José Francisco Botelho é tradutor, escritor e jornalista, autor de A árvore que falava aramaico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando estou trabalhando em um texto, seja um livro, um artigo ou uma tradução, acordo muito cedo e preparo uma infusão de illex paraguariensis ‒ o chimarrão, que no sul do Estado chama-se mate, como nos países do Prata. Tomo dois ou três mates sentado no sofá, depois vou para a escrivaninha e sigo bebendo enquanto escrevo, até as onze horas, mais ou menos. Nos tempos em que morava em Paris, passei alguns apuros quando meu estoque de erva-mate acabou. Felizmente conheci uns argentinos em Les Halles que passaram a me vender suprimentos suficientes para os meses seguintes. Aliás, em O Jogo da Amarelinha, de Cortazar, há um capítulo em que um aficionado da nossa sagrada infusão fala sobre as agruras causadas pela abstinência do mate em Paris; a situação que vivi foi muito semelhante.
Também gosto muito de ler pela manhã, antes de iniciar os trabalhos do dia; mas terá de ser sempre uma leitura totalmente desvinculada do trabalho. Costuma ser poesia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por natureza, não gosto de acordar cedo. É exatamente por isso que faço questão de madrugar para escrever: o choque desperta as faculdades mentais, e a sensação de irrealidade vivifica o cérebro. Embora eu goste muito de beber mate antes de escrever, não acho que o escritor deva depender de cerimônias propiciatórias. A multiplicação de pré-requisitos à escrita pode transformar-se em uma forma refinada de procrastinação. Ainda assim, creio que exista, sim, um pré-requisito à escrita: a própria leitura. Só se escreve bem depois de muito ter-se lido. As leituras devem ser variadas; não devem se resumir ao academicismo, tampouco à produção contemporânea. A escrita exige uma relação excêntrica entre o espírito humano e o tempo; daí a importância de ler obras que transcendam nossas amarras cronológicas e nos obriguem a pensar “sob o ponto de vista da eternidade”, como disse Spinoza.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever pelo menos três vezes por semana, de preferência em três manhãs consecutivas, de modo que exista uma espécie de fluxo criativo e um encadeamento de ideias, transmitindo-se de um dia para o outro. Depois deixo o texto descansar por uns quatro dias, releio-o e continuo escrevendo. Não tenho uma meta diária, mas mensal: até dia 25 tenho que acabar tal conto; ou até dia 30 tenho que começar tal capítulo do romance; ou até metade do mês que vem tenho que revisar aquela estrofe. Preciso geralmente organizar essas coisas num calendário, pois tendo a ser totalmente caótico.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Penso e leio muito antes de escrever. A maior parte do processo, sem dúvida, é ocupada pelas anotações – ou pelas elucubrações que às vezes desenvolvo deitado num sofá, caminhando ou correndo. As boas ideias podem vir a qualquer momento e é importante colocá-las no papel antes que se dissipem. Tendo em mãos uma quantidade suficiente de notas, sentar e escrever torna-se muito mais fácil. Se não me engano, aliás, foi Ivan Lessa quem disse: “Escrever é fácil; difícil é tomar notas”.
Naturalmente, a própria natureza do texto determinará a quantidade de apontamentos necessários. Acabo de escrever, para meu novo livro, um conto passado na Roma antiga durante as Guerras Púnicas. São apenas quinze páginas, mas, para escrevê-las, consultei cerca de vinte livros e enchi dois caderninhos com anotações. Depois de perambular por esse mundo mental de referências mitológicas, literárias e históricas durante vários meses, a escrita, propriamente falando, foi rápida: ocupou, talvez, três ou quatro dias. Mas foi necessário o longo período de imersão para que o texto acontecesse. Trabalhei por muitos anos como jornalista e, durante esse tempo, aprendi a importância de submergir em um universo de informações, antes de tentar conformá-las à página.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essas travas já foram tão poderosas que, por muito tempo, parei de escrever: após a publicação de meu primeiro livro, fiquei vários anos incapacitado de produzir ficção. Com o tempo, fui descobrindo métodos de desfazer esses grilhões. Uma de minhas técnicas é esta: já não tento resolver todas as complexidades da escrita quando estou sentado na frente do computador ou diante da escrivaninha. Como disse em uma resposta anterior, costumo escrever mentalmente quando estou fazendo outras coisas, como caminhar pela cidade, andar de ônibus, beber cerveja. Algumas das melhores soluções vêm nesses momentos. Sobre a ansiedade das expectativas, é importante, antes de tudo, que nos perguntemos: expectativas de quem? O escritor fiel a suas próprias obsessões não agradará a todo o universo, e talvez agrade mesmo a pouquíssima gente. Para a produção de literatura, especialmente ficção ou poesia, creio ser necessária uma espécie de paixão ascética; devemos nos perguntar: se eu fosse o último ser humano da Terra, mesmo assim escreveria? Uma vez encontrada a resposta a esse questionamento, a angústia da escrita diminui significativamente; compreendemos que nos cabe escrever o que temos de escrever, não o que mais facilmente nos granjearia aplausos imediatos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Minhas revisões tendem ao infinito. Borges certa vez disse que publicamos nossos livros apenas para que não continuemos a reescrevê-los pelo resto da vida; concordo com ele. Ontem mesmo, decidi parar de revisar meu próximo livro de contos – que vai se chamar “Cavalos de Cronos” – e mandá-lo duma vez ao editor. Mas foi uma decisão contra-intuitiva. Meu impulso é continuar reescrevendo eternamente.
