José Petrola é jornalista e escritor, doutorando em Comunicação pela USP, autor de “O Beco do Rato”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia com um bom café. Demoro um pouco para acordar de vez, preciso de café. Duas ou três vezes na semana, pego a minha bicicleta e vou dar uma volta. Manter uma atividade física, apesar de tomar tempo, ajuda a ter mais energia mental para a escrita. Nos outros dias, já parto direto para o computador. Acordo cedo o suficiente para ter tempo de escrever um pouco antes de ir ao trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como eu concilio a escrita literária com um emprego fixo e um doutorado, estou sempre escrevendo, em qualquer momento do dia que eu conseguir cinco minutos para me debruçar sobre um texto. Para os textos do doutorado, prefiro escrever de manhã, com a cabeça descansada, em silêncio. Para mim é fácil: basta tirar os aparelhos auditivos (sou surdo oralizado). Mas a falta de tempo me acostumou a escrever em qualquer hora e lugar. Já para a escrita literária, prefiro sempre a noite, entrando madrugada adentro, quando já cumpri com as outras obrigações diárias e sei que ninguém vai me interromper. Meu ritual para escrever contos é abrir o computador, colocar música e tomar um café. Ou cerveja, com moderação (o ditado “Write drunk, edit sober” é uma ilusão). A música me ajuda a entrar no clima para escrever. Mas chega um ponto em que fico tão absorvido pelo texto que desligo o som e simplesmente escrevo. Nessa hora, desligo os aparelhos e escrevo no maior silêncio possível.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta de escrita diária em quantidade de páginas, mas tenho a meta de escrever todos os dias. Em alguns períodos acabo me concentrando mais na escrita, seja porque estou finalizando um projeto literário, ou porque os prazos do doutorado me obrigam a finalizar um texto acadêmico. O importante é que a escrita seja uma rotina. Só consegui realmente começar a escrever contos bons e me dedicar à literatura depois que passei a frequentar oficinas literárias, em que eu assumia a obrigação de, toda semana, apresentar um conto novo. Por dois anos, frequentei oficinas com o Elias Fajardo e o Luiz Ruffato na Estação das Letras e depois fui para a oficina literária do Ivan Proença, sempre às quartas-feiras. Isto criou um ritual: toda terça de noite eu escrevia um conto, e na quarta cedo eu revisava, alterava alguma coisa, finalizava o texto. E assim por diante.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é a parte mais difícil, mas uma vez que começo, pego impulso e não paro. Para escrever contos, não costumo tomar notas antes. Parto de coisas que observo à minha volta. Uma situação que acontece num bar, uma conversa com um amigo, uma notícia de jornal, podem ser o ponto deflagrador. Primeiro, eu imagino uma cena. Por exemplo, ao escrever “O Beco do Rato”, tive dois pontos de partida. Um, a cena dos bêbados no botequim com as garotas. Outro, uma conversa que tive com uma colega de trabalho, me falando sobre uma doutrina de autoajuda que ela frequentava, dessas bem conformistas. Percebi que os dois pontos se tensionavam. A partir desta cena dos bêbados fui desenvolvendo o conto, já tendo em mente um conflito e um possível desfecho (ou não). Começo a escrever e uma coisa foi puxando a outra. Para mim, a forma é que acompanha o conteúdo, e não o contrário. Não paro no meio do texto pensando se esta palavra é a certa ou se é assim que devo começar, priorizo a narrativa, e à medida que vou escrevendo vou entendendo como deve ser a palavra, a construção da frase, da narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tenho dificuldade de lidar com a procrastinação. Talvez por ser um projeto meu, sem prazos e cobranças, procrastino mais na literatura do que nos textos acadêmicos.No doutorado, bem ou mal, você tem um prazo para entregar os textos, e a academia te obriga a desenvolver seu raciocínio dentro de alguns formatos consagrados, o que te facilita a ter uma disciplina para escrever. Mas, para escrever contos, eu tive primeiro que vencer uma barreira mental que eu tinha internalizado, de que escrever literatura não era importante. Desde pequenos, na escola, o sistema nos condiciona