José Francisco Botelho é escritor, tradutor e jornalista, autor de “A árvore que falava aramaico”.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sou tradutor, escritor, jornalista, crítico de cinema e literatura, além de pesquisador acadêmico e mais uma ou duas coisas (no mínimo): ou seja, estou sempre envolvido com muitos projetos simultaneamente. Porém, nos últimos anos, desenvolvi um esquema que me permita estar sempre escrevendo ou poesia, ou prosa de ficção, ou prosa de ideias.
Muitas pessoas me perguntam como lidar com a procrastinação, com os diversos tipos de bloqueios criativos que nos assolam, com a angústia, a distração, a sensação de que a mente está indo para um lado, enquanto nós vamos pra outro… Há algum tempo, minha resposta é a mesma: escrever uma hora por dia, todos os dias, haja o que houver; e ignorar completamente todas as modas literárias do momento, como se fôssemos eremitas.
A pessoa que se deixa amoldar pelas pressões e ocasiões da época em que vive põe-se numa encruzilhada: ou se condicionará a pensar e escrever como os outros, ou entrará em uma espiral de desespero que paralisa. Como nenhuma das opções me atrai, o que faço é reservar ao menos uma hora do dia a uma espécie de alucinação dirigida, em que entro em minha cabeça e de lá me recuso a sair enquanto não tenha escrito alguma coisa.
Naturalmente, nem tudo o que se escreve se salva. Mas aí entra outra dica importante: não escrevam apenas para publicar. Escrever é um ofício, uma forma de viver, de existir no mundo, e o aperfeiçoamento da arte deve estar sempre em primeiro lugar. Tudo o que se escreve é um exercício, mesmo aquilo que não se usará nunca. Uma vez que se compreenda isso, grande parte dos elementos que levam ao bloqueio criativo ou se amenizam, ou desaparecem.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Diferentes tipos de texto nos levam a diferentes métodos de escrita, mas existe uma prática que serve a todas as modalidades: a anotação. O melhor amigo de quem escreve é o caderninho – de preferência, um caderninho que caiba no bolso (algumas pessoas talvez prefiram usar um aplicativo no celular, mas sugiro ter um caderno mesmo assim).
A anotação serve para que não desperdicemos pensamentos. Às vezes excelentes ideias surgem quando estamos comendo uma porção de batatas fritas, ou sentados num banco de ônibus, ou no elevador. Ilude-se quem pensa que a ideia pode ser recuperada inteiramente, se deixarmos para escrevê-la mais tarde. Anotem tudo o que puderem, no momento em que os pensamentos lhes ocorrerem. Verão que isso faz uma enorme diferença.
Quando estou escrevendo um conto, o que faço é viver mentalmente dentro dele, como se explorasse um território. Procuro caminhos, às vezes abro picadas; tento enxergar o horizonte – e ligar o horizonte ao ponto donde parti. Esse trajeto, eu o vou registrando em anotações. Depois abro as anotações e vejo se o meu percurso vale ser mapeado. O mapeamento é a escrita da narrativa, curta ou longa. Uma história merece ser escrita quando, mesmo em germe, apresenta uma consistência de oráculo: deve ter algo de mistério, mas um mistério vindo de um excesso de sentido (um sentido que está além do que possamos compreender plenamente fora da esfera da arte).
Havendo decidido que a história merece mesmo ser escrita, passo a converter as notas num texto corrido; ou, se o tal percurso ainda me parece falho ou inconsistente, ponho as notas na gaveta, para considerá-las em outra ocasião. Muitas vezes, temos a semente de um texto que ainda não estamos prontos para escrever. Mas podemos deixar a semente guardada e plantá-la depois.
