Jorge Miranda é professor de Literatura e mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras da UFMG.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O ritmo no início do dia é lento: geralmente, tomo café, leio notícias e acesso meu e-mail. Com exceção dos dias em que dou aulas, as manhãs são bastante monótonas. É um período em que eu estou mais disposto a ler do que a escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O período da tarde e o início da noite geralmente são os mais favoráveis para mim. Geralmente são horários em que eu já li o que queria ou que precisava ler, estudei, realizei já alguma tarefa acadêmica ou de trabalho mesmo e, por isso, posso me concentrar para escrever. Acredito também que já seja um horário em que o próprio ritmo do dia me proporcionou alguma experiência ou reflexão que me convidasse a repensá-la em forma de linguagem, um gatilho que me impelisse ao exercício poético. Talvez um ritual de escrita que eu tenho seja, na verdade, mais um tipo de TOC com o suporte no qual escrevo. Se utilizo uma folha pequena, como de um bloco de anotação, de um caderno pequeno ou de uma agenda, por algum motivo pouco explicável não me agrada ter que virar a página para continuar escrevendo o poema, o que implica que ele deve acontecer exatamente naquele espaço disponível. Claro que não é uma regra inviolável, mas vem regendo grande parte da minha escrita, principalmente quando escrevo à mão. Talvez seja porque também não me agrada muito escrever poemas muito longo ou regrados pela discursividade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O habitual é que existam períodos concentrados de escrita, porém esparsos, situados entre fases com pouca ou nenhuma escrita. Não consigo conceber o processo de se escrever poemas regrado com metas diárias, como deve ocorrer com mais frequência para o cronista ou para o romancista, por exemplo. Não que não seja possível a um poeta escrever todos os dias, mas isso ainda pareceria algum tipo de procedimento muito específico, quase performático, voltado para algum tipo de resultado criativo que se pretenda alcançar. Pode-se pensar também muito na densidade ou na força que impulsiona (ou incomoda) quem escreve. Quando comecei a escrever o Antidicção(Cas’a Edições, 2018), escrevi todos os dias, por 16 dias. Havia ali uma série de provocações tentando ser ajustadas que ocasionaram esse ritmo de escrita. Isso aconteceria novamente? Realmente não saberia responder, mas deduzo que seria algo pouco provável.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A maior parte dos poemas é escrita aos poucos, com alguns versos ou estrofes por vez. Vou escrevendo os poemas em cadernos ou em folhas avulsas e espero até que haja um certo volume de escrita produzido. Nesse momento, releio tudo tentando encontrar pontos em comum, alguma linha que atravesse todos ou, ao menos, uma grande parte dos poemas, a fim de analisar e entender se há uma unidade perpassando cada um deles de modo que, caso sejam reunidos, tenham alguma estrutura coerente capaz de se reconfigurar como uma obra. Isso me parece um modo de organizar o próprio processo de escrita, embora também seja tendencioso porque, caso eu detecte alguma unidade temática, por exemplo, corro o risco de, inconscientemente, redirecionar os próximos poemas a se enquadrarem naquela temática, e isso acaba sendo um revés restritivo na tentativa de conferir unidade aos escritos. Quando percebo que alguns versos estão sendo elaborados, raramente já trato de pegar um papel e uma caneta e ir escrevendo: prefiro ir pensando neles, nas possibilidades, escolhas e limitações que vão surgindo no decorrer deles. De cabeça, vou os repetindo até conseguir memoriza-los. Geralmente é assim, mentalmente, que eu “testo” o início de cada poema, até como forma de entender se compensa escrevê-lo. Claro, não é possível decorar ou guardar os versos exatamente como eles foram sendo arranjados (nesse método, eu já “perdi” muitos versos, por sinal, que nunca foram relembrados). A pesquisa surge a partir de necessidades pontuais e específicas de cada poema, como para produzir um efeito específico ou servir de base para um tema ou para alguma relação que tento gerar nele. Por exemplo, no poema “Exegese”, eu tentei relacionar o hino nº. 322 da Harpa Cristã com alguma literatura distante, a fim de obter um estranhamento, um deslocamento abrupto dentro do campo semântico religioso ao qual pertence o hinário da Assembleia de Deus. Pensei na literatura romena, talvez porque, na época, estava lendo a Antologia