José Ricardo Ferreira Cunha é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não gosto de acordar cedo, contudo a vida inteira precisei fazê-lo… Em geral acordo em torno das seis horas para levar meus filhos para a escola (mesmo eles não sendo mais crianças…). Depois de deixá-los na escola, costumo voltar para casa e iniciar meu dia de trabalho. Alguns períodos eu programo minhas disciplinas na Universidade para o primeiro tempo de aula (7h), mas isso não é muito comum. Dia que eventualmente não levo meus filhos para a escola, costumo acordar às 8h e iniciar os trabalhos. Nunca começo o dia diretamente na produção de um texto. Sempre tenho pequenas tarefas que preciso fazer primeiro. A vida na Universidade não é só ler e escrever. Temos também atividades de ensino, extensão e, muitas vezes, de gestão acadêmica. Tudo isso toma tempo… em geral, mais tempo do que gostaríamos de dispor. Mas me sinto privilegiado por gostar muito do que faço e, por isso, não reclamo de nenhuma das minhas tarefas profissionais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já tive que fazer todas as minhas tarefas acadêmicas (ensino, pesquisa, extensão e gestão) nos três turnos (manhã, tarde e noite). Hoje, mais velho de idade e mais antigo na Universidade, me permito, como regra, não trabalhar à noite. Guardo esse período do dia para correr na praia, para o convívio familiar e com amigos e para o descanso.
Para ler e escrever, costumo usar o período da manhã e/ou da tarde. Em ambos os períodos sinto que trabalho bem. Meu ritual de preparação para a escrita é simples: consiste em deixar próximo a mim os livros que usei nas pesquisas. Também tenho que estar conectado à internet, pois sempre procuro informações pontuais sobre coisas que se conectam com o tema do texto que estou escrevendo. Além disso, trabalho com dois dicionários online abertos: o Houaiss e um dicionário de sinônimos e antônimos.
Embora escreva diretamente no computador, não posso deixar de ter à mão papel e lápis. Faço anotações constantes no papel durante a produção do texto, que servem para organizar as ideias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tudo depende do projeto e do prazo. Na maioria das vezes, a produção de um texto está vinculada a um projeto com prazo. É assim quando se escreve uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado, porém a má notícia é que os prazos (exíguos) continuam mesmo depois que se encerra a pós-graduação. Especialmente professores vinculados aos Programas de Pós-Graduação precisam lidar com metas de produtividade que impõem prazos severos. Por vezes, ainda temos os prazos determinados pelos projetos apoiados por agências de fomento ou mesmo os prazos editoriais. Portanto, ao contrário do que o romantismo acadêmico pode sugerir, a produção intelectual não é algo espontâneo e idílico, mas um trabalho duro realizado sob cobrança e diferentes prazos institucionais.
Considerado esse contexto, eu costumo escrever em períodos concentrados, atendendo um determinado projeto de produção de artigo ou livro. No dia a dia, não me imponho uma meta de escrita diária. Na verdade, nem quando estou escrevendo um texto me imponho uma meta de páginas. Para mim isso seria inviável já que há dias que escrevo mais, há dias que escrevo menos e, eventualmente, há dias que não escrevo nada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo sempre começa com um tema e uma questão de interesse. Isso conduz a uma pesquisa que sugere uma determinada bibliografia a ser lida ou relida. Nos textos que leio, faço muitas anotações e separo os trechos que especialmente me interessam. Esses livros e artigos serão transferidos de minha biblioteca para o meu escritório durante o período de elaboração do meu próprio texto. Após, faço um sumário que irá funcionar como o meu roteiro de escrita a ser seguido.
O mais difícil é começar… sempre acho que ainda há algo mais a ser lido. E certamente haveria muito mais coisas a serem lidas, mas é preciso começar. Depois que engreno, o texto flui com mais facilidade. Todavia, no mais das vezes, ocorre um fenômeno interessante: é como se o texto que estou escrevendo ganhasse vida própria. As ideias vão surgindo na cabeça e coisas que não havia programado de escrever vão aparecendo na tela do computador. Por outro lado, coisas que havia programado vão perdendo espaço. Em geral isso significa um alongamento do texto. Daí é possível entender a famosa frase de Pe. Antônio Vieira sobre seus grandes sermões: “Me desculpem, não tive tempo de escrever menos”. O trabalho de síntese é penoso e exige um certo tempo. Então, procuro conjugar as ideias novas que foram surgindo com aquilo que estava programado considerando uma harmonia do texto e as exigências de prazo (sempre o prazo…).
