falsa modéstia, acho que alguns são até ótimos, mas não é bem esse o meu assunto.
Para completar, sabemos que nossos colegas brasileiros e brasileiras leem muito pouco o que os demais escrevem, basta olhar as bibliografias, especialmente no campo da teoria. Bem, aqui eu preciso ser justo: eu, particularmente, não posso reclamar dos meus colegas e de seus alunos e alunas, especialmente do direito. Por alguma misteriosa razão, eu tenho sido lido por uma certa quantidade de pessoas, o que não deixa de me espantar sempre e me fazer sentir muita gratidão. Sem ironia alguma.
Em razão disso tudo, inclusive do meu pessimismo crônico, eu não me preocupo muito com expectativas, decepções, esse tipo de coisa. Adoro ser lido, claro, mas o ponto não é esse. É preciso ter vontade de escrever, ter o desejo de escrever e gostar do processo. Aquela atividade maçante de sentar na frente da tela e batucar no teclado, ela tem que fazer sentido para mim. E fazer sentido como quando alguém resolve dançar sozinho, em casa, no escuro, pelado ou vestido, pouco importa, mas com as redes sociais desligadas, é claro.
Enfim, escrever se parece muito com dançar sozinho. Deve ser um momento de prazer solitário, deve fazer sentido em si mesmo, como atividade física e intelectual. O que virá depois, isso eu não sei, não tenho como saber. E, em alguma medida, pouco me importa: o texto já foi escrito, ele já me ajudou a lidar com a angústia de entender o mundo. Por isso mesmo, em grande parte, isso basta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso quantas vezes puder, até o dia final da entrega. Só paro de revisar quanto não tem mais jeito: tenho que acabar, tenho que entregar, bateu o gongo. Acho que já fiz umas trinta versões de um mesmo texto, entre revisões de trechos, incorporação de sugestões e releituras gerais.
Procuro circular meus textos por uma lista grande de amigos, parentes, colegas, alunos e ex-alunos. Nem todos têm tempo, nem todos conseguem ler, mas sempre consigo umas três ou quatro leituras. Além disso, aproveito todas as oportunidades de debate que eu possa encontrar, reuniões de orientandos, congressos, seminários. O texto sempre sai transformado desses debates. Eu não consigo publicar mais nada sem submeter meu texto mais de uma ou duas vezes a algum tipo de discussão.
A palavra de não especialistas é preciosa para mim, pois ela me ajuda a tornar as mediações do texto mais claras e a retirar dele qualquer tipo de jargão desnecessário. Eu sempre faço um esforço grande para que meu texto seja compreensível em si mesmo.
Procuro explicar ao leitor, à leitora, no limite do possível, todos os pressupostos e referências com os quais o texto trabalha para que nada soe como mero argumento de autoridade. Tenho tentado evitar ao máximo as notas de rodapé com o mesmo objetivo. Como um estudioso e crítico do argumento de autoridade no direito, basta ver o meu “Como decidem as Cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro)”, eu não poderia agir diferente.
Enfim, gosto muito de ser lido por pessoas fora da minha área, pois fico muito satisfeito quando os meus textos conseguem se comunicar com qualquer pessoa minimamente letrada. Como são alguns de meus amigos e amigas, aliás, minimamente letrados. Mas todos muito bons de coração, eu garanto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Adoraria escrever à mão de novo até para não deixar as minhas queridas canetas e lapiseiras tristes, mas eu não consigo mais. Os meus dedos doem, não estou mais acostumado. No máximo, escrevo à mão as ideias centrais do texto, suas divisões principais, ainda durante a sua concepção, antes de sentar para escrever de fato. Adoraria poder ditar apenas, não precisar mais digitar, ou quem sabe apenas pensar com foco e o texto sair sendo escrito por um aparato tecnológico qualquer. Quanto mais tecnologia melhor, gosto muito de inovações. Quanto mais fácil escrever e, principalmente, revisar, melhor o resultado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No campo acadêmico, nada surge do nada. As ideias para escrever sempre nascem do diálogo com uma certa tradição, um diálogo com textos mais antigos ou textos de nossos contemporâneos. Quando estamos no interior de uma tradição, começamos a perceber lacunas, podemos tentar resolver novos problemas com formulações teóricas já conhecidas ou, ainda, podemos reformar ou criar novos conceitos em função das falhas do aparelho conceitual que já dominamos. É assim que funciona.
É possível observar momentos de criação conceitual em toda a história da teoria, por exemplo, na criação do conceito de “coisificação” por Lukács a partir da ideia marxista de “fetichismo da mercadoria” combinada como o conceito de “racionalização” weberiano. Porque será que Lukács fez este movimento? Porque a ideia de fetichismo não dava conta do mundo que ele estava procurando compreender? Como foi possível combinar Marx e Weber em uma matriz marxista de forma convincente, dois pensamentos, a princípio, tão heterogêneos? Estudar momentos de criatividade como este nos ajudam a ter uma ideia de como é possível tentar construções conceituais semelhantes.
