Joice Lima é escritora, atriz, diretora de teatro e dramaturga, autora de “Hortênsias de Agosto” (2018), “Amor doentio de mãe” (2006) e “Uma gaúcha em Madri” (2008).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pela manhã faço coisas de casa (louça, roupas, etc.), preparo o almoço e trabalho toda a tarde (em assessoria de imprensa). Prefiro escrever à noite, depois que volto do trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor à noite, quando a casa está quieta e não sou interrompida. Quando estou em pleno processo de escrita, abro o notebook, já com uma xícara de café ao lado e todos os meus bloquinhos de anotações, para o caso de querer consultar algo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta de escrita diária. Às vezes escrevo um capítulo em três dias, outras vezes levo duas semanas para concluir um único capítulo de nove ou onze páginas. Procuro escrever um pouco cada dia, mas às vezes passo semanas sem escrever uma só linha. Fico assistindo filmes, séries, novelas, lendo… Qualquer coisa que me distraia. Só consigo escrever se não tiver algum problema ou algo por resolver na vida pessoal. Preciso estar “leve” para colocar toda a minha concentração na história que estou criando. O que dificulta um pouco, afinal o “normal” é a gente sempre ter algum problema por resolver.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A etapa inicial é decidir qual é a história que quero contar, quais os personagens vão protagonizar essa história, qual será o enredo principal, os temas que vou abordar. Depois disso, parto para a criação dos personagens, pelo menos dos cinco ou seis principais. Talvez pela minha formação de atriz, para mim é imprescindível ter os personagens bem formados antes de partir para a escrita, propriamente. Preciso ter claro como eles são, física e psicologicamente; o seu trabalho, a casa, a família, os amigos, se dirigem ou não, se têm pets, plantas, vícios; os objetivos, medos e fraquezas; suas belezas também. Ao mesmo tempo, vou criando a história – a criação é uma delícia, é a melhor parte! Faço anotações em qualquer lugar, a qualquer hora. No caminho pro trabalho, no meio da noite, na sala de espera do dentista… Quando estou em processo de criação, minha cabeça não para de funcionar um instante. Depois faço um roteiro, por capítulos, que naturalmente acaba por se modificar, já que vou adicionando coisas, dividindo capítulos em dois ou três, mudando algumas informações “de lugar”, etc. Então, organizo todas as anotações que fiz até esse momento – chego a ter 90 páginas apenas de anotações – e as distribuo ao longo do roteiro (capítulos). Apenas na etapa de organização do roteiro, que é um verdadeiro quebra-cabeças, levo de dois a três meses. Só depois disso é que começo a desenvolver cada capítulo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu acho que tudo encontra seu momento certo. Se estou adiando, é porque não estou em um bom momento para escrever. Preciso estar “inteira”, daí me meto na história, de verdade, e o texto flui. Se tento “me forçar”, não rende. Felizmente por enquanto não tenho deadlines a cumprir, então posso me dar ao luxo de “respeitar o meu tempo, o meu momento” e só escrever quando realmente estou a fim, e não por obrigação, para cumprir um prazo.
Não tenho medo de não corresponder às expectativas, porque escrevo o tipo de livro que eu gostaria de ler. Assim, vou “agradar” aqueles que tiverem as mesmas necessidades literárias que eu tenho. Não tenho nenhuma pretensão de agradar a todo mundo, até porque, se você parar para pensar, ninguém consegue isso. Ninguém é unanimidade. Existem clássicos de autores consagrados e até de best sellers, por exemplo, que eu sofri para ler até o final, porque não me identificava, não era meu tipo de leitura. Do mesmo jeito, sei que muita gente, se pegar meu livro “por obrigação”, porque me conhece e acha que “me deve”, por exemplo, não vai curtir. E também haverá muita gente que vai se identificar, que adora uma história romântica e pequenos dramas do dia a dia, de gente “normal” e engraçada, e vai gostar. E para mim está tudo bem. Escrevo porque me dá prazer, porque o processo é gostoso. Se outras pessoas gostarem, só vai somando.
