Jorge Vicente é poeta, mestre em Ciências Documentais, autor de “cavalo que passa devagar” (voltad’mar: 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A minha rotina é acordar, me lavar, vestir, tomar o café da manhã e ir trabalhar. Nada de muito poético nem nada que se afasta do normal quotidiano do comum das pessoas. O que talvez possa ser diferente é o olhar quase infantil de me aproximar das coisas, talvez a atenção a um pequeno pormenor que acontece nesse diálogo da vida connosco. E existe a leitura que é talvez mais rotineira e que obedece a uma disciplina maior, embora não tanto rígida. Leio quando posso: na casa de banho, no comboio (trem), quando vou fazer qualquer serviço. E sempre com esse olhar próprio de quem se apropria desses pequenos pedaços de vida e de palavras. Leio de tudo e onde posso: posso ler sobre filosofia portuguesa, estudos de género, holismo, esoterismo ocidental, poesia (claro!), contos, romances. E essa leitura me incorpora ainda mais nas palavras. E as palavras na escrita.
Recentemente, no meu mais recente livro, disse que “tenho um pássaro a voar sobre o meu nascimento”. Não sei qual foi o lugar de onde nasceu este poema, mas senti necessidade de querer saber mais sobre maternidade, de me aproximar dessa temática para a explorar poeticamente em livros posteriores.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Talvez durante a noite, no mais completo breu. Ou durante o dia, mas com o silêncio da noite a entranhar as palavras. Não tanto a noite no seu sentido pesado, mas porque, durante a noite, conseguimos ouvir de forma intuitiva os pequenos sons, as pequenas vibrações, as pequenas danças que nos permitem escrever. O ritual é esse mesmo: saber encontrar esse espaço e que esse espaço seja animado por esse silêncio e, também, por música. Não tanto música como acompanhamento, mas música para poder dançar e para que o meu corpo esteja disponível para a escrita. Como diria a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, uma das coisas que mete medo é um corp’a’screver e sinto que essa escrita precisa mesmo dessa animação silenciosa e musical para poder nascer com mais intensidade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem uma coisa nem outra. Em períodos diluídos do tempo que podem transformar-se num corpus textual mais forte ou mais fraco consoante essa diluição seja maior ou menor. No fundo, escrevo quando me apetece e quando a pulsão da escrita me chama. O que é talvez mais uma meta seja a leitura: comprometo-me a ler sempre um pouco todos os dias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu escrevo apenas poesia, a pesquisa é nula. Ou melhor, a pesquisa como investigação é nula, embora a pesquisa interior seja constante e quase avassaladora. As notas quase irrelevantes: uma leitura aqui e outra leitura ali, memórias, notas sobre sensações, ideias, projectos, etc. No entanto, tudo num regime caótico e levemente [ou talvez intensamente] anarquista. Muitas vezes, esse método pode ser perigoso: recentemente, concorri a uma bolsa literária para a produção de um livro de poesia e teria de ter um projecto. O projecto teria de estar muito bem organizado e a concretização da obra não poderia se afastar desse projecto. A minha dúvida principal foi: como não fugir se a minha própria metodologia implica esse diálogo constante entre as ideias-chave do livro e o que me acontece no quotidiano? Tudo o que eu poderia organizar seria talvez uma ideia básica de escrita, não tanto algo muito alinhavado. Mas dessa experiência ficou o título do meu próximo projecto de escrita: Maré.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Antes reagia mal: o meu corpo reagia com impaciência, quase com agressividade, tristeza, melancolia, raiva. Hoje, talvez devido à certeza de que tudo é transitório, reajo com tranquilidade. O mais importante é viver a vida poeticamente, não tanto que essa vida se concretize em poema.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas e muitas vezes. Mas o engraçado é que a revisão também faz parte do processo de descoberta. Explicando melhor: como eu acho que a escrita deverá ser sempre vivencial, eu considero que a revisão também é vivencial e obedece a essa vivência da linguagem intensa e profunda. Quase como um acrescento à obra original. Quase como um exercício sobre uma pintura. Ou um diferente condimento numa comida. Reviso e falo em voz alta, passeio no jardim enquanto digo o poema e o redigo no corpo, etc. É um processo longo, mas bonito.
Em relação à leitura de outras pessoas, muito raramente. A não ser o editor antes da publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão, escrevo apenas ideias, insights, pequenas frases, pequenos diálogos. Depois no computador, extravaso e dialogo ainda mais. Quase como se fosse stream of consciousness ou um extravasamento da linguagem.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De livros. Da dança. Do ritmo da vida. Da melodia, da harmonia, da semântica musical que acontece em qualquer momento do quotidiano. Da música de Clara Nunes. Da humanidade de Pablo Neruda dito por Joan Baez. Do corp’a’screver de Maria Gabriela Llansol. De olhar as estrelas no breu da noite. De pensar e sentir esses sons e esses silêncios musicais nessa noite. Das inúmeras ligações que as leituras provocam: o pássaro que me acompanha no meu nascimento faz nascer o desejo de ler sobre gravidez, a leitura sobre gravidez faz nascer o desejo de ler sobre os fluidos da vida. E assim sucessivamente até atingir todos os níveis de conhecimento.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou? Talvez a dimensão vivencial da escrita que a prática da dança me proporciona. Porque é verdade: a escrita se faz através do corpo e para o desejo de leitura de outros corpos.
O que diria para o jovem escritor: Ama, sente e sê livre.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projecto que ainda não existe: “Casa de la Ronda”: projecto literário sobre uma casa da poesia que não existe, mas que vai existir um dia, tenho a certeza nem que seja de uma forma espiritual. Esse trabalho poético seria também uma reflexão sobre alternativas poéticas, filosóficas, económicas possíveis para a humanidade.
Que livro gostaria de ler e que ainda não existe? Talvez a obra maior de um poeta ainda por nascer.