Jorge Arbage é escritor, cineasta e historiador.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não possuo rotina alguma em termos de escrita e sinto um prazer inenarrável por assim ser – é quase como proteger minha sanidade. O ato de escrever me é como uma tortura, ter uma rotina de escrita seria ritualizar o sofrimento; mais: seria torná-lo recorrente. Eu não desejo isso. De forma alguma.
Ademais, amo o caos. Há também uma outra questão, um medo terrível de ser vítima de minha própria burocracia e fazer da escrita uma obrigação. Como não vivo dela, posso me dar ao luxo de ser assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre preferi escrever de noite, não sei ao certo o porquê. Creio que a maioria dos que escrevem dirão o mesmo. Não sei dizer se tenho algum ritual, talvez eu tenha, apenas não possuo consciência disto. O que posso dizer é que não sou do tipo que utiliza notas ou esquemas antes de escrever algo, salvo em textos acadêmicas e, mesmo assim, costumo seguir uma linha menos ortodoxa. Gosto de pensar ao máximo antes, idealizar o texto, como se fosse contar uma história oral a alguém. Tudo isso sem necessariamente tomar notas; simplesmente passar dias e dias pensando, de forma que quando você escrever ele sairá de forma mais natural.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não possuo o hábito de escrever diariamente, como citei anteriormente. Não vejo isso como algo necessariamente negativo; conquanto, devo reconhecer o calcanhar de Aquiles de produzir desta maneira, pois me torna refém de “picos” de inspiração e concentração.
É bizarro imaginar que posso ficar um dia inteiro de frente à uma folha em branco sem conseguir escrever três linhas e, em outros momentos, sou capaz de escrever dezenas de parágrafos em questão de horas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A primeira frase sempre é a mais difícil. A folha em branco é infinita, suas possibilidades são inúmeras. Você escreve a primeira palavra e pronto, ela se torna finita. Quanto mais palavras, mais o texto se afunila, as possibilidades se reduzem, ele encontra seu curso.
Sou um defensor da estética, da forma. Detesto aqueles que priorizam o conteúdo sobre a forma: eu os vejo como os assassinos da arte. Trabalhei um certo tempo com cinema, e tenho visto este movimento nas artes audiovisuais. Enfim, é uma opinião polemica.
Voltando ao texto, a ideia que defendo para se mover da pesquisa para a escrita é a seguinte: escreva, o que quer que seja, como se fosse um romance. Pense sempre na forma, faça-o o belo, mesmo se for um texto acadêmico ou uma notícia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Atualmente não me sinto mais frustrado com esses momentos de “bloqueio”. Por um tempo, eles me atormentaram; hoje, os vejo como inevitáveis. Quero dizer, é tudo uma questão de perspectiva. Sem sombra de dúvida que todo escritor, em maior ou menor grau, se frustra com a ideia de se sentir incapaz de produzir. Mas é um fato da vida! O que faço quando me sinto estagnado em algo é simplesmente deixar a coisa de lado, partir para outro projeto. Cedo ou tarde você irá voltar ao texto anterior e a coisa irá andar.
Nesse sentido, projetos longos, embora trabalhosos, me pressionam bem menos. Há muito mais possibilidades para se explorar; quanto menos páginas, maior a pressão que sinto. Tal pressão, no entanto, é pessoal. Penso que todo escritor deve ser o maior crítico de seu trabalho: esse estado constante de atenção te força a sempre a fazer seu melhor e a sempre esperar pelo pior.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras vezes. Na verdade, se dependesse única e exclusivamente de minha vontade eu jamais publicaria qualquer coisa que fosse. Sou do pior tipo: aquele chato, jamais satisfeito; sofro de um terrível complexo de autocritica e busca pela perfeição. Aqui, a primeira resposta está diretamente relacionada à segunda: pedir uma opinião alheia (sempre de alguém de confiança, é claro) não é somente uma forma de melhorar um texto; acima de tudo, é uma forma de fazê-lo existir. Enquanto aquele que lê não me diz “basta!”, irei continuar a escrever, reescrever, revisar… é claro que há o lado positivo, posto que o texto sempre encontra novas possibilidades, ares novos. No entanto, para o bem ou para o mal, uma hora é preciso saber parar e, devo confessar, a capacidade de fazê-lo por conta própria é algo que me falta. Ao mesmo tempo, expor um texto – embora necessário – me é muito doloroso.