Por vezes, essas ideias não programadas exigem leituras incidentais durante a elaboração do texto. Por isso esse diálogo com os autores (fontes), ao menos no meu caso, é algo que não cessa após o início da redação. Isso tem uma implicação muito concreta: eu não poderia jamais escrever longe da minha biblioteca e/ou de bibliotecas em geral. Quando penso em pessoas que escreveram em situação de isolamento (como os famosos Cadernos do Cárcere, de Gramsci), fico quase aturdido de tanta admiração… Longe dos livros (especialmente os da minha biblioteca), poderia apenas escrever um poema ou outro. Por isso nunca um leitor irá ler um artigo ou livro meu com uma introdução onde direi que aquele texto foi escrito no sossego de uma casa na montanha ou à beira de um lago…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travas na escrita são normais e podem ter inúmeras razões. É preciso levá-las em consideração como um fator que influi na produção do texto na hora de planejar o projeto. Uma das coisas boas da maturidade, após ter enfrentado algumas bancas (mestrado, doutorado, concursos), é que o medo de não corresponder às expectativas vai desaparecendo. Preparo os meus textos e as minhas aulas para atender às expectativas de meus leitores e de meus alunos, por respeito a eles. Sempre quero dar o meu melhor e claro que desejo manter uma reputação (respeito entre pares), mas não me preocupa conquistar fama ou prestígio. Não escrevo para atender uma audiência específica ou a exigências doutorais, mas como parte necessária da minha atividade docente. E, como disse antes, eu gosto da carreira docente. Aprendi que no meio intelectual há muita vaidade e presunção de genialidade, mas a verdade é que o esforço e o trabalho duro são o mais relevante na carreira acadêmica.
Projetos longos não me causam nenhuma ansiedade. Em geral eles estão organizados em diferentes fases mais curtas. O problema é que nos tempos de hoje, a exigência por produtividade e publicações constantes inibem os projetos mais longos. Nenhum professor de pós-graduação no Brasil poderia se engajar, por exemplo, num projeto de produção de um livro por dois ou três anos e nesse período não publicar nada. Isso dá origem ao que vem sendo chamado de “Salami Science” ou “Salami Slicing”, isto é, a publicação em partes de uma mesma pesquisa. Embora isso seja mais comum na área das ciências da natureza, pode acontecer também nas ciências sociais. É uma das consequências perversas do produtivismo acadêmico e uma evidência da dificuldade de sustentar a produção intelectual apenas em projetos longos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar o texto é um problema. Costumo fazer a revisão enquanto estou produzindo o texto. Quando sento para escrever, releio as páginas que havia escrito no dia anterior. Com isso consigo captar alguns erros e, também, voltar para o clima do texto e para a linha de raciocínio. Mas isso não é suficiente. Então tento ler o texto todo pronto ao final, mas essa é uma das tarefas mais difíceis para mim, pois costumo ser tomado pela ansiedade de encerrar o projeto. Então, a melhor coisa é pedir para uma outra pessoa ler o material. Um olhar externo consegue captar coisas que não enxergamos em nossa própria escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador, mas costumo fazer pequenas notas no papel durante o processo de escrita. Eventualmente também uso o celular para fazer notas quando estou sem lápis e papel à mão e tenho uma ideia que não quero correr o risco de esquecer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como diz o conhecido ditado: inspiração e transpiração! Mais transpiração do que inspiração, é lógico. A vida acadêmica se dá em ambiente criativo e de debate de ideias, o que ajuda muito. Claro que boa parte das ideias vem da leitura (diálogo com as fontes), mas o debate permanente com amigos, colegas e alunos é fundamental.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A maturidade da minha escrita veio com o doutoramento. De lá para cá não mudaria nada no processo. Claro que muitas ideias mudam e mudaram, mas o processo de produção de texto é basicamente o mesmo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O que mais gostaria de fazer e ainda não comecei é jogar vôlei na praia… sempre adio. Já em termos editoriais, tenho muitos projetos, seja a partir da tradicional pesquisa bibliográfica, seja a partir de pesquisas empíricas feitas pelo Grupo de Pesquisa que participo. O trabalho da produção coletiva, quando feito de forma democrática, é gratificante e generoso. Já foram, até 2015, três livros publicados pelo Grupo (Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade) com base em pesquisas empíricas.
No momento, estou encerrando um casebook de teoria do direito para, após, iniciar minha tese de titularidade na Universidade onde trabalho (UERJ). Isso deverá tomar um certo tempo…