Sempre que eu ouço alguém citar, na mesma frase, como se fizessem parte do mesmo campo, por exemplo, Judith Butler e Martha Nussbaum ou Heidegger e Adorno eu penso comigo: essa pessoa vai demorar muito para escrever algo razoável ou vai escrever algo bem ruim. Não é impossível combinar autores, mas é necessária grande experiência e perícia para ser capaz de algo assim, habilidade que, normalmente, não é possível desenvolver durante um doutorado.
Um dos maiores inimigos da criatividade e da escrita é o chamado “demônio da analogia”, ou, na versão de Tim Maia, “tudo é tudo e nada é nada”, ou seja, tudo tem a ver com tudo e nada tem a ver com nada. Não há criatividade no vácuo ou no espaço que separa Hesíodo do último filósofo ou filósofa da moda. Neste último caso, no limite, será possível testemunhar pessoas que escrevem tomos e tomos da mais pura trivialidade.
Criatividade requer contenção, limite; requer um campo limitado, restrito, de ideias e conceitos, os quais poderão ser aplicados, reformados ou transformados, conforme a necessidade e a criatividade do autor ou autora em seu esforço para compreender o seu tempo. A indeterminação e o “demônio da analogia” matam a escrita, assim como a ausência de cobrança e de prazos.
Para conseguir pensar coisas novas é muito importante evitar saber demais e cultivar, sempre que possível, a própria ignorância e idiotia. O excesso de erudição também mata a escrita. É fácil perceber que alguém que imagine saber tudo, alguém que tenha certeza de que não há mais nada a ser dito será, evidentemente, incapaz de escrever qualquer coisa.
Por isso mesmo, é muito importante estudar as teorias em função de suas falhas, de sua incapacidade de explicar a totalidade do mundo, de seus pontos falhos e obscuros, e eles sempre existem. Também é fundamental estudar assuntos novos sempre que possível e procurar abarcar campos inéditos com a teoria que já sabemos. Só escreve de forma criativa quem sente que está perdido, desorientado, confuso e precisa organizar o caos que se desenrola diante de seus olhos.
Para manter ativo este estado de desorientação, eu preciso estar sempre olhando para o mundo. Como o “mundo” não existe como fato bruto, é preciso olhar sempre para os demais campos de estudo, para a arte, para a literatura. Sempre me ajuda ler textos que reconstroem o mundo de maneira diferente, ressaltando outros aspectos e problemas. Ajuda a manter a desorientação e ajuda a aumentar meu repertório, meus recursos de escrita.
Quanto mais espécies de texto se lê, pouco importa se de autoria de grandes autores e autoras ou não, mais recursos de escrita acumulamos, o que torna mais fácil o trabalho de escrever em registros variados, de artigo de jornal a texto acadêmico, passando por material didático e relatórios de pesquisa.
É muito fácil, mas muito perigoso, mergulhar tão fundo em um grande autor ou autora a ponto de começar a imaginar que ele explicou quase tudo, sem questionar os seus pressupostos. Afinal, em seus textos as informações e argumentos estão sempre tão organizados e o mundo é sempre tão caótico!
Encontrar uma suposta ordem no mundo gera certa paz de espírito, uma paz que pode nos levar a defender uma teoria ou autor furiosamente, mesmo contra as evidências, especialmente em momentos de fragilidade emocional ou de necessidade de afirmação de autoridade. É preciso ter muito cuidado com isso. Pesquisar e escrever também é gostar de sofrer. O saber é um caminho de sofrimento, como diz Hegel, no qual, à falta da síntese final do Saber Absoluto, perdemos tanto quanto ganhamos.
Por isso mesmo, é muito comum alguns estudiosos e estudiosas, e eu não estou livre desse risco, ficarem magoados, ressentidos ou com raiva mesmo diante de alguém que procura demonstrar como determinado autor não dá conta de um problema qualquer. Muitas vezes, basta uma ironia para que a raiva apareça. Na verdade, toda teoria tem falhas e envelhece, nenhuma delas está livre disso.
Mas seja como for, questionar uma ideia ou teoria pode perturbar a nossa paz de espírito, além de ameaçar nossa autoridade, caso ela tenha sido toda construída com apoio em uma certa versão de um determinado pensador ou pensadora.
Portanto, pesquisar e escrever com criatividade e alegria também depende de nossa coragem e habilidade de enfrentar a autoridade alheia, claro, de preferência, sempre com cuidado e educação, pois estamos lidando com experiências existenciais profundas e haverá reação, não tenha dúvidas; não seja ingênuo ou ingênua.
Além disso, como eu já disse, escrever e pesquisar também exige gostar de sofrer, saber abrir mão da própria autoridade ou, melhor ainda, no meu caso, exige a capacidade de fundar a minha autoridade intelectual em saber perguntar; na capacidade de elaborar perguntas inéditas que ampliem as fronteiras do que ainda não sabemos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não acho que muita coisa tenha mudado, eu me sinto contemporâneo de Hesíodo, de Heráclito, de Safo. Escrever sempre será um processo de simplificação do mundo, uma reconstrução interessada da realidade de acordo com um certo código, comum a uma determinada comunidade.