Quanto à ansiedade… Acho que no final é que começo a ficar um pouco ansiosa, querendo vê-lo pronto. Mas não chega a ser negativo, pelo contrário, até ajuda a dar um gás no final.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Estou escrevendo o quarto romance. Acho que estou ficando, progressivamente, mais e mais exigente comigo mesma. Se no primeiro livro eu mal revisava, agora releio várias vezes, mudo palavras, frases, às vezes corto trechos inteiros, ao reler, porque acho que ficaram “sobrando”, ou guardo nos meus rascunhos para, quem sabe, usá-lo em outro momento… Costumo mostrar o que escrevo para minha melhor amiga e para a minha mãe, que também é minha melhor amiga, porque as duas curtem o mesmo tipo de leitura que eu, apenas para “medir a temperatura”. Mas acho que, no fundo, fico procurando aprovação, porque já sei de antemão que elas gostam de tudo o que escrevo e nunca me criticam, só me reafirmam.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho blocos e cadernos na bolsa, ao lado da cama, na cozinha, ao lado do notebook… Na fase de criação, faço anotações em qualquer lugar que esteja, logo passo tudo para o computador. Depois de ter o roteiro pronto, já com as anotações nos seus “devidos lugares”, escrevo direto no notebook. Como sou meio esquecida e tenho medo de “perder ideias”, cada vez que entro no arquivo, salvo com a data do dia. Assim, tenho uma pasta para cada mês e dentro do mês, arquivos de cada dia que trabalhei – um exagero, eu sei; então meses mais tarde vou lá e deleto parte dos arquivos. Também salvo em pen drive e, lá de vez em quando, no Drive, para não correr o risco de o computador estragar e eu perder tudo. Se isso acontecesse, acho que eu ia ficar muito, muito brava.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm dos mais variados “lugares”. Tudo está, de alguma forma, relacionado à minha vida e às minhas vivências/experiências, o que inclui todas as pessoas ao meu redor e as vivências delas também. Hoje, por exemplo, estive em um enterro e o padre que fez a oração era um personagem completo. O homem era tartamudo – era a primeira vez que eu via um padre gago conduzir a cerimônia de despedida de uma pessoa recém-morta –, mas não era só isso. Tudo nele era hilário. O que dizia, os trejeitos, até os gestos abruptos para espantar uma mosquinha invisível (eu não via, mas não quer dizer que não estivesse mesmo lá, porque nessas capelas de velório costumam haver insetos)… E quando dei por mim, estava fazendo anotações mentais, porque provavelmente algum dia essa cena esteja em algum livro meu. Talvez não no que estou trabalhando atualmente, mas em algum romance, no futuro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo mudou muito, desde 2006, quando escrevi o primeiro romance. Eu já fazia um pré-roteiro e definia alguns personagens, mas de maneira bem mais superficial. Agora me aprofundo mais em tudo, também estou mais metódica, mais organizada, exigente, detalhista. Acho que estou melhor. Lembro que um amigo escritor me disse, lá no primeiro livro, que faltavam “detalhes”. Na época, eu não consegui compreender, não achava que faltavam detalhes. Hoje concordo 100% com ele: com certeza, faltavam detalhes que teriam deixado o livro mais rico e a história mais crível, de modo a envolver mais o leitor. Se eu pudesse voltar lá, diria a mim mesma: “Escuta o Freitas, ele tem razão. Atenção aos detalhes!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O meu maior projeto, no momento, é uma viagem à África, parte importante do romance atual em que estou trabalhando. Desde “Hortênsias de Agosto”, que se passa na ilha do Corvo, nos Açores, e eu estive lá para “colorir” minha história, decidi aproveitar minhas viagens a diversos lugares para os romances. Assim, a história do atual vai se desenvolver em diversos países em que já estive e parte importante dele será na África – não posso revelar para não dar spoiler, mas tem que ser lá porque tem a ver com o enredo que eu criei; é… eu mesma me coloco em situações/desafio… de modo que tenho que fazer essa viagem acontecer em 2020, para concluir o meu romance.
Sobre livros que eu gostaria de ler… Já existem tantos que quero ler e nunca conseguirei – você não se sente minúscula ao entrar em uma biblioteca? Eu, sim! Sei que por mais que eu fosse uma devoradora de livros (e não sou), não chegaria a ler 1% de todos aqueles livros. Fora isso, se é para “viajar” sobre algum livro inexistente, bem, eu gostaria de ler o livro que contasse “o absurdo que foi a era Bolsonaro, um período de trevas que, felizmente durou pouco porque os brasileiros despertaram de seu estado de loucura-coletiva” e que a gestão foi apenas eternizada em um livro como um período trágico da história brasileira, assim como na Alemanha teve o período nazista e o holocausto: algo para se recordar, aprender e não deixar acontecer de novo. Esse era o livro que eu gostaria de ler. Isso se essa pessoa insana não mandar queimar todos os livros, até lá…