Jorge Henrique Romero é escritor e professor de estudos literários na Unifesspa.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Tudo começa com café. Sou professor de literatura e, portanto, tenho que dividir minhas atividades de escrita com a preparação de aulas que vão desde as disciplinas de literatura brasileira contemporânea até ministrar aulas de teoria literária e literatura comparada. Ainda existem as maravilhosas atividades burocráticas que tomam parte considerável do tempo. Ainda assim, essas atividades são de extrema importância. Acredito que a universidade tem papel fundamental no processo de transformação social e cultural do Brasil. Enfim, os desafios que enfrento enquanto escritor e professor estão muito relacionados e essas atividades acabam se complementando.
Agora, de forma prática, preciso selecionar o material de trabalho e deixar a mesa limpa. Trabalho com vários projetos, mas somente um de cada área (estou trabalhando num romance e, ao mesmo tempo, revisando um livro de ensaios). Acordo cedo, pois a manhã é o período onde meu pico de concentração é mais elevado, inclusive, as leituras mais complexas são realizadas durante as manhãs. Por esse motivo, o ritual de fazer um café logo cedo, pensando no roteiro de atividades é sagrado.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Alguns escritores deixam tudo minimamente planejado e abrem pouco espaço para o improviso. No meu caso, isso vai depender do tipo de projeto. Meu primeiro romance nasceu de uma atividade que foi proposta por uma amiga e mentora, foi quando percebi que havia um narrador escondido, trancafiado e esperando uma pequena brecha para ganhar espaço naquele emaranhado de frases soltas. Depois disso, deixei que esse narrador tomasse as rédeas da história. Tentei frear seu ímpeto, planejei, estipulei um roteiro, mas ele se esquivou e sua vontade acabou predominando.
Sem dúvida, a primeira frase é a mais difícil. Sou viciado em primeiros parágrafos e uma frase inicial bem encadeada causa um orgasmo estético: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Depois de uma frase desta, como é que eu vou parar de ler?
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Tenho meus rituais. Sou um pouco obsessivo e sem essa obsessão não consigo levar adiante alguns projetos. A primeira coisa que sinto necessidade é parar de beber até que a primeira versão esteja pronta. Não sei quem foi que falou que escrevemos com vinho e revisamos com café. Besteira! Claro que devemos sentir fruição no processo de escrita, mas têm dias que tenho vontade de jogar a porra do computador pela janela.
Longos projetos demandam um ritmo peculiar e sempre sujeito a alterações. Mas não consigo escrever quando há um turbilhão de coisas e de problemas. “Escreva todo santo dia!” é o mandamento número um das oficinas de escrita. Não rola. Tem dias que o ato de escrever vai ser somente para alimentar a frustração. Contudo, é pior ainda ficar dias sem abrir aquele arquivo que você sabe que está te esperando.
Eu gosto de escrever ou no completo silêncio, ou ouvindo música instrumental (de preferência jazz ou chorinho). Percebo que penso e escrevo num ritmo mais intenso. Odeio interrupções e desligo o celular nestes momentos.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Acho que desenvolvi mesmo foram técnicas de procrastinação. A leitura, por exemplo. Percebo que recorro à leitura quando não consigo sentar a bunda pra escrever. As séries também ajudam a mudar o foco. Mas quando estou realmente travado, o que parece me ajudar muito são as atividades práticas. As caminhadas ajudam nesse processo, assim como algumas atividades domésticas, principalmente cozinhar.
Às vezes o bloqueio pode ser enfrentado pelas beiradas. Abra o arquivo, rascunhe, se for um texto acadêmico procure fazer tarefas mais práticas (rever as citações e a bibliografia). Se estiver tentando escrever um conto, procure pensar em algum detalhe da história, ou da personagem. Escreva algo, nem que seja pra apagar tudo depois, ou deixe lá para marinar as ideias. Faça essa tarefa no dia seguinte. Não tem jeito, é somente palavra após outra que vamos construindo esse edifício.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
De todos os trabalhos, o mais desafiador está sendo terminar o meu romance “Quanto dura a eternidade”. A metáfora que Cortázar utiliza para comparar conto e romance é muito conhecida. Enquanto o conto ganha por nocautes, o romance seria uma vitória por pontos. Para o romancista, o nocaute acontece desde a primeira frase. São muitos revezes da primeira à última versão. O trabalho de carpintaria é ainda mais exaustivo. Minha gastrite sempre comemora quando termino esses projetos, meu fígado não.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Não escolho os temas. Deixo-me levar por uma imagem, uma cena, um gesto. Meu próximo projeto tem a ver com um enxadrista escravizado no século XIX e que se transformou no líder de uma revolta (a ideia foi anterior ao “Gambito da Rainha”). A ideia surgiu de uma cena, quando pensei numa correspondência entre dois enxadristas e um deles resolveu trapacear.
