José Carlos Brandão é poeta.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sou essencialmente poeta. Quando me vem uma ideia, eu a desenvolvo conscientemente. Aliás, procuro escrever sempre conscientemente, mas talvez quando a escrita foge ao controle, o resultado seja melhor. Às perguntas: “De onde veio tal ideia, de onde veio tal imagem?”, tanto melhor a ideia, a imagem, a história, se não puder responder de onde veio. O imponderável é um grande auxiliar, ou mesmo um grande mestre.
É preciso dizer que, escrevendo poesia, não consigo me organizar. O imponderável auxilia e atrapalha. Cada poema é uma nova aventura. O poeta é sempre um marinheiro de primeira viagem. Cada poema é um naufrágio a vencer, ou a se deixar envolver, interminavelmente. O poeta é Robinson Crusoé na sua ilha: nada lhe é oferecido, tem que criar do nada. Não terá aplausos, cria para sobreviver. A vida é uma eterna descoberta.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu planejo muito antes de iniciar um novo poema, mas, depois de iniciado, ou quando ele ainda dorme, ou trabalha no subconsciente, o planejamento pode ir por água abaixo. Geralmente escrever a primeira frase é mais difícil. Então pode-se começar de qualquer jeito, sei que aquele começo provavelmente será apagado, transformado, que nada é definitivo. Conforme o projeto vai-se desenvolvendo, vai sofrendo metamorfoses. Nada é definitivo. A última frase, quando vem a vez dela, acaba sendo também difícil. É imprescindível começar bem e terminar bem. Risco muitas vezes (agora se usaria o verbo deletar, e eu escrevo geralmente ao computador, deletar é a técnica que mais uso) até encontrar a forma definitiva. Costuma ser tão simples que parece um achado inexplicável, é como se fosse um passe de mágica.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Como o que eu escrevo é mais poesia, geralmente não tenho um plano. As ideias vão surgindo, transformam-se em poemas, que depois vão ser reunidos em livro, ou não. Um romance, ou mesmo um conto, exigem maior preparação. Mas não sou romancista, escrevi um romance, que foi até premiado, mas nem o prêmio me convenceu de que era um bom romance. Planejo meus contos, que também não me satisfazem, mas continuo teimosamente a escrevê-los. A poesia é a minha praia, o campo que sei arar, preparar a terra, semear e plantar. Aliás, essa é uma boa definição de como fazer um poema: preparar a terra, esperar o tempo sazonal, plantar, e, se as condições do tempo ajudarem, enfim colher.
Não preciso necessariamente de um ambiente especial para escrever. Escrevia dando aula, enquanto os alunos faziam alguma tarefa, uma prova, uma redação. Escrevi, por exemplo, um dos poemas do meu primeiro livro, e em versos alexandrinos, na época eu praticava metrificação, enquanto os alunos realizavam o exame de 2ª época, que existia então.
Também era comum eu fazer um poema na lousa para mostrar aos alunos como se faz. Eles davam algumas palavras, por exemplo, e eu as ligava – criando imagens, mostrando como era fácil escrever um poema. Se tinha sentido o que eu escrevia, isso era secundário, o essencial eram as imagens, a criação de um corpo imagético a que chamamos poema.
O ambiente não é essencial, mas prefiro estar só diante do computador olhando para a tela vazia e quase dizendo: O que vier eu traço. E qualquer hora é hora, mas ao acordar a mente está mais vazia, mais aberta, mais alerta para as ideias ou as imagens.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
O prazo é um bom estímulo. Como não tenho nenhum compromisso, invento um prazo. Como se eu tivesse a necessidade imperiosa de terminar um texto até tal dia. O prazo me impede de adiar um texto, já que eu tenho a obrigação, que me impus, de terminá-lo e entregá-lo em tal hora. Por outro lado, deixo a preocupação de lado: a procrastinação é bem-vinda, brinco com ela, torno-a mais urgente, quase como se fosse uma questão de vida ou morte.
No ano passado, por exemplo, escrevi um livro no mês de agosto. Eu me disse: este mês tenho que escrever uns 70 poemas para esse livro. Escolhi um tema, ou melhor, no caso, um método ou uma técnica e desenvolvi em cada poema. Escrevi mais de 80. Depois excluí vários. Penso que é um livro a se considerar.
Eu tinha um livro para participar do concurso da V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 1990, deram mais um mês de prazo, escrevi outro e fui premiado. “Presença da morte”. Escrevi 70 poemas em uns 20 dias, e estava dando aulas nesse período, escrevia nos poucos minutos que tinha de folga. A pressão ajuda, parece que alimenta a criatividade.
“Memória da terra” e “O sangue da terra” são poemas sobre a natureza. Nasci numa fazenda, decadente, muito pobre, minha família teve que mudar-se para a cidade para sobreviver. Levei de lá o amor à terra. Era o que eu pretendia mostrar, expor ao mundo.
O “Livro dos bichos” foi planejado normalmente. Fiz um poema sobre uma gata, outro sobre um cavalo, falei: vou continuar. Simples. Escrevi 44 poemas sobre bichos, ou, se quiserem que eu me confesse: sobre o homem visto através dos bichos.
Os “Poemas de amor” foram planejados. Planejei, executei e publiquei em pouquíssimo tempo.
O caso mais drástico, se posso chamar assim, foi o de “O país impossível”. Em 2019, atordoado com tantos problemas que o Brasil sofria, escrevi uma série de poemas sobre o nosso pobre país. Penso que seja um livro necessário, que impressiona. Somente quem é cego não vê os problemas por que passamos. Estava para ser publicado no início de 2020, mas veio a pandemia e parou tudo. Os problemas que deram origem ao livro se apequenaram diante da peste que dominou tudo. Para quem não tiver a sensibilidade embotada, infelizmente ainda é um livro necessário.
