Jorge Coli professor titular em História da Arte e da Cultura na Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou noctívago, por isso acordo sempre tarde. Moro num sobrado, e gosto de ver, quando desço, minha cachorra Pirata, que vem sempre me encontrar com seu porquinho ou patinho de borracha na boca. Depois do café da manhã, a primeira coisa que faço é postar no soundcloud um item da minha coleção de gravações áudio inéditas. São concertos ou óperas aos quais assisti. Comecei a fazer isso em 19 de outubro de 2018. Estou na faixa 561. Essas postagens me dão grande prazer, e me fazem voltar a ouvir música que soou já há bastante tempo. Também fico contente em preservar esse patrimônio. Se alguém tiver interesse, o link é este. Depois, respondo a alguns e-mails, resolvo problemas práticos. Em seguida, se eu tiver alguma coisa madura na cabeça, escrevo. Vou em frente. Procuro sempre reservar um tempo para ler obras voltadas para a história da arte e literatura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De hábito, é à tarde. Mas posso virar a noite se for necessário. É preciso sentir que está maduro dentro de mim, no ponto para sair. Talvez um único ritual, quando não consigo encontrar o tom: o de ler alguns parágrafos de qualquer grande estilista, em texto adequado para o que quero escrever. Essa prática me põe em forma para o ataque. Já fazia assim quando ouvi alguém dizer que, se um tenista amador assiste a um jogo de grandes craques logo antes de ele próprio começar a jogar, tem um resultado melhor. Não sei qual a verdade disso, mas é o que sinto: a leitura de mestres mostra-se excelente para dar a partida no motor. Não se trata de imitação ou de plágio, mas de certa euforia que faz baixar a musa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo sem cronograma. A não ser que tenha encomenda. Então, marco uma tarefa, 3 ou 5 páginas por dia, conforme o assunto. Aconselho isso aos meus alunos em fase de escrita para terminar tese ou mestrado. Todos os dias, preencher a tarefa prevista. Se saiu ruim, não tem importância. Depois se volta e se retrabalha. O importante é ter um material sobre o qual dar o acabamento.
Não me importo com períodos. Posso interromper algo que escrevo para fazer outra coisa, e quando volto é como se não tivesse havido interrupção. O hiato pode ser de horas, dias ou mesmo meses. Às vezes, apenas, preciso reler rapidamente o que já escrevi, no caso de um intervalo muito longo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não compilo notas. Sublinho nos livros lidos, marco as páginas, e volto a eles para alimentar a escrita. A primeira frase é importante: é preciso que ela seja clara e breve, proponha um início que interesse. Mas não é difícil começar. Não faço esquemas ou plano de escrita. Vai saindo. O importante, para mim, é o tamanho do que devo escrever. É o tamanho que determina a natureza da escrita: escrever curto é muito mais difícil e toma mais tempo. Sou obcecado com a contagem de caracteres.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No passado, tive procrastinação em relação à minha tese, porque ela foi muito pesada e longa em termos de pesquisa e de escrita. Mas, depois disso, nunca mais houve problema. A experiência de escrever para jornal me ajudou muito, a evitar jargões incompreensíveis ou frases retorcidas. Não tenho travas, nem medo de não corresponder à expectativa dos outros. É a minha expectativa que importa para mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Descobri recentemente um ótimo instrumento de revisão: a leitura em voz alta de cada palavra, feita pelo Word. Ela permite acompanhar com uma atenção que não tenho normalmente com meu próprio texto. Creio que ocorre a muita gente: quantas vezes, por exemplo, vemos gralhas nos títulos. Porque batemos os olhos e achamos que está escrito o que tivemos intenção de escrever, e às vezes não está.
Gosto quando o texto está maior do que deveria porque, relendo para o corte, ele vai melhorando.
Mostro alguns de meus trabalhos para dois amigos, um deles você já entrevistou: o Felipe Martinez. Stephen King tem um excelente livro sobre como escrever, que indico aos meus alunos. Nele, entre outras coisas, há o conselho: escolha algumas poucas pessoas em que você tenha confiança como seus primeiros leitores, e leve suas críticas muito a sério, modificando sempre os senões que eles indicam, para solucionar problemas.
É difícil encontrar bons leitores. Alguns não ousam fazer observações; outros ficam à margem dos problemas principais e fazem sugestões não pertinentes. Alguns editores de periódicos são assim. Às vezes propõem a você um texto do jeito que eles querem que sejam escritos. Uma vez perguntei a um deles: já que você tem um plano tão detalhado a respeito, por que não escreve você mesmo? Outras vezes sugerem desenvolvimentos, digressões, que pensam “ser tendência”, e que brotam do desconhecimento da questão tratada.
Mas uma vez descoberto o bom leitor, conserve-o preciosamente e considere todas as observações que eles lhe fazem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é excelente, nós vivemos uma linda história de amor. Escrevo sempre diretamente no computador. Os jovens de hoje não sabem o trabalho braçal que era escrever antes dessas extraordinárias facilidades. É fantástico poder avançar sem compromisso de correção, voltar, acrescentar, cortar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Na maioria das vezes, são associações que surgem de modo inesperado. A desordem é uma grande aliada. Ler desordenadamente é ótimo para sair da caixa, como se diz. Uma vez o assunto configurado na cabeça, é como se existisse uma antena que captura ondas vindas de lugares os mais diversos. É comum, quando se começa a trabalhar sobre algo, sentir que passam a surgir várias coisas à propos, que se ligam à questão tratada. Parece coincidência meio mágica (os surrealistas pensaram sobre isso) mas não é: trata-se do poder que a antena tem em atrair.
Está claro, num trabalho acadêmico, há uma bibliografia obrigatória a ser digerida. Porém, não é fecundo ficar só nela. A leitura de temas aparentemente muito diversos da questão principal, de romances, de poesia, é muito fértil.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando eu era jovem, escrevia de um modo muito exagerado, eloquente, “barroco”. Por felicidade, tive uma grande orientadora de escrita – e não apenas disso – Gilda de Mello e Souza, que me pôs nos trilhos.
Não diria nada para mim porque que tive quem dissesse para mim. Talvez, apenas, lembrar que a primeira qualidade na escrita é a clareza, sem que isso signifique simplismo. E também o que me disse um outro professor, André Bourde, quando eu vivia na França: qualquer página, ou parágrafo escrito, é digno de respeito e de leitura atenta. Portanto, nunca subestime seu ato de escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos, e não sei se um dia vou realizar. Um deles é escrever sobre a pintura nos Estados Unidos, do século XVIII à segunda guerra. Mas para trabalhos longos, eu preciso de encomenda firme, preciso de data imperativa, senão não sai. Uma vez sugeri a uma editora esse projeto, mas não foi bem recebido. Então, ele está ainda no limbo.
Gostaria de escrever sobre Carlos Gomes, Victor Meirelles e Pedro Americo, a partir de documentos que recolhi há muito tempo e que ainda não utilizei. Mas os convites que recebo são para outras coisas, e acabo deixando esses projetos de lado.
Um livro que gostaria de ler e ainda não foi escrito? Talvez um romance analítico sobre as relações pessoais na Universidade. Outro livro fantástico, e de cunho jornalístico, seria sobre as rocambolescas aventuras que precederam a destituição de Fernando Collor. Nem que fosse a reconstituição apenas a partir do que os jornais publicaram na época: bastaria isso para criarmos o realismo fantástico brasileiro, que é tão real.