Johann Heyss é escritor, tradutor e músico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como quase todo escritor, não pago as contas com minha literatura. Para me sustentar, trabalho como tradutor (principalmente literário) e professor de inglês online. Portanto, meu dia-a-dia de freelancer é caótico e desprovido de rotina, a não ser pelos alunos, que têm horário fixo para as aulas online. Acordo bem cedo de segunda a quarta, dias que dedico majoritariamente às aulas online. No resto da semana durmo tarde e acordo tarde, e é quando me dedico mais a traduzir e a escrever, especialmente do meio da tarde até a madrugada. Mas uma rotina matinal posso dizer que mantenho: ler livros de ficção ou poesia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O período em que trabalho melhor, quando minha mente está mais ativa e criativa, vai do fim da tarde até a madrugada, chegando ao amanhecer. De manhã só escrevo (à mão) ideias vindas de sonhos para serem desenvolvidas depois, e isso quando acordo pela manhã, o que só faço três dias por semana e meramente para ganhar a vida. Se dependesse apenas da minha vontade, jamais dormiria antes de 3 da manhã e nem acordaria antes das 11, pois acho o período matinal deprimente e improdutivo.
Não tenho nenhum ritual para a escrita. O texto flui de mim sob pressão; seja a pressão de eu mesmo precisar deixar uma história sair de mim e ganhar vida própria em forma de livro, seja a pressão do prazo para entregar um texto encomendado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias de alguma forma, sejam ideias, poemas ou algum relato onírico no meu diário de sonhos. Mas quando resolvo escrever um romance, me concentro nele durante um ou alguns períodos até achar que ele está pronto para ser publicado. Já li declarações de escritores que não conseguem retomar um romance depois de interrompido — o grande João Ubaldo Ribeiro era um que dizia isso, ele precisava escrever num fluxo. Já eu posso deixar um livro adormecer incompleto por longo período e depois finalizar, assim como também posso escrever um romance direto, em 3 meses ininterruptos. Depende muito do tipo de narrativa.
Não tenho meta diária de escrita. Minha meta está sempre voltada a projetos, e muitas vezes é preciso parar de escrever para ficar relendo o que já foi escrito, ou mesmo para parar de pensar no projeto e retornar a ele dias depois com a cabeça fresca e olhos renovados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevo um romance, o primeiro passo é definir a trama em no máximo cinco frases. Depois divido a trama em capítulos, fazendo um resumo de tudo que acontece em cada capítulo. O terceiro passo é definir as personalidades dos personagens, seus nomes completos, suas breves biografias individuais, seus traços físicos (cor dos olhos, pele e cabelo, altura e peso etc.), suas qualidades e defeitos, seu signo astrológico, suas cores favoritas, suas preferências em música, cinema e livros, tudo que me ajude a traçar um perfil vivo e consistente do personagem. A maioria dessas informações não aparece no texto, mas é nelas que eu me baseio para conduzir os personagens pela trama. O quarto passo é escrever o livro em si, segundo o roteiro pré-definido para cada capítulo. É possível que esse roteiro pré-definido seja alterado caso eu mude de ideia ou algum personagem resolva tomar “vida própria”. O quinto e último passo é revisar exaustivamente o texto até ele ficar no ponto para ser publicado — e posso ser bastante obsessivo nessa fase.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho trava na escrita, tenho trava no tempo do qual disponho para escrever literatura. A procrastinação existe quando traduzo, não quando escrevo. Escrever é uma coisa dolorosa em vários sentidos, mas é uma dor que conduz a um bem maior, como quando a gente faz exercícios físicos que podem ser desagradáveis, porém benéficos para a mente e o corpo. Esse bem maior, a finalização e publicação do livro, é um combustível para mim, por isso nunca procrastinei como escritor de ficção ou de poemas.
Não são muitas as expectativas às quais um autor brasileiro como eu, no terceiro romance, que publica por editoras pequenas (ainda que conceituadas), desconhecido do grande público, precise corresponder. A expectativa é ser lido e despertar algo nas pessoas, causar sensações e emoções. Em outro nível, há a expectativa de que as pessoas não apenas leiam como gostem do livro, comentem sobre ele. Até agora só tive críticas e comentários positivos (mas estou preparado para os negativos), então ainda não desenvolvi o medo de não corresponder às expectativas, mas sei que esse medo virá à medida que eu for publicando mais romances.
Trabalhar em projetos longos me traz uma sensação de excitação e de segurança e organização, não de ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meu terceiro romance, “Crianças do abismo”, era para ter sido o primeiro. Escrevi e revisei o livro incontáveis vezes entre 1995 e 2017. Para não enlouquecer e não desistir da literatura como escritor, em 2015 deixei “Crianças do abismo” de lado para escrever um romance despretensioso, “A fada do dente” (publicado pela Amazon como e-book), o que me liberou psicologicamente para escrever e publicar (pela Patuá) meu segundo romance, que revisei umas dez vezes. Só então pude finalizar a revisão de “Crianças do abismo”. Basicamente cortei trechos e dei forma à ideia original depois de um longo processo de amadurecimento.
Meu amigo de adolescência Joaquim Passos e outro amigo, o músico Daniel Albinati (a.k.a. Daniel Watts), têm sido os primeiros leitores dos meus romances.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo só no computador. A não ser pelo diário de sonhos, que rabisco à mão ainda sonolento, logo que acordo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Desde criança sempre fui cheio de ideias para romances, poemas e canções. Acho que minha criatividade está relacionada à minha tendência a misturar polaridades opostas e supostamente incompatíveis, o que fica claro se eu disser que minhas maiores inspirações na literatura são Clarice Lispector e Charles Bukowski. Essas misturas me inspiram a gerar frutos improváveis. Não faço nada para me manter criativo, a criatividade faz parte da minha personalidade, para o bem e para o mal.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O ponto de mutação que me possibilitou ser de fato um escritor de ficção foi trabalhar por uns três ou quatro anos como tradutor para a editora Harlequin. A Harlequin é uma editora muito famosa em seu ramo, que é o de livros “femininos” românticos, desses tradicionalmente vendidos em bancas de jornal. Os prazos eram apertadíssimos, um livro de cerca de 250 páginas por mês. Claro que estava longe de ser meu tipo favorito de literatura, mas há nesses romances uma eficaz técnica de narrativa com o objetivo de cativar e prender os leitores, e acabei assimilando essa técnica. Tanto que meu segundo livro é uma história de amor que perverte os valores das novelas românticas da Harlequin, mas mantendo toda aquela estrutura de narrativa. Antes de traduzir para a Harlequin eu era apenas estilo e ideias, mas sem estrutura nem técnica, coisas que eu ganhei ao traduzir dezenas de livros de literatura estritamente comercial e de entretenimento para a editora.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria a mim mesmo: estude Letras aos 18, 19 anos. Mas talvez não adiantasse eu dizer nada a mim mesmo, porque sempre fui autodidata em tudo que faço.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever uma série ou minissérie (mas não para nenhum canal de televisão aberta), e de roteirizar meu segundo livro para o cinema. Gostaria de ler a autobiografia de Yoko Ono, que ela já disse que jamais escreverá.