Quando escrevo um poema, tento captar um “sentimento do mundo”, ou uma percepção a respeito de mim mesmo que também me diga algo sobre a existência das coisas em geral, ou sobre o que se costuma chamar de condição humana, e em seguida trato de expressar esse sentimento em verso, de forma absolutamente exata e sem nenhuma consideração que não seja a exata expressão do que quero expressar. A poesia, assim como a boa prosa, deve ser ao mesmo tempo brutal e sofisticada, selvagem e rigorosa, e levar tanto quem lê quanto quem escreve a um lugar ao mesmo tempo inesperado e central, aonde não se poderia chegar de outra forma.
Procuro ser exatamente justo a certa impressão do mundo que me tocou, sem considerar a expressão desse sentimento como um meio para outra coisa, mas como um fim em si mesma. Assim eu procuro dizer coisas que as pessoas não sabiam que precisavam ouvir. Aliás, desconheço observação melhor sobre a arte da escrita do que esta, de Kafka: “um livro deve ser um machado para o mar de gelo dentro de nós”.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Eu escrevo onde quer que esteja, sob quaisquer circunstâncias. Eliminar todas as pré-condições à escrita é um processo extremamente libertador. Escrevi muito em um lugar chamado Lancheria do Parque, no Bom Fim, em Porto Alegre. É um local extremamente barulhento, com enormes ventiladores nas paredes, gente passando para lá e para cá a todo instante. Foi lá, em parte, que traduzi Chaucer e Shakespeare.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Além dos métodos que já descrevi, existem outros: por exemplo, ler por meia hora antes de escrever; ou então, ler e dar uma caminhada ou uma corrida, e só depois escrever (o esforço físico libera a mente de suas amarras, ao menos de forma temporária). O cinema também é, para mim, um grande antídoto contra o travamento. Procuro ler livros e ver filmes de todas as épocas e de todos os lugares possíveis, no máximo de minhas capacidades, pois as ideias muitas vezes vêm de recantos totalmente inusitados.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Meu texto mais trabalhoso foi o conto “O Sonho de Catão”, que está em “Cavalos de Cronos”. É uma narrativa que mistura História, fantasia e filosofia, passada na Roma antiga, durante as Guerras Púnicas, e que trata daquela sensação que todos já experimentamos um dia: a de que vivemos a vida de outra pessoa; a de que nossa própria vida, nossa vida verdadeira, é a que está nos sonhos ou nos pesadelos. Para escrevê-lo tive de ler muita coisa, incluindo quase todas as Histórias de Políbio, além de Heródoto, Apiano, Cícero, e outros. Um grande desafio foi encontrar uma linguagem adequada a esse abismo temporal; a solução foi fingir que meu texto era a tradução moderna de outro texto, esse sim antiquíssimo (usei o mesmo método em “O Imperador de Bambu”, que se passa na China na Idade do Bronze).
Também me orgulho de meu contos de “terror rural”, situados no interior do Rio Grande do Sul, como “Cotuba dos Ermos”, “O Silêncio dos Campos” e “Na casa de nossos pais”. O medo, já diziam Borges e Casares, é um dos efeitos literários mais antigos, e, no entanto, é muito difícil de ser produzido: pois o medo é um fato não só mental, mas também corpóreo, assim como o riso. Por isso o terror e o humor são gêneros muito exigentes; e exatamente por terem um lado “corpóreo” – o arrepio, a gargalhada – é que sofreram diversos tipos de preconceito letrado ao longo da história.
Outro texto de que me orgulho muito é “Et Foras Ploravit”, um poema sobre a negação de Pedro. Muita gente acha que é um poema religioso, mas na verdade é uma metáfora de minha experiência no mundo, e acho que disse ali tudo o que precisava ter dito. O resto é nota de rodapé.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Existem duas situações diferentes. A primeira ocorre quando um tema se impõe, como uma espécie de obsessão ou uma patologia. Érico Verissimo, se não me engano, dizia que seu processo de escrita era como “estar doente de um livro”. Borges relatava que, às vezes, de repente, sentia que “algo ia acontecer,” e esse algo era um conto. O conto surgia como uma visão; mas a visão geralmente incluía apenas o início e o fim; a porção mediana tinha de ser trabalhada a partir do que fora “dado”.