a priorizar outras obrigações. Você tem que estudar, fazer provas, trabalhar, fazer exercícios, ver TV, sempre vai aparecer outra prioridade. Eu tive de me convencer que não era errado tirar uma ou duas horas do meu dia para escrever. As oficinas literárias me ajudaram a lidar com o medo de não corresponder às expectativas. É um exercício muito rico trocar os seus textos com outros escritores e ver como um mesmo texto pode causar várias reações e interpretações. Nunca escrevi um romance ou projeto mais longo. Os contos do “Beco do Rato” foram escritos um a um, até um ponto em que percebi que eles eram unidos por algumas recorrências narrativas, e essa foi a deixa para uni-los num livro. Quando criamos uma rotina de escrever todo dia um pouco, ao final de seis meses, um ano, temos muita coisa escrita. Quando me dei conta, “O Beco do Rato” já estava pronto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Na revisão, sou bem detalhista, evito repetições, penso sempre qual a palavra certa para usar naquela frase. Ter sido repórter me ajudou nisso. No jornalismo, aprendemos a nunca usar duas palavras quando se pode usar uma, evitar palavras ou construções muito difíceis. Quero sempre soar o mais natural possível. Revisão, para mim, é esse trabalho de enxugar até não sobrar nenhum respingo, como faziam as lavadeiras do São Francisco, de Graciliano Ramos. Tenho dificuldade de saber quando parar de revisar, parece que o texto nunca está perfeito. Acho que se o Camões baixasse hoje num centro espírita ainda pediria para revisar algum verso dos Lusíadas. Mas também temos de lembrar que perfeição não existe e uma hora você terá de publicar (aqui, novamente, o jornalista, a quinze minutos do fechamento). Paro quando sinto que o texto está “redondo”, mesmo que um ou outro detalhe me deixe na dúvida. Gosto de mostrar para outras pessoas antes da publicação, valorizo um segundo olhar. Por isto acho que as oficinas literárias foram tão importantes para mim. Também troco textos com amigos escritores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. Gosto da facilidade de digitar rápido, apagar os trechos que não ficaram bons, cortar trechos de um ponto para encaixar em outro. Só imprimo para as revisões finais, que prefiro fazer à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Meus contos, em geral, partem de uma observação da realidade. Fiz teatro amador no final da adolescência e isso me inspirou muito a observar muito as pessoas, sua fala, expressão corporal, e criar cenas a partir daí. Talvez por eu ser surdo tenha tanta ansiedade de ouvir o mundo. Para me manter criativo, procuro sempre ler literatura, de todos os tipos. Contemporânea, clássicos, nacionais, estrangeiros. Vou sempre ao cinema, exposições, rodas de música. Muito da inspiração dos meus contos vem de conversas com outras pessoas, em qualquer situação, até no táxi. Coisas que vejo na rua, situações da minha própria vida. Até um maluco gritando na calçada pode ser ponto de partida para um novo conto. Literatura é vida, é experiência, e acho importante estar aberto a novas experiências. Acho importante ler filosofia, que te força a questionar as formas de pensar em que você foi condicionado. Fazer análise também me ajudou a olhar o meu próprio pensamento “de fora”, e isso traz material para a escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que evoluí muito na escrita por conta das oficinas literárias e do exercício constante de trocar meus textos com outros escritores. Em alguns de meus primeiros textos, eu partia de situações que eram muito próximas, quase autobiográficas, e isso deixava a minha escrita meio travada. Hoje eu me sinto mais maduro para andar nesse beco e achar saídas. A única coisa de que me arrependo é não ter escrito mais. Se eu pudesse voltar no tempo e falar com o José Petrola de 15 anos, daria um tapa na cara do meu eu mais novo e me mandaria continuar escrevendo e procurar outros escritores.