Não penso em leitores e leitoras ideais quando escrevo literatura, mas tenho tido essa preocupação na escrita dos ensaios. Diferente de um artigo acadêmico para uma revista especializada, há uma preocupação formal que tem orientado esse tipo de escrita.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Lembro do conselho de um escritor famoso que afirmava que escrevia de portas fechadas e reescrevia de portas abertas. Uma vez enviei o capítulo de um livro pra um amigo muito crítico. A análise que ele fez foi excelente, mas fiquei dias sem conseguir continuar a história porque as considerações, mesmo muito boas, acabaram interrompendo o fluxo criativo.
O ideal é que você não interrompa esse fluxo. Não deixe também que sua veia analítica interrompa seu processo. Haverá o momento em que você terá que exercer seu lado crítico mais sádico, mas a primeira versão é o momento de maior liberdade e satisfação.
Eu leio trechos para minha companheira, compartilho com ela e com minha mentora Vímala Ananda Jay que me acompanha desde a publicação de meu livro de contos (“Estúrdio”, Penalux, 2019).
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
A escrita foi um processo de descoberta. Eu sempre tive muitas ideias para contos, mas travava na hora de escrever. Não conhecia as ferramentas necessárias, tinha muitos preconceitos literários (o que é a pior coisa para um aspirante a escritor, ou escritora). Quando entrei numa sala de aula no ensino fundamental, percebi que tinha muitas limitações e que era necessária uma ruptura com uma visão estática, preconceituosa e limitada teoricamente. A universidade não pode domesticar seu espírito criativo, ela precisa catalisar seu potencial artístico e crítico (e quando falo “a universidade”, estou na verdade me referindo à forma como nos deixamos influenciar por ela).
Gostaria que alguém tivesse dito para eu deixar de ser besta, para ler livros diversos e reconhecer que é preciso buscar ajuda para compreender os desafios da escrita. Ajuda que pode vir de leituras, ou de pessoas. O escritor não pode ser um poço literário de autossuficiência.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Seria melhor perguntar quais as dificuldades que ainda enfrento para desenvolver um estilo particular. São muitas essas dificuldades e somente na prática é que podemos encontrar um caminho, ou vários. Em Grande sertão: veredas, livro que me marcou profundamente, há uma passagem na qual Riobaldo narra que olhamos para um ponto do outro lado de um rio, tentamos atravessar, mas chegamos numa parte distante de onde tínhamos planejado. Essa metáfora serve para a vida e, sobretudo, para a escrita. O estilo é algo que procuramos desesperadamente no começo, mas sempre chegamos num ponto distante.
Alguns escritores parecem descobrir seu estilo logo nos primeiros trabalhos. Haruki Murakami, ao escrever seu primeiro romance, percebeu que faltava no livro isso que chamamos de estilo. Inconformado, o escritor japonês traduziu a versão que tinha para o inglês e dessa tradução realizou outra para a sua língua materna. O resultado lhe pareceu mais depurado e confessou que havia encontrado um estilo. Isso talvez não funcione para outros casos e para outros autores e autoras, pois o que está em jogo é um tipo de artesanato da palavra no qual cada pessoa encontrará as ferramentas mais adequadas.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Durante os anos de graduação e pós-graduação, as leituras obedeciam a critérios exclusivos e canônicos. Era avesso às leituras contemporâneas e percebia que isso era mais comum do que imaginava. Alguns professores também alimentavam esse tipo de elitismo e miopia literária.
Vejo hoje o quanto é fundamental ler as produções literárias contemporâneas. Tem muita coisa boa sendo publicada. Tenho recomendado livros de autoria feminina e obras que colocam o dedo em nossas feridas históricas e sociais. Recentemente li O avesso da pele, de Jeferson Tenório; Marrom e Amarelo, de Paulo Scott; Torto Arado, de Itamar Vieira. Além de Conceição Evaristo, Cidinha da Silva e muitas escritoras e escritores negros. São obras que apontam para uma mudança sintomática da literatura brasileira.