Jorge Alberto Nabut é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou jornalista e às 7h30 chego ao trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ritual nenhum. Mas sempre escrevo à noite. As ideias chegam com o sono, que vai sendo adiado, por necessidade imperiosa de escrever. É comum eu acordar à noite, com ímpeto para escrever. As ideias chegam com rapidez. Tenho de lançar mão do primeiro papel que estiver ao lado. Às vezes são jornais que li antes de dormir. E eu vou escrevendo nas margens, virando à direita, à esquerda, desdobrando as páginas, pegando outras folhas, até o sono me abater novamente. No dia seguinte, no retorno do trabalho, passo a decifrar os “garranchos” e levando os textos soltos ao computador. Ali, as ideias tornam-se claras, ou mais ou menos claras, e, assim, passo a raciocina sobre as anotações.
Não fosse o trabalho diário, penso que poderia produzir, regularmente, durante a noite.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Infelizmente não. Mas sinto falta desse procedimento. Daí a “inspiração” que vem solta, em qualquer hora ou lugar. Às prestações. Tenho de parar de dirigir o carro no acostamento para anotá-las. Depois utilizá-las.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uso muito elementos do cotidiano, além de dados referentes à história, à vida privada, muito do universo feminino (lar-doce-lar), contratado com instrumentos e memórias da pecuária, fundamental em minha região e com imagens do universo pop, do rock às histórias em quadrinhos, colagens e citações. Tenho livros de história publicados, daí minha relação com o tema. Tendo trabalhado com antiguidades, a “coisa” se aprofundou, mais ainda, nesta área de recorrências do passado. Uma simples lembrança contada por minha mãe, por exemplo, transforma-se num longo poema.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como nunca tive editor, ainda não deu para ter medo. O receio que tenho é o critério da obra, a estética, a pretensa proximidade com os poetas que admiro.
Tenho preferência por poemas longos, o prazer da horizontalidade, referência à região “em” que habito, o Sertão da Farinha Podre (Triângulo Mineiro), os chapadões planos, abismos horizontais. Meus livros deveriam ser todos horizontais. Explorei a horizontalidade em Sesmarias do Corpo e Livro das Chuvas (2015), quando a topografia se transforma em deserto, cuja linha limítrofe entre areia e céu são os versos distendidos ao longo de sequência de páginas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Fazendo e refaço o poema, tantas vezes, até que do corpo roído restem os ossos, que são a arquitetura habitável dos versos.
Todo artista queira mostrar sua obra. O cineasta sem circuito de salas de projeção transforma-se num frustrado. Talvez seja o artista com mais dificuldade para revelar sua obra. Os artistas plásticos sonham com as exposições, da obra e de si, claro. Com a poesia é mais complicado. Tenho três grandes amigos, Guido Bilharinho (editor da antológica revista internacional de poesia Dimensão), Nícollas Ranieri e Demílton Dib a quem costumo mostrar os poemas novos. Recentemente a Universidade Federal de Uberaba nos presenteou com a proximidade do poeta e estudioso Eduardo Veras, que veio de Belo Horizonte abrir a reduzida obra daqueles que lidam com poesia. Há também amigos à distância, como Ângelo Osvaldo, a quem envio poemas relativos à Minas profunda. Ocasionalmente os leio em público, tenho prazer de lê-los e acredito que com talento para isso. Pode ser que sim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meio complicada. Mais interessante quando era na máquina de escrever. KKKKKKK. Ia virando a folha na máquina, para composição de poemas quadrados ou retangulares. Circulares era impossível fazer. Até hoje, nenhum nem outro consigo digitalizar no computador. (risos)
Escreve sempre à mão. Em papel de embrulho, como dizia Bandeira. Visitando galerias de arte e museus, a “coisa” vem com tudo, acabo escrevendo nas beiradinhas dos folhetos e catálogos. Dois poemas sobre o artista plástico de Araguari, Farnese de Andrade, eu os escrevi visitando a mostra no CCBB, do Rio ou de São Paulo, nem me lembro mais, com curadoria do Charles Cosac, da Cosac e Naif.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que já respondi. Mas caixas de remédios antigos, um trecho de música, uma fala ouvida no café da tarde, coisa de mineiro, a lembrança de alguém assobiando, a fala numa cerimônia religiosa, um trecho do Apocalipse de São João, a cantoria dos Santos Reis e dos congados, a lua mineira atravessando as agulhas góticas da Catedral de Estrasburgo, nossos chapadões redivivos na região de Chartres – o jardim familiar onde Proust brincava quando criança, uma dívida ainda não paga, veem aí juros e correção monetária – tudo isso é motivo para iniciar um poema.
Sou catador de palavras, de arcaísmos que me veem à mente, que leio ou que vejo na publicidade, na carroceria de caminhão, ou até em carroças que ainda nos encantam na periferia da cidade, como elementos surreais que rompem o plasma do passado para fazerem parte da pop art urbana. Mas isso é outra coisa. Costumo usá-las e ainda às vezes as uso nos vácuos que surgem na construção dos poemas.
Uma “simples” rua, não tão simples assim, me motivou a escrever o livro de história Corredor dos Boiadeiros, do qual vendi cerca de 500 exemplares, somente aqui em Uberaba. Aliás, minhas edições são sempre restritas à cidade, sejam poesia ou história. Trata-se de uma rua no limítrofe entre cidade e campo. Por quase cem anos a cidade não ousava atravessá-la. Do outro lado, as chácaras arborizadas com centenárias casuarinas e eucaliptos. Por esta rua transitavam as boiadas que serviram de guia à minha obra. Fui acompanhando os boiadeiros de Uberaba que, nas suas idas e vindas, chegavam, a cavalo, a extremos geográficos inacreditáveis, como Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, de onde traziam o gado traziam o gado curraleiro, muitas vezes trocado por alguns exemplares de zebu, que eles levaram como novidade, trazidos da Índia. Daqui, seguiam, ainda a cavalo, de trem e até de barco, para São Paulo, Belo Horizonte e até Piaui. Somente agora a MRV transpôs a rua, botando a poesia para correr, juntamente com as aves silvestres, as encantadoras seriemas.
Os títulos de meus livros, mesmo quando trato da sensualidade, têm relação com a natureza: Paisagem Provincial, Sesmarias do Corpo, Geografia da Palavra, Livro das Chuvas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Talvez tenha distendido mais meus poemas, me permitindo frases inteiras e longas, derramando versos, como tinta do tinteiro. Uma tinta cara e rara, que é preciso cuidado para não desperdiçá-la.
O que eu diria aos antigos: Morro de saudades deles (Do eu escondido neles?).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já comecei mas empaquei. Uma obra visual, com documentos cartoriais corroídos por traças.
Um que ainda não comecei: Um livro cuja poesia se correlacionasse com o Abstracionismo. Pode ser pretencioso, mas é uma ideia. Poderão vir outras, mais interessantes. Outro seria um livro baseado em rótulos de vidros e potes de farmácia, E por aí vai. Ou não vai?
O livro que gostaria de ler e que ainda não foi escrito num encontro poético entre Perse e Rosa transcrito, inclusive para o braile visando os deficientes visuais que residem próximos à minha casa, na rua Marquês do Paraná. Pode ser uma ideia. Melhor ainda, um livro com a fala sempre surpreendente das crianças imigrantes que mudam a geografia humana da terra, no momento. As grandes levas de sírios e africanos expulsos, por motivos políticos, de suas terras. É destes refugiados que esperamos os grandes testemunhos do que passa a humanidade nestas primeiras décadas do século XXI, muitíssimo aquém do esperado.