José Eisenberg é professor de Teoria Política da UERJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho uma rotina matinal consolidada. Com filhos em idade escolar, ela começa com expulsá-los da casa. Segue um longo café com minha cara metade. Daí uma transição difícil dos temas de conjuntura que ocupam o bom papo do café, para a agenda de afazeres do dia. Chego à minha mesa de trabalho por volta das dez horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A manhã é o único horário produtivo para o meu trabalho estritamente intelectual, especialmente aquele que envolve um engajamento com escrita. O rito é sumário. Acendo um cigarro, ligo uma música nos fones de ouvido e começo a digitar tudo que penso. Às vezes este início da escrita é pautado por preocupações e obrigações externas, o que acaba por determinar o que escrevo nesses primeiros momentos. Agora mesmo, tive que atender à renovação da carteira de habilitação junto ao DETRAN.
Nunca consegui engajar com a escrita no período noturno, horas exclusivamente dedicadas ao ócio. Pode ocorrer (de fato, ocorre com bem mais frequência do que eu gostaria), de uma ideia ou outra exigir uma anotação rápida num caderno ou no computador ao longo da noite, mas nunca elaboro sobre ela até a manhã do outro dia. Os períodos vespertinos, por sua vez, absorvem parte de meu trabalho de leitura e pesquisa, mas nunca a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em geral escrevo um pouco todo dia. Em torno de uma lauda. Frequentemente, outros afazeres ou estados do corpo e alma, me afastam da atividade por um longo período. Por exemplo, havia mais de uma semana que não escrevia nada, até que ontem escrevi várias laudas. Estou no meio de um tratamento dentário. Atrapalha. Períodos de preocupação existencial podem ter o mesmo efeito. Sempre alguma coisa atrapalha. Procuro fazer com que as primeiras horas do dia, quando escrevo, façam parte de um tempo em que o dia ainda não começou. Onde todo o resto pode esperar. Não é fácil.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo pensando. Tudo que penso, escrevo. No final, dou uma última lida que geralmente só pesca erros grosseiros de concordância, frases truncadas e ortografia. A lógica de argumentação e a estrutura da narrativa já estão tão calcificadas que nem enxergo possíveis problemas que possam ter.
Não compilo notas para utilizá-las depois. Meu processo de anotar tem o efeito de fixação de um modo de entender um determinado problema, argumento ou descrição. Consulto muito a internet enquanto escrevo, na busca de atalhos para resgatar pequenos pontos que tornam o texto mais denso, inteligente e fluido.
Nesse sentido, realizo pouca pesquisa antes de escrever e muita pesquisa enquanto escrevo. Utilizo muito roteiros. Todo texto que escrevo começa de um índice que vai sendo revisado. Vou preenchendo o índice na medida que escrevo sobre suas tópicas. No processo de executar este roteiro, as demandas por pesquisa aparecem e a elas atendo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Do mesmo jeito que todo mundo lida. Com ansiedade e ansiolíticos. Com persistência e incentivos materiais. Com coragem e ousadia.
As travas da escrita e suas derivações são intrínsecas ao processo de escrever. Aceitar isso com tranquilidade é o primeiro passo. Aceitar ajuda – da psicanalise, de amigos, amantes, escritores mais experientes, de remédios e de nós mesmos – é essencial. Escritor sem um plano de autoajuda fracassa.
O segundo é se livrar, na medida do possível (mas sempre esticando a corda), das amarras institucionais, dos prazos, das expectativas alheias e, acima de tudo, do anseio por reconhecimento de uma audiência presumida. Estas externalidades podem imprimir ritmo e produzir resultados – podem nos tornar produtivos. A escrita que corresponde a expectativas alheias diz, entretanto, mais sobre estas expectativas do que sobre o autor que escreve. É preciso sair debaixo deste cobertor asfixiante de demandas para se tornar essencialmente criativo. Senão, apenas repetimos o que já foi dito, o que se espera que se diga.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre reviso na medida em que digito. Mas reviso um pouco depois disso. Frequentemente mostro textos curtos para a minha cara metade, que sempre fará uma leitura diligente para a correção gramatical e ortográfica do texto. Para textos mais longos, furto aqueles no meu entorno desta inglória tarefa. Submeto para publicação contando somente com minha autocrítica como aliada.