Talvez seja interessante falar da gênese de um conto longo (quase 100 páginas) que escrevi. Foi o resultado de um sonho. Eu mesmo acho incrível. Não sonhei ação por ação, nem os personagens, mas a ambiência, o que é mais difícil. Talvez mais do que isso: quando acordei tinha todo o conto fresco na memória. Foi só escrever, o que fiz com relativa facilidade.
Os outros livros meus são feitos de poemas soltos que depois reuni em um livro, como a maioria dos poetas faz.
Eu nunca me senti travado. Ou tenho ideias ou não. Se não tenho ideias, vou procurá-las. Leio aqui e ali, coisas até sem relação com o que eu estava escrevendo, ou pretendia escrever. Posso simplesmente começar a escrever, sem rumo nem prumo, talvez o rumo e o prumo apareçam.
Se acharem exagero dizer que nunca me senti travado, posso concordar que às vezes qualquer escritor se sente assim diante da folha em branco, mas eu driblo o problema. Afinal não tenho a obrigação de criar, inventar, de escrever o mais reles texto.
Não acredito em inspiração, até acho bobagem. Mas digamos que eu me sinta “sem inspiração”. Eu busco a ajuda de Clarice Lispector, que dizia: “O ato de escrever me inspira.” Está aí. O ato de escrever. Ou de ler. Uma boa leitura oferece-nos sugestões, eleva-nos o espírito acima da mesmice cotidiana.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Não saberia dizer qual deu mais trabalho, mas sempre me lembro dos “Poemas de amor”. Eu me lembrei de Neruda, que escreveu: ”Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”. Falei: “Vou escrever 40.” E escrevi, em pouco tempo, com relativa facilidade. Não é que me orgulho mais desse livro, mas considero uma grande vitória tê-lo escrito. Poemas de amor é o tema mais difícil que há para escrever. Mais difícil sem cair no pieguismo, em uma poesia sentimental, chorona. E eu escrevi mais de quarenta. Sem nenhum sentimentalismo. Numa linguagem beirando o coloquial, acessível a qualquer leitor. Depois desse livro eu me senti capaz de escrever qualquer tipo de poema.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Geralmente os escritores dizem que não escolhem os temas, são escolhidos por eles. O tema de tudo que eu escrevo é o tempo, a precariedade, a fugacidade do tempo. Eu escolho os assuntos, e por mais que varie sempre volto a essa especificidade do Eclesiastes: tudo tem seu tempo, há um tempo para nascer e um tempo para morrer, etc. Impossível fugir disso. Escolho uma paisagem, um diálogo, uma frase, uma preocupação do momento, algo que li, ouvi, imaginei, senti, me tocou. Por mais que eu mude o assunto, não posso fugir do tema do efêmero. Vivemos mal equilibrados numa corda bamba sobre o abismo, somos funâmbulos sem equilíbrio nenhum, títeres no palco da vida.
Leitor ideal? Sou pretensioso, creio que sem muita pretensão não se cria nada. Nos “Poemas de amor” eu me imaginei muito pretensiosamente um Manuel Bandeira escrevendo para Mario de Andrade ler. Minha primeira grande oficina literária, com meus 18 anos, foi a leitura e releitura da correspondência de Manuel Bandeira a M. de Andrade. Cada poema de Manuel Bandeira era lido acuradamente por M. de Andrade.
E assim nos outros, eu imagino Drummond, Murilo Mendes, João Cabral lendo-os. Se não virariam muito o nariz diante da minha criação tão tosca.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Os meus amigos são muito bonzinhos, não são bons leitores: aplaudem tudo que eu faço. Hoje só a minha mulher faz uma leitura crítica do que escrevo, tanto aplaude quanto vira o nariz para um poema, um conto ou uma crônica.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu decidi me dedicar à escrita com meus 17 ou 18 anos, sabia que tinha um caminho muito longo pela frente. A questão era não desistir, apurar as minhas ferramentas, criar com dor e estupor.
Quando comecei gostaria de ter ouvido que estava certo: criar como um artífice, com dor e estupor, repito. Cometer os meus próprios erros, até um dia acertar. Um artista não deve ser corrigido, deve ser estimulado. Se tiver qualidade, de um jeito ou de outro acertará. Não deve ser corrigido, não se deve apontar-lhe um caminho. Que ele crie seus próprios caminhos.
Não se deve tolher a liberdade do artista, nem com a melhor das intenções apontar-lhe caminhos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes foram meus mestres na poesia. Tenho citado muito João Cabral de Melo Neto, posso ter levado a pensarem que faço uma poesia do rigor, seca, enxuta como a de João Cabral. Não. Para começar, a minha poesia é emotiva demais, enquanto João Cabral ensinou equilíbrio, rigor, medida, ensinou o espírito crítico à poesia brasileira. Os nossos poetas deveriam lê-lo mais, aprender o que é esse rigor, essa racionalidade que ele nos ensinou.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Em poesia, recomendo sempre Drummond e Murilo. Poderia citar vários nomes, mas é preciso aprender o Brasil, a sensibilidade da nossa terra e da nossa gente.
Em prosa, sempre Graciliano Ramos. É um mestre da linguagem enxuta, sem enfeites, sem afetações. Ninguém mais que Graciliano Ramos e Machado de Assis ensina como escrever. É preciso ouvir Graciliano: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”