Sim, tenho duas pessoas de confiança a quem mostro meus textos. É preciso lembrar que esses leitores-teste devem ter a capacidade de criticar, apontar falhas, ou mesmo condenar o texto, sem permitir que o afeto pessoal interfira. Por outro lado, é muito difícil entregar um original a um desconhecido completo; me parece que precisamos ao mesmo tempo confiar na opinião daquela pessoa e, portanto, conhecê-la relativamente bem. Contudo, em meio a nossas amizades, se procurarmos bem, acabaremos por encontrar aquele companheiro ao mesmo tempo leal, interessado, solícito, inteligente ‒ e desprovido de misericórdia. Entreguem seus textos a ele.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A primeira versão de qualquer coisa, inclusive minhas traduções poéticas, é feita à mão, em caderno escolar comum, com caneta esferográfica. Às vezes, a segunda versão também é manuscrita. Geralmente, sento em frente ao computador apenas quando tenho uma ideia clara de como o conto, ou o capítulo, ou o poema, vai iniciar e acabar. Aliás, prefiro inclusive delinear frases e parágrafos de cabeça, longe de qualquer plataforma, antes de confiá-los à página. Minha primeira formação literária deu-se na poesia métrica oral, ou seja, me acostumei muito cedo a combinar as palavras mentalmente, com base no ritmo e nos esquemas estróficos, antes de escrevê-las. Para que isso funcione, naturalmente, é preciso sempre andar com um caderninho no bolso. Por exemplo: estou andando pela rua e cinzelando um parágrafo; de repente, tenho a sensação de que acertei o alvo; então entro em qualquer boteco próximo e anoto esse trecho mental, antes que se obscureça.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de livros, de conversas, de filmes ou de situações espontâneas da vida. Algumas vêm dos sonhos. Já sonhei contos inteiros, inclusive em termos de estilo e estrutura; o difícil, nesse caso, é anotá-los imediatamente após o despertar. Tenho um caderno cheio de sonhos (e pesadelos) que pretendo eventualmente transformar em contos ou romances.
Quanto às ideias que vêm dos livros, é importante ressaltar que um escritor não deve jamais limitar suas leituras ao que lhe pareça útil ou materialmente proveitoso. Uma grande parte da vocação literária é composta de curiosidade elementar. Quanto mais amplas forem suas leituras, mais facilmente surgirão ideias para a área, o tema ou o gênero a que você se dedica. Faço questão de ler, constantemente, obras que nada tenham a ver com o que estou fazendo no momento. Muitas vezes, é dessas leituras que vêm as soluções ou argumentos de que mais precisamos.
O contato humano é outra fonte interminável de ideias. Um escritor não deve ser um juiz; não está aí para proferir vereditos sobre outras almas, mas para apreendê-las no que tenham de irredutível e particular. Um bom escritor deve ter a capacidade, inclusive, de escrever sob o ponto de vista de alguém com quem não tenha a mínima afinidade. A imaginação humana é uma força misteriosa que, quando bem empregada, permite-nos expandir o círculo de nossa consciência, projetando-a além do que experimentamos diretamente.
Enfim, existem em nossas vidas certos instantes em que as emoções e os pensamentos parecem aglutinar-se subitamente numa forma perceptível; são momentos de clareza, às vezes surgidos em períodos de espanto ou sofrimento ou deleite ou simples ócio, que nos conferem uma visão imediata daquilo que significa ser-se humano. Aí, temos que sentar e anotar. Ou seja: caderninho no bolso em todas as circunstâncias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seu primeiro livro?
Com os anos, aprendi a distinguir mais facilmente o embrião de uma boa ideia. Hoje perco menos tempo com textos infrutíferos. Experimento uma ideia três vezes; se, na terceira, não consegui transformá-la em um esboço ficcional, guardo-a para mais tarde. Meu conselho ao Chico de dez anos atrás? Talvez ele é que tenha conselhos para me dar. Em todo caso, eu talvez lhe sugerisse usar menos metáforas por parágrafo, mas tenho a impressão de que ele me faria uma figa e diria: olha quem está falando!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Começarei um romance histórico nos próximos meses. O livro que eu gostaria de ler, e que não existe, é o “Cambises”, provável obra-prima que Flaubert planejou mas não escreveu.