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos em mente. Sinto falta de mais livros olhando para além da zona sul do Rio e zona oeste de São Paulo (com exceção de alguns autores muito bons da periferia que só agora aparecem para o mainstream). Gostaria de ler e escrever mais sobre essas realidades brasileiras do outro lado da ponte. Há muitos livros que eu gostaria de ler e só não existem porque ainda não foram escritos. Quando forem lançados, lerei com prazer. Estou sempre querendo ler as novidades. Nasci separado do mundo pelo som, e tento me encontrar nele através das letras.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Escrever a primeira frase é mais difícil. Não costumo fazer um planejamento completo e detalhado, mas também não consigo deixar tudo fluir sem um certo rumo. Quando começo a escrever, tenho alguma noção de aonde quero chegar, mesmo que depois esse plano mude. Como geralmente escrevo contos, costumo começar com uma cena de tensão, e a partir desse conflito, vou levando a um desfecho. Então a primeira frase que escrevo é esta cena, que nem sempre vai ser a primeira frase do texto final. E só termino quando sinto que o texto está pronto, que não há mais nada a acrescentar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Trabalho sempre com mais de um projeto ao mesmo tempo, porque tenho muito menos tempo do que gostaria para me dedicar à escrita. Geralmente me concentro muito no trabalho durante a semana e guardo o final de semana para os textos acadêmicos, então escrevo literatura à noite, de madrugada, nos intervalos da vida.
Às vezes, eu fico tão envolvido com um projeto literário que passo o dia todo trabalhando nele aos poucos, aproveitando pequenos intervalos das atividades diárias. Mas é algo que acontece mais em ondas do que como uma rotina de escrever todo dia. Existem períodos em que me dedico mais intensamente à ficção, e outros em que passo semanas sem escrever.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Quando eu era criança já falava que queria ser escritor. Isso veio desde muito cedo na minha vida, acho que até pelo fato de eu ter nascido com surdez, a minha ligação com o mundo sempre foi mais através da palavra escrita que da falada. Passei a infância toda com a cara enfiada em livros e gibis. Na faculdade, escolhi cursar Jornalismo. E foi depois de uma série de escolhas que me levaram a um trabalho totalmente diferente da escrita que eu acabei voltando para a literatura, escrevendo não para me sustentar, mas porque é o que sou.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Um músico ou um pintor que quer ser original precisa experimentar com vários estilos e técnicas para criar o seu estilo. Com a literatura não é diferente. Desenvolver um estilo próprio é um trabalho braçal. Para mim foi ao mesmo tempo uma descoberta e um desenvolvimento. O que me ajudou muito foi a troca de textos com colegas das oficinas literárias, nessa troca você vai se conhecendo como escritor e entendendo qual o seu estilo.
Acho difícil falar quais foram as minhas principais influências literárias, pois, nesse processo de desenvolver um estilo, às vezes descobrimos parentescos literários de que nem mesmo desconfiamos. Um escritor pode dizer que é influenciado por outro que admira, mas na verdade sua escrita lembra muito a de outro autor que ele nem conhece.
Quando comecei a participar de oficinas literárias, meus colegas costumavam comparar o meu estilo com Rubem Fonseca e José Lins do Rego, que eu tinha lido muito pouco até então. Foi uma surpresa ler “Feliz Ano Novo” do Fonseca e descobrir o quanto eu me identificava com aquela linguagem dura, precisa, sem idealização. E assim fui me inspirando também em João Antônio, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Graciliano Ramos, José J. Veiga e tantos outros.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Só três livros é uma escolha difícil. Qualquer lista que eu fizer será muito incompleta e arbitrária, diria mesmo aleatória. Vou destacar três livros clássicos que me influenciaram e que recomendo para quem gosta de escrever.
Começo a lista pela “Metamorfose”, do Kafka. É incrível como ele consegue narrar a coisa mais absurda de forma simples, com toda a naturalidade do mundo. Também recomendo ler “Memórias do subsolo”, do Dostoiévski, pela forma como constrói a psicologia do narrador-personagem e faz você ter empatia com ele. No gênero contos, indico João Antônio, pelos cortes cinematográficos, linguagem clara e personagens envolventes.