Por muito tempo fui obcecado pela ideia de Fronteira: a Fronteira existencial, o ponto em que uma coisa aparentemente deixa de ser o que é e se torna outra; mas também, talvez, o ponto em que uma coisa assume outra forma que já era sua, mas estava oculta. Embora essa Fronteira possa ser vista como um limite e, portanto, uma linha invisível, também é possível entendê-la como um território: o território que não está nem aqui, nem lá, e contudo pertence a ambos os lados simultaneamente; ou então ambos os lados é que pertencem à Fronteira e podem também ser compreendidos a partir dela. Esse interesse, naturalmente, está ligado ao fato de eu haver crescido em uma fronteira (entre o Brasil e o Uruguai), mas também com uma predisposição minha a transitar entre gêneros, entre idéias, e mesmo entre visões de mundo aparentemente opostas: o niilista e o esperançoso, o hilariante e o soturno, e por aí vai. Essa obsessão me levou a escrever dois livros, “A Árvore que Falava Aramaico” e “Cavalos de Cronos” (ambos publicados pela editora Zouk), que tratam precisamente de seres fronteiriços, perdidos num limbo que ao mesmo tempo os condena e os justifica. Nesses livros, também existe uma transição entre gêneros e formas literárias – o realismo e o fantástico, o rural e o urbano, a poesia e a prosa.
Há outros casos, contudo, em que escolhemos um tema, ou por exercício, ou por conveniência, ou porque alguém está nos pagando para escrever sobre aquilo. O truque então é buscar, nesse tema, algum traço, alguma excentricidade que possamos tornar mais ou menos nossa. É sempre importante achar, em qualquer tema, aquela coisa que apenas nós, e mais ninguém, poderíamos dizer. É um processo difícil, pois o mais natural é querermos dizer o que os outros diriam (é mais fácil ser-se aceito assim). Porém o caminho mais árduo é, em minha opinião, o caminho do artista. Portanto, tento sempre dizer algo que apenas eu poderia dizer. Nem sempre consigo, mas, se ficar ruim, pelo menos sei que cometi meu próprio erro e não repeti o erro alheio.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Sempre que termino um texto, deixo-o descansar por algum tempo (pelo menos cinco dias após escrever a última linha) e então o releio. O tempo decorrido gera a impressão de que o texto foi escrito por mão alheia e, assim, podemos avaliá-lo melhor. Só depois é que mostro a alguém. É preciso encontrar uma pessoa que não deixe o afeto distorcer a leitura, mas que também não permita que o espírito competitivo interfira. É difícil. Não basta mostrar a um amigo; tem que ser um amigo que saiba nos dizer verdades incômodas, para que possamos confiar também em seus elogios.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
“As far as I can remember, I always wanted to be a writer.”
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Como já disse, as maiores dificuldades estão ligadas às pressões da época em que se vive. Para se desenvolver um estilo próprio, é preciso enlouquecer um pouco. Também é preciso compreender profundamente os autores que nos influenciam, para que a influência não seja apenas um verniz, mas tenha algo a ver com a forma como contemplamos o mundo e como relacionamos esse olhar ao nosso texto.
Minhas maiores influências são Kafka, Sergio Faraco, Nabokov, Borges, Gibbon, Cecília Meireles, Ursula Le Guin e os relatos orais que escutei em minha infância.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Entre os brasileiros: Lícidas, de Leonardo Antunes; A Mulher Submersa, de Mar Becker; A Ave Lúcifer, de Emmanuel Santiago; Véspera: debris, de Pedro Mohallem; A Nota Amarela, de Gustavo Czekster; Quando a Arte encontra a Moda, de Laura Ferrazza; Ainda que a Terra se Abra, de Rodrigo Tavares.
Em geral, meu livro favorito é e sempre foi “Decadência e Queda do Império Romano”.