José Minervino Neto é escritor, autor de “Antes e depois da chuva” (2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo com preguiça. Não fossem os compromissos diários, meu expediente só começaria à tarde. Café e um banho frio são fundamentais para que eu, de fato, desperte do sono.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ironicamente, costumo ser mais eficiente pela manhã. Por isso, não cedo à preguiça, nem poderia, do contrário ficaria sem salário ao fim do mês. A rotina da escrita vai se intrometendo entre uma pausa e outra do expediente, entre uma troca de fraldas e outra, num momento de pausa para respirar… Nessas horas o telefone e o Evernote ajudam muito. Aí, quando surge algo faço a anotação e, se possível, já começo a escrever ou pelo menos registro a ideia. Os cuidados com nosso filho reduziram nosso tempo hábil para escrever e estudar, isso me tornou mais diligente e responsável com o uso do tempo. Então, mesmo que sendo melhor escrever pela manhã com a mente mais leve, aprendi a aproveitar todo tempo livre para ler, escrever e pesquisar, pois tenho prazos severos a cumprir com a dissertação de mestrado. Horrível isso, mas não tem outro jeito. A poesia é que sofre nesse processo todo, fica um pouco negligenciada e só aparece na base da teimosia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Só consigo me programar para escrever se for algo relacionado a trabalho, desde que fiz uma especialização que tento dedicar algum momento do dia para produzir. Sofri muito com as consequências da procrastinação na faculdade ao redigir o meu TCC. Por isso, tento acrescentar ao menos uma vírgula (ou mudar uma vírgula) do texto em andamento para cumprir os prazos e evitar prejuízos. Já com a poesia eu deixo fluir e me embevecer das informações cotidianas. O Miró da Muribeca, grande poeta recifense do nosso tempo, tem um poema que define como funciona a minha inspiração, que diz assim: “Janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar/ Ainda mais quando a viagem é longa”.As imagens vão passando pela retina, invadem a mente, divago, pinga uma frase aqui, um trocadilho ali, uma sensação e pá!, eis um poema. A desvantagem de estar envolto numa pesquisa acadêmica, para mim, é que minha cabeça fica com ideia fixa em alguns assuntos e a poesia é relegada e depende ainda mais de epifanias. Qualquer projeto literário é um fracasso nesse cenário para mim. Por isso, não estabeleço metas, embora eu tenha uma imagem maior daquilo que cada poema deve dizer para fazer as engrenagens funcionarem. A escritura acadêmica é muito rígida, tem prazo para entrega, e isto me motiva a trabalhar nela com mais afinco. Esse é o único meio que tenho de vivenciar a escrita criativa com a pesquisa acadêmica, deixando uma fluir e queimar as pestanas para que a outra aconteça.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como disse acima, mesmo sem uma programação rígida, eu tento escrever todo dia. Superada aquela vontade de fazer nada, após um drible nas redes sociais, releio o que fiz e depois vou ligando as anotações e os conceitos. Em geral, sempre me vem uma ideia durante a leitura (que nem sempre funciona mais a frente). Quanto mais leio, mais próximo do que desejo dizer eu me sinto. O meu método é tornar familiar toda teoria que absorvo, nada faz sentido para mim se não me conecta com alguma referência anterior ou não preenche uma lacuna. Em geral, começar não é fácil, nem sempre depende só da minha vontade, então preciso aproveitar cada fuga do expediente para alinhavar as palavras e voltar a elas para remendar as tronchuras.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travar significa falta de leitura (quando não há uma pedra no meio do caminho). Todo texto meu se constrói durante o fichamento dos livros, inclusive muita poesia minha é uma resposta ao poema, romance ou conto lido naqueles dias. Ler e escrever contínua e concomitantemente foi o jeito que descobri de superar a preguiça e potencializar o tempo, às vezes escasso. Acho que não podemos deixar a mente divagar demais nem trabalhar maquinalmente. Um tempo de folga para o ócio é importante para a sanidade mental. Dormir bem e caminhar ajudam muito a estar disposto na hora de enfrentar a página branca.