Escrever é um ordenar, entre pausas, dos argumentos e imagens que resultam desta reconstrução para criar um objeto físico sem graça nenhuma, letras impressas em uma folha de papel ou expressas em uma tela de computador as quais, ao serem lidas, criam a sensação de andamento, de ritmo dos raciocínios e das narrativas, para provocar efeitos reais sobre as pessoas, efeitos racionais ou não, como faz uma canção.
Normalmente, primeira expressão do que pensamos é a pior. Para mim, escrever não tem nada a ver com a mera expressão do pensamento e não tem necessariamente a ver com as qualidades pessoais ou retóricas da pessoa. Há quem seja sincero, autêntico, ético, interessante, convincente, eloquente, mas escreva muito, mas muito mal. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Escrever, ao menos bons textos, é algo radicalmente artificial. É um trabalho organizado, planejado, intensivo e exigente de organização e formalização do que alguém pensa ou sente. Há pouca coisa de espontâneo na escrita, especialmente na escrita acadêmica. Claro, é possível imprimir um ar de naturalidade e de espontaneidade a um texto, mas isso requer um trabalho muito intenso. É quase impossível ficar bom na primeira versão.
Além disso, escrever é afetar, mexer com os humores, com os neurônios, interpelar. Escrever é sempre uma provocação, no limite, física. Afinal, ler movimenta quimicamente o cérebro, causando indignação, alegria, raiva, medo, tranquilidade, cansaço. Escrever é uma atividade semelhante a compor letra e melodia. É um trabalho minucioso, de relojoeiro, que procura gerar efeitos racionais e emocionais com premeditação e o máximo de precisão.
Por isso mesmo, é sempre útil imaginar, sonhar, como o tipo de leitor e leitora que você deseja atingir, seja para seduzir, seja para desafiar. Saborear antecipadamente as eventuais reações das pessoas que eu espero que leiam o meu texto ajuda no processo de escrita. Como eu já disse aqui, em grande parte, o mero ato de escrever se basta. No entanto, se ele fosse fechado em si mesmo, seria o caso de não publicar nada, certo?
No meu caso, eu escolho pessoas bem concretas, todas com nome e sobrenome. Algumas delas constam das minhas dedicatórias, outras não, é claro, especialmente as que eu pretendi desafiar em um tom mais agressivo.
Sobre a minha tese, eu diria a mim mesmo, alguns anos e alguns quilos atrás: peça demissão desse emprego, você não vai ficar para sempre desempregado nessa idade, não tenha medo, vá escrever essa tese fora do Brasil! Peruíbe não!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Difícil responder a essas perguntas. Para ficar no campo acadêmico, acho que eu gostaria de ler uma história das constituições brasileiras que analisasse direito, política e sociedade em conjunto. Existe uma, escrita por um dos intelectuais mais “pop” do momento, mas ela contém erros crassos, vexaminosos, como aliás mostrou o professor Virgílio Afonso da Silva em uma resenha arrasadora na Revista Novos Estudos CEBRAP. Está faltando algo assim, também uma análise, do ponto de vista jurídico, dos vários regimes totalitários e autoritários ao redor do mundo.
Acho espantoso que, mesmo em face das maiores arbitrariedades e atrocidades, mesmo em face do autoritarismo estrutural da sociedade brasileira, a linguagem do direito sempre tenha estado presente, ao menos durante o século XX. Aparentemente, o poder não se apresenta mais a nu. Ele é incapaz de atuar sem se mostrar como poder jurídico.
O poder se mostra arbitrário, violento, agressivo, mas não fora do direito e sim pervertendo-o. Assim, o direito permanece atuante na condição, por assim dizer, de “aparência necessária” da violência a qual, justamente por ser necessária, deixa de funcionar como mera aparência. Mesmo o poder privado, por mais violento que ele se revele, muitas vezes, pretende ser reconhecido como fundado em um contrato válido.
Procuro mostrar tudo isso em meus textos mais recentes que tratam da perversão do direito. Não acredito que Judith Butler e Giorgio Agamben por exemplo, que se debruçaram sobre este tipo de fenômeno, tenham percebido esse ponto em específico: o direito não vem depois do poder ou depois do fato social; ainda, ele não vem depois do conflito, mas nasce junto deles, é contemporâneo de todos eles.
Como, aliás, mostrou Ruy Fausto, no campo marxista, em seu Marx: Lógica & Política, volume II: o direito não está na superestrutura, mas na infraestrutura: para a mercadoria existir na condição de mercadoria e circular, diz Fausto, ela precisa ser apropriada, ou seja, qualificada como “direito de propriedade”.
Acredito que haja uma correção a se fazer quanto a esse ponto, uma correção no que diz respeito ao papel do direito no ocidente, que pode modificar o nosso modo de compreender a relação entre direito, política e sociedade, tema ao qual tenho me dedicado nos últimos anos. Bem, acho que talvez eu precise escrever tudo isso de forma mais organizada: eis o projeto novo, talvez, pode ser. Vamos ver como ele se encaminha nos próximos anos.