Jonnefer Barbosa é professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Realmente tenho dificuldade em escrever sobre mim, publico em blogs com pseudônimos, não tenho redes sociais. Respeito a longa tradição da escrita de si, mas mesmo o filão literário (e também acadêmico) recente da autoficção me incomoda. O eu em sua autocontemplação vaidosa ou marqueteira e o desejo psicótico de ser uma celebridade tornaram-se epidêmicos em nosso tempo, fruto de processos mais amplos, graves e nada louváveis, como a prevalência cultural do neoliberalismo concorrencial – onde tudo se tornou capitalizável, até a imagem de si. Porém entendo que a própria tentativa de se negar a persona-máscara, de fugir da máquina, pode gerar dividendos ainda mais valiosos na especulação e espetacularização editorial, vide o caso de Thomas Pynchon ou Elena Ferrante.
É apenas um comentário inicial, estou longe de querer me colocar como alguém cujo processo criativo possa interessar a outrem. Sou um lumpen do mundo acadêmico, de um departamento de filosofia. Respondo às questões muito mais como um leitor: os escritores são todos leitores que fracassaram, ou não se conformaram em permanecer apenas na leitura.
Apenas uma nota pessoal: não gosto das manhãs. Se não fosse meu trabalho gostaria de acordar todos os dias às 16h. As madrugadas são perfeitas para a escrita, têm frescor, barulhos interessantes (o silêncio total é coisa para místicos e monomaníacos) e escuridão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Madrugadas. Quando estou com uma ideia fixa, o próprio élan deste entusiasmo conduz o processo. O ritual se resume a encontrar uma disposição confortável e, principalmente, desligar todas as conexões com a internet.
É o principal conselho que posso dar para quem sente a necessidade de escrever: além de tesão – sem isso nada se resolve -, é preciso bloquear a internet e desligar o smartphone, o dispositivo espertalhão. São fontes de dispersão e despotencialização do pensamento. A escrita nada mais é do que dar visibilidade a uma potência do pensamento. Por mais insensato e sórdido que seja o ato de escrever – e realmente o é – no momento da escrita é preciso estar com o celular indisponível. É preciso recolhimento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há aqui dois domínios. Uma escrita visceral, quando escrevo textos mais autorais – sem me preocupar muito com o enquadramento disciplinar, podem ser textos de filosofia, literatura, ficção ou crítica – e os textos bundões, acadêmicos, como artigos. Não há como estabelecer cronogramas para os primeiros: é o texto, a impessoalidade desta instância anônima, que expõe suas exigências. Isso pode durar apenas algumas horas ou um dia todo escrevendo, com pausas apenas para necessidades fisiológicas. Já os textos acadêmicos consigo escrever a conta gotas, mas cada vez mais esse tipo de texto me desacorçoa, para usar um verbo de minha infância.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita é kairológica. É preciso não deixar escapar os instantes de abertura, agarrar pelos cabelos a oportunidade. Quem se dispõe a escrever deve carregar um bloco de notas e não deixar passarem os insights. Pois a memória do dia a dia é frágil. Mesmo alguém com uma excelente mnemotécnica, se não anota detalhes do que pensou, corre o risco de perder. E isso não volta. Então é importante, além da paciência, a atenção. São as virtudes cardeais do escritor, que Kafka apreciava acima de tudo: a paciência e a atenção (não a si mesmo, mas ao mundo). E não temer cortar. A maior parte do que escrevemos é lixo, descarta-se. É preciso ter o desprendimento de saber extrair tudo que é redundante, afetado, não pensado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O problema de ser um intelectual no Brasil é que não há profissionalismo no mercado editorial, mesmo nas editoras mais eruditas. É um mundo dominado pela vendagem – no baixo nível do termo – e pelo espírito de clã. Um autor que não tenha seu nome em jornalões ou não seja de clãs familiares ou uspianos, dificilmente terá chances. Essa barreira está presente até mesmo nas publicações de caráter mais acadêmico ou de esquerda. Em filosofia isso é dramático: colegas que estudam uma autora ou autor há mais de trinta anos de repente têm seus temas de estudos na “moda”: as editoras preferem chamar algum articulista da Folha de S. Paulo ou nomes publicitariamente consolidados para escrever prefácios, orelhas, apresentações, etc. Os melhores escritores brasileiros que conheço não são publicados por nenhuma editora de peso ou não estão na mídia. Felizmente isso não foi transposto para os trabalhos de tradução, pois aí é difícil maquiar. O grande problema para os escritores fora da visibilidade dos veículos midiáticos é que não há espaços editoriais para publicação no Brasil. Atuo como professor há doze anos. Meu trabalho no Brasil fica reduzido a editoras acadêmicas, livros com publicação própria, blogues, etc. Isso é um fator de ansiedade e desestímulo para quem começa, ainda mais em tempos da ideologia da crise.
Digo tudo isso pois não tenho travas para escrita, e a procrastinação, se não gerar tempos nulificados, pode estimular a criatividade. Muitos elementos de uma pesquisa não estavam elencados previamente no projeto, é preciso a dispersão e a flanagem para se deparar com o que não esperávamos, e saber recolher isso.