Lidar com as expectativas do outro é inevitável num processo de escrita acadêmica. Primeiro, devemos satisfazer a si mesmos, depois ao orientador, depois a uma banca examinadora. É um tipo de texto que se escreve a muitas mãos, com muitas vozes interagindo. A literatura, como é intimista, passa primeiro pelo crivo do tempo e a releitura exaustiva até estar apresentável, eu como leitor de mim sou mais exigente do que um examinador.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso quantas vezes forem possíveis, até não conseguir acrescentar uma vírgula. Na academia, tem sido muito importante conversar sobre meus textos com colegas e professores, eles me auxiliam a deixar as ideias coerentes, apresentam elementos do quais não me dei conta, sugerem bibliografia. É uma camaradagem. Com a literatura sou mais exigente e tímido, a depender do texto e da ocasião. Quando submeti meu livro a um concurso literário havia compartilhado poucos poemas. Não costumo falar dos meus poemas guardados, por timidez, sim, mas vaidade também.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma ótima relação com o bloco de notas do meu telefone, principalmente porque ele faz backups na nuvem de tudo que escrevi. Só uso papel para escrever nas aulas. Com isso ganho tempo e não perco quase nenhuma ideia. Hoje em dia, o telefone é minha principal plataforma de escrita, o computador me serve só para formatar os textos, como consequência, os dedos doem, a vista é desgastada mais rapidamente, um sacrifício em nome da praticidade. Espero que o ciclo da dissertação acabe logo (risos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Meu único hábito para cultivar ideias é ler para além das obrigações do expediente. A maioria das ideias vem do emaranhado de textos que circulam na cabeça da gente. O texto da luz do sol de manhã, do cheiro de café, do fedor do esgoto a céu aberto da rua, do balanço do busão. Cruzo tudo isso com o Sófocles e o Pessoa que revisitei há pouco, com Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle recém apresentados a mim, com as histórias que as pessoas me contam, com o que lembro, assim, vão aparecendo imagens, coisas a dizer, coisas a sentir. Um texto é sempre resposta a outro texto, como diz a teoria. Se eu não pratico essa resposta, acabam-se as ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tanta coisa e muda de um texto para outro. Na poesia, tento ser um a cada poema, gosto de experimentar a elasticidade das palavras, buscar novos sentidos para as coisas de sempre, mas ao mesmo tempo compromissado com o que desejo dizer e ser entendido. Não gosto de texto hermético, que requeira quatro anos de curso de Letras para ser compreendido. Metalinguagem, por exemplo, dificilmente é um tema para mim. É um desafio dizer as obviedades do cotidiano sem ser óbvio, então, não me preocupo com isso, em ser original em tudo, apenas tento ser justo com as ideias e com o que sinto a partir delas. De vez em quando sai algo interessante. Se eu pudesse voltar a ter 11 anos, quando comecei a escrever, não diria nada porque sou péssimo em aconselhar. Mas, para quem lida com a palavra, um conselho é crucial: ler, ter sempre um livro como companhia. Esse seria o melhor conselho que eu poderia me dar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de me aventurar na prosa, mas escrever narrativas me deixa com a nostalgia aguçada. Como diria Graciliano, eu não sei inventar nada, toda inspiração que vem para uma história é algo que vivi, e minha vida não tem nada de extraordinário. E que importa a minha vida! Chega um momento e trava tudo, horrível a sensação de estar num beco sem saída. Como se mede o ritmo de uma história? Eu não sei. No entanto, é algo que gostaria de realizar. Por teimosia, anoto toda ideia que aparece pensando que pode ser utilizada um dia. Certa feita arrisquei uns contos, no entanto, cometi a besteira de mostrá-los a uma pessoa que simplesmente me desmotivou a continuar a escrevê-los com comentários que beiravam a indiferença. Desde então nunca mais mexi com eles. Aí, no mestrado, um professor muito gente boa nos pediu que escrevêssemos uma narrativa detetivesca como uma atividade avaliativa. Foi massa, um reencontro com a prosa. Talvez eu não tenha fôlego para um romance, mas essa última experiência me deixou feliz e empolgado para, quem sabe, incursionar nos contos.