Hemingway certa vez disse que um escritor jamais deveria mostrar seus escritos aos outros. Às vezes me pergunto se ele estava correto. Será que ao expor um escrito nosso à opinião de outro não estamos retirando parte de sua pureza? Quero dizer, não há juízo de valor nisso: o texto, após opinião alheia, pode ficar muito melhor. A questão, no entanto, é: ele não estará agora modificado pelo olhar de uma outra pessoa? Será um texto “puro”? Enfim, são apenas reflexões…
De qualquer forma, penso que ninguém – nem mesmo o mais habilidoso e dedicado dos artistas – tem a capacidade de fazer produções extensas sem a ajuda de alguém. Cedo ou tarde o escritor fica com o olhar viciado e perde a capacidade de notar os detalhes ou avaliar sua própria obra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou antiquado e embora reconheça as vantagens da tecnologia, tenho uma eterna suspeição de suas qualidades. Isso não me impede de utilizá-la, é claro. Creio que costumo escrever rascunhos mais pelo computador – por pura questão de conveniência, as vezes estou em um momento bom e tenho medo de perdê-lo – mas, sempre que possível, busco escrever primeiro à mão. Penso que a relação do homem com o mundo físico é fundamental – e isso vale para tudo: a película no cinema, a escultura nas artes plásticas, a folha de papel para o escritor…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Para ser sincero, não tenho a menor ideia…ninguém tem! Quem sabe de onde elas vêm, mente. Senão, como explicar o inevitável declínio de artistas? Absolutamente todo artista segue o trajeto de uma parábola. Se alguém soubesse de onde provêm suas ideias, não haveria bloqueios criativos, decadências ou, em certa medida, obras “ruins”.
Sei, é claro, que elas têm origens diversas, um conjunto que envolve meus sentimentos, minha memória e o mundo a meu redor. Mas essa é uma noção muito vaga e certamente insuficiente.
Penso que saber de onde vêm suas ideias – e pensar ser possível racionalizar este processo – é esterilizar o escritor, limitá-lo somente ao mundo material. Nesse sentido, é curioso que Mao, um materialista (como todo marxista), tenha feito precisamente esta pergunta: “De onde provém as ideias corretas?”. Sua resposta foi: provém única e exclusivamente da prática social. Excelente resposta para um político. Péssima resposta para um escritor.
Não posso dizer que possuo um hábito para me manter criativo. Me vejo como um refém de algo que pode acabar a qualquer momento. Sou vítima daquilo que Gullar costumava chamar de “o espanto”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em termos de forma, pouco mudou. Permanece caótico e em constante estado de constrangimento. A única diferença é que os anos nos tornam mais disciplinados e objetivos. O conteúdo, é claro, muda, pois eu mudei. Creio que a principal transformação no processo de escrita é a forma como lido com um obstáculo. De resto, não penso ter mudado muito.
Se pudesse voltar ao passado, não diria absolutamente nada para o eu-jovem. Tudo na vida tem seu tempo e ser ruim, inexperiente, incompetente – ou o que quer seja -, também é uma etapa necessária. Essa é a tragédia da vida: só aprendemos as coisas depois que elas passam. Fazer o que…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever uma enorme história do Brasil, mas contada por meio de relatos, das histórias de pessoas comuns. Quem sabe um dia eu não o realizo?
Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe, eu encontrei a resposta recentemente. Li Céline, Viagem ao Fim do Noite, e encontrei um divisor de águas em minha vida. Era o livro pelo qual sempre esperei, a obra prima, perfeita, impecável. Após ele, não consigo imaginar um outro livro para ocupar este papel.