O texto nunca está pronto. O escritor que crê ter lacrado com o texto é um narcisista que está em busca de aplauso. Não quer se expressar. Quer se medir diante das impressões alheias.
Nunca reviso um texto à exaustão. Um texto intencionalmente imperfeito é mais persuasivo que um texto pretensamente perfeito, em que imperfeições saem pelas rachaduras sem que o autor tenha percebido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não conheço a escrita manual, tampouco aquele em máquina de escrever. As teclas “Del” e “Backspace” são a verdadeira revolução tecnológica da escrita na era das novas tecnologias de informação e comunicação. Com elas, o conceito de rascunho evanesce. Toda folha de papel em nossa frente, na tela de um computador, contém já a versão final do texto em criação.
Esta potência de finalidade faz com que a escrita tenha se tornado mais sintética neste século. Escrevemos textos e livros cada vez mais curtos. A ansiedade da escrita vence os ansiolíticos porque podemos enxergar a versão final desde o início. Sempre é possível levar o texto rapidamente ao seu final. No texto da maquina de escrever, e na escrita manual, tudo é rascunho até que alguém “passe a limpo”.
Nunca tive um texto passado a limpo. Sou um escritor da era digital.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Quero crer que minhas ideias não são minhas. Elas não vêm de lugar algum, já que elas só existem no mundo quando profiro sentenças que presumo contê-las, ou escrevo fragmentos de texto que creio sintetizá-las. As falas e textos são meus, evidentemente, mas as ideias que contêm são aquelas que quem ouvir ou ler compreenderem. Esta é uma regra de ouro da interpretação.
Gosto da ideia que nossas melhores ideias acontecem quando não estamos no contexto que criamos para elas fruírem, o trabalho. Desde minha tese de doutorado, meu primeiro esforço real de uma escrita com fôlego (e quero dizer com muitas páginas), sempre parei meu trabalho de escrita muito cedo no dia e dediquei a parte da tarde para atividades lúdicas. É obvio que a vida universitária coloca demandas – reuniões, aulas, orientações, bancas – que subtraem deste tempo.
Procuro sempre passar o mínimo de tempo livre em atividades laborais. Esta devoção ao tempo livre, que não é necessariamente ocioso, mas indeterminado do ponto de vista da rotina que comporta, é sagrado para mim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Escrevi muito texto acadêmico nos primeiros dez anos depois defender minha tese de doutorado. Desde então (são quase outros dez anos), meu anseio pela publicação acadêmica cedeu a meu interesse no engajamento com o mundo prático. A terapia da escrita consiste na subtração do sujeito de seu meio social, em um esforço de “ir ao estrangeiro para conhecer o mundo”, diria Heródoto. Há uma solidão inexorável a esta empreitada, com a qual escritor deve se reconciliar. Alguns mais disciplinados vencem estas barreiras e se tornam grandes escritores, com vasta obra para exibir. Outros sucumbem ao mundo e, ao se entregar a ele, deixam de ser estrangeiros. É o meu caso. O que mudou ao longo dos anos é que escrevo menos. Encontrando eu mesmo durante a redação da tese diria: “Acaba logo”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quanto ao próximo projeto, se é um projeto e não comecei, é preciso começar agora.
Como ensinou Borges, todos os livros que podem ser escritos já existem, infelizmente eu não quero ler nenhum deles. Isso vai soar estranho, mas não gosto de ler. Leio porque preciso. Minha atividade exige. Mas a atividade em si, eu e o livro, olhando um para o outro, no silencio do nosso entreolhar, me dá uma profunda ansiedade. Daí porque eu prefiro pesquisar enquanto escrevo. Como no meu caso ler é pesquisar, leio quando escrevo.