Johann Heyss é escritor e tradutor.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
No meu caso, organizar implica adaptar, já que trabalho também como tradutor (inglês<>português) e revisor para diversos clientes. Começo a escrever ou traduzir por volta das onze da manhã e adentro a madrugada — obviamente com pausas para descansar, me exercitar, comer etc. Assim vou intercalando projetos autorais de ficção e trabalhos variados por encomenda. Já os poemas podem surgir a qualquer momento e independem uns dos outros; meus livros de poemas são coleções de textos escritos ou finalizados durante determinado período. Uma exceção a essa dinâmica é o recente “O Tarô de Thoth: Poemas” (2020), no qual escrevi um poema sobre cada um dos 78 arcanos do tarô criado por Aleister Crowley e desenhado por Frieda Harris. Levei mais ou menos uma semana para escrever tudo sem esperar por inspiração, mas usando o poema como formato para traduzir a imagética de cada arcano.
Quanto a preferir ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo ou não, confesso que às vezes fantasio estar concentrado em um só trabalho para variar, mas já estou acostumado a transitar entre projetos simultâneos.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Planejo tudo no começo. Para escrever um romance preciso, antes de qualquer coisa, sentir a atmosfera daquilo que quero expressar, o que não é algo que sempre ocorre de modo