De todo modo, pensar e escrever são atividades ontologicamente muito próximas: só escreve bem quem antes pensa, mas a escrita pode ajudar a organizar o pensamento. A angústia pertence muito mais aos aparatos onde a escrita e seu livre jogo foram capturados e castrados: revistas acadêmicas e textos vinculados à titulação universitária, tribunais, comentários nas redes sociais, etc.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um escritor não pode ser muito vaidoso, é preciso saber cortar, além de revisar. E o trabalho de revisão leva tempo. Não basta escrever e supor que ficou pronto, mesmo sem erros formais encontrados na primeira revisão. Por isso que quem se viciou na rapidez das redes sociais corre muitos riscos de ficar incapacitado para uma escrita mais potente, pois este é um processo demorado, distante da instantaneidade da publicação de efeitos de recompensa imediatos. Se o texto de rede social é uma cocaína (ou, em certos casos, um crack) para seu criador, um bom texto (um livro, um ensaio, etc) é como fazer um vinho ou uma cachaça de qualidade: demanda algumas semanas ou meses na gaveta, para que o texto aprenda com as intempéries, repouse como um destilado, só assim se criam boas condições. A fermentação aqui é tempo para que um texto apareça como se fosse de outrem, quando podemos sofrer estranhamento com o texto que escrevemos. É sobretudo uma questão de legibilidade e exterioridade: quando o texto passa a ter uma historicidade que não é o imediato ou a pura idiossincrasia. Toda leitura é perpassada pela historicidade, ou pela mediação de um fora, mesmo no texto mais íntimo que escrevemos. Não há solipsismo na escritura, nem mesmo na escrita automática surrealista. É o momento em que será possível saber se um texto sobreviverá ou não, se saiu vinho – mesmo que com alto teor alcoólico e estupefaciente – ou um vinagre sem interesse. Ou seja, o tempo da escrita e o tempo da leitura não estão em conexão automática, o escritor é também um mestre na arte do diferimento e da demora. Todo bom escritor é, acima de tudo, um bom leitor.
No momento da escrita sugiro não mostrar para alguém, pois há aí uma recompensa psicológica que é antecipada. E, antes da publicação, depois de escrito, apenas para pessoas que você realmente confie, intelectualmente e também afetivamente, pois pode ser uma experiência traumática. Minha esposa é uma ótima leitora, pois não é complacente comigo. Mas para isso é preciso muita afinidade e intimidade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço notas à mão, e como não sou disciplinado elas estão nos lugares mais improváveis: guardanapos, recibos, até em cédula de dinheiro já escrevi para não perder uma ideia. Respeito muito o trabalho épico de colegas que tiveram de escrever suas teses nos anos oitenta, em máquinas de escrever pesadas, etc. Mas o computador para a escrita é incrível: a rapidez, a possibilidade de correção rápida, etc. Os desafios, porém, mudaram: não nos preocupamos mais com os pequenos erros (a máquina quase pensa por nós nesta dimensão puramente gramatical), é possível corrigir instantaneamente, mas é cada vez mais difícil estar atento, também pelo fato do computador não ser tão-somente um dispositivo para escrever. Não há retorno, não voltaremos mais à época heroica de Hemingway com sua Smith Corona. Há novas facilidades para o escritor, e desafios antes impensáveis.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Estou com Oswald de Andrade: só me interessa o que não é meu. Mais do que criação e originalidade, a escrita envolve a formação de um plano de consistência. No vocabulário deleuziano este termo tem um sentido preciso, só quero mencionar que escrever, mais do que buscar a quimera de uma originalidade ou “novidade” (fetiche facilmente capturável pelos “mercados”), é encontrar uma expressividade própria, absolutamente histórica. Escrever pertence muito mais à articulação do que à falsa noção de uma criação ex-nihilo, ainda mais nos tempos da criação e proliferação tóxica das “informações”. Não escrevemos sem outros e outras que povoam nosso discurso, isso é um clichê sério, extremamente válido. Escrever é algo que está mais para a despossessão e a despersonalização – a própria linguagem é uma instância comum e anônima – do que para a afirmação de um sujeito. Como jogamos e potencializamos (politizamos, erotizamos, etc.) essa vacância da linguagem? Essa é a pergunta de quem se propõe a escrever.
Hábitos para se manter criativo: ler de tudo, sem preconceitos ou delimitações disciplinares. Toda boa escrita é um ato de indisciplina e de rebeldia contra as disciplinas e especialidades temáticas. Os bons escritores embaralham os campos. Não sabemos muito bem se Sebald escreve história, literatura, comentário de imagens, etc. Tudo o que gosto e leio tem essa característica.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
As pessoas não amadurecem, isso é um clichê fraco, mas podem abandonar certas teimosias. Contra o mantra de que somos incendiários aos vinte e bombeiros aos quarenta, respondo com Álvares de Azevedo, que dizia “fui poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta, sou um vagabundo sem pátria e sem crença aos quarenta”. Para mim se intensifica o desejo de deserção, inclusive da escrita – de um certo tipo de escrita que faz mover o moinho do dispositivo acadêmico-explicador. Não gosto dos autos de consciência, neles nos envolvemos com pensamentos tristes e despotencializantes, ao sentido de Espinosa. Provavelmente minhas escolhas seriam mais radicais e menos burocráticas. Só um parecer jurídico é mais broxante que uma tese acadêmica! De todo modo, isso não importa agora.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sou um escritor profissional, não ganho a vida com minha pena, como costumavam dizer os escritores do séc. XIX. Também não idealizo a escrita e a vida dos escritores: há algo de sórdido na atividade, é muito difícil não se tornar uma espécie de “janota da alma”, um marqueteiro de si. Com o risco, no Brasil, de começar a escrever para a Folha de S. Paulo ou participar de mesas redondas na TV. Hoje só nos resta a hipótese Belchior, que é a deserção irrestrita. Nem a luta armada sobra como hipótese. A resignação, o medo e os golpistas venceram no Brasil. Por falar em Belchior, gostaria muito de ler o que ele escreveu nos últimos anos antes de sua morte, em seu estado de fuga permanente, ou o diário (inexistente) de um traficante de armas na antiga Abissínia, chamado Rimbaud. Gosto da imagem de alguém que escreve depois de desertar da escrita, a despeito e contra si mesmo. Isso é possível e geralmente saudável para todo escritor.