da poesia romenaorganizada por Nelson Vainer e publicada em 1966. Graças a essa pesquisa, cheguei aos nomes dos poetas Mihai Eminescu e Vasile Alecsandri, e os incorporei ao poema, realizando a tentativa que mencionei. Já para o poema “O homem dos lobos”, a pesquisa foi posterior à escrita do poema, pois como conhecia esse caso clínico freudiano apenas de conversas entre amigos da área de Psicologia, foi necessário conferir, mediante pesquisa, algumas informações, até para certificar que não estruturei o poema a partir de uma versão incorreta do caso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu ainda acho a procrastinação algo favorável para as escritas literária e poética. A menos que existam prazos pessoais ou burocráticos, ter a possibilidade de dizer para a escrita “ah, mais tarde eu te dou atenção, hoje não” pode ser até saudável no processo criativo. No entanto, os bloqueios e as expectativas ainda me afetam, cada qual de modo distinto. Quando a escrita trava, eu fico bastante impaciente, daqueles que rabiscam garatujas compulsivamente por toda a página, como se a escrita devesse sair ainda que à força. Geralmente eu me estresso, olho o quão ridículo foi esse ato e, por fim, fecho o caderno e vou fazer qualquer outra coisa. Só depois de um tempo, talvez uns dias, após ficar pensando e refletindo sobre o porquê de o processo de escrita ter se destrambelhado daquele modo, eu então realizo uma outra tentativa de escrita, agora mais calma e, principalmente, mais crítica, tendo em vista como a tentativa anterior acabou. Quanto às expectativas, talvez meu maior problema seja a autocobrança, manifestada de duas formas. Há, em primeiro lugar, uma perspectiva pessoal de que, já que se está escrevendo, não escreva qualquer coisa. A linguagem é algo potente demais para ser desperdiçada, para ser uma hélice girando em torno do próprio eixo sem gerar voo. Há, também, uma rigidez autopunitiva que me acompanha, fruto de uma educação muito severa aplicada pela minha bisavó, a D. Dulce Evangelista, carinhosamente chamada de Biita. Nada era suficiente para ela que não fosse o melhor. Isso ficou tão arraigado na minha formação que a exigência em apresentar algo minimamente excelente foi, por muito tempo, assimilada como algo natural, benéfico e espontâneo, ao invés de uma violência consentida desencadeada por esse superego erguido pela minha bisavó. Ainda hoje a expectativa por certa aprovação existe, como deve ser comum à espécie humana, mas bem menos condicionante ou opressora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho o hábito de revisar os poemas durante a produção deles. Prefiro outra técnica: a mim, me parece melhor investir um pouco mais de tempo sobre o poema enquanto ele está sendo escrito do que, após termina-lo, ficar indo e voltando para ele com revisões, correções e mudanças. Na verdade, demoro mais tempo para bater o martelo e definir que o poema está pronto. Nessa demora é que a “revisão” acontece. Claro que, depois de terminado o poema, eu o releio mas, nesse caso, o objetivo é mais encontrar erros gramaticais, alguma palavra escrita incorretamente ou uma concordância pouco favorável do que reorganizar um verso ou reajustar o ritmo para uma leitura mais adequada, por exemplo. Para mim, é necessário algum motivo muito pertinente para que eu volte para o poema a fim de realizar alterações substanciais. É muito mais fácil eu abandonar esse poema e me propor a começar novamente do zero um outro do que aproveitar aquele escombro para tentar construir uma casa reformada, entende? Quanto a mostrar os trabalhos produzidos, acho mais interessante apresentar já um conjunto de poemas, quase já em estado de obra, do que um ou outro poema eventualmente. Acho que a contribuição que esse tipo de leitura pode proporcionar é mais produtiva, embora seja importante ter mais paciência no retorno do leitor, já que a quantidade de textos que ele deverá ler é maior. Geralmente mostro meus poemas para umas quatro ou cinco pessoas, mas já contando que duas ou três podem simplesmente se esquecer da resposta implícita que estava sendo aguardada quando eu mostrei os textos para elas. Acontece.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Por muito tempo eu evitei escrever poemas no computador. Me parecia um pouco desconfortável o ritmo de escrita mediado pelo teclado – daí a preferência por escrever os poemas à mão, sentindo a escrita acontecendo à moda antiga, com uma presença maior da mão e do corpo no processo. Sinto que, para escrever no computador, há uma exigência um pouco limitadora de ter que se estar sentado, próximo à mesa, com as costas e as pernas em uma posição específica durante a escrita. Com os rascunhos e a escrita à mão, é possível se permitir, de modo até mais cômodo, escrever deitado, por exemplo, como costumo escrever, além de continuar ser possível escrever sentado, mas mais confortável. Isso sem contar o medo de ocorrer algum problema no computador e simplesmente tudo que foi escrito se perder. Só há algum tempo que comecei a escrever poemas diretamente no computador, mas sempre ressabiado. Quando escrevo no computador, certamente os poemas já foram reorganizados em seus devidos cadernos e, então, posso digitá-los e coloca-los em definitivo em um arquivo do Word ou PDF.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu compreendo que o poeta é um indivíduo atento à realidade, alguém que a observa e a perscruta não só para obter dela algum tipo de matéria, mas também para tentar entender como ela o afeta (e como ele pode perturbá-la, coloca-la, por meio da linguagem, em atrito com suas próprias engrenagens e contradições). Gosto de prestar atenção em determinados usos e empregos das palavras no dia a dia, no ambiente acadêmico, nos programas de televisão, nos livros que leio, sejam eles literários ou não, e retirá-las desses contextos, coloca-las tanto à prova quanto a serviço da poesia e do que ela pode fazer com essas palavras. Às vezes, é possível obter um poema inteiro a partir desse método. O poema “O pós-poder”, por exemplo, foi todo escrito praticamente durante e a partir de uma aula do professor Sérgio Alcides, na qual discutíamos os problemas do conceito de “strong poet”, de Harold Bloom. Não sei explicar muito bem o critério para escolher essa ou aquela palavra: de repente, eu a percebo e ela passa a chamar atenção, como se nela ainda houvesse alguma potência a ser aproveitada que aquele contexto ou situação inicial não precisou explorar. Creio que a manutenção desse estado de atenção vai apurando tanto a criatividade quanto o senso crítico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que o tempo e o contato com a leitura e a escrita poéticas vão nos dando mais segurança, até para lidar com as próprias limitações. Por muito tempo, eu emulava poetas que eu lia e que me impactavam como forma de obter, com esse procedimento, a segurança e a maturidade que me faltavam. Foi assim quando que li Henriqueta Lisboa, foi assim depois que eu conheci a poética de Paulo Henriques Britto e seu apurado manejo com a versificação e com o ritmo. A questão, no entanto, é que tende a chegar um momento no qual você lê esses poemas e não se reconhece, porque a mão os escreveu com máscaras – ou com luvas, como diria Ana Cristina César: o poema é seu, mas um leitor mais atento percebe o Paulo Henriques Britto ali, puxando as rédeas do poema enquanto ri discretamente da sua tentativa fracassada de escrever como ele. Hoje, talvez eu diria àquele Jorge para ser mais sincero, aceitar alguns riscos, se comprometer mais com as próprias experiências e com a forma com que as retextualiza em linguagem poética.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muita vontade de escrever uma versão de A máquina do mundo, um topospoético importante e consideravelmente grandioso no seu tratamento dentro da tradição da poesia. Não sei se ainda é tempo de tentar escrever algo desafiador assim, mas a vontade existe. O entrave surge também quando lembro quem já escreveu poemas acerca desse tema – Dante, Camões, Drummond, Haroldo de Campos e Ricardo Aleixo (para citar os que conheço). Não que haja uma intimidação – ou o seu contrário, uma postura de afronta da minha parte em tentar escrever A máquina do mundopara pleitear uma vaga nesse grupo seleto de grandes poetas. Há, na verdade, uma consciência acerca da responsabilidade em tentar escrever um poema que se organize em torno desse tema e que consiga executá-lo com a devida exigência demandada. Quanto aos livros que gostaria de ler, ficaria bem feliz que existissem dois: uma boa reunião de poemas traduzidos para o português (creio que ainda não exista) da poeta iraniana Forough Farrokhzad (1935-1967); e um livro de poemas do escritor e poeta Victor Heringer (1988-2018). Apesar de que ele estava se dedicando mais ao trabalho com a prosa, produzindo romances bem interessantes (Glóriae O amor dos homens avulsos) e, eventualmente, uns ensaios e contos, a possibilidade de existência de um outro livro de poemas escrito pelo Victor, com sua ternura até na melancolia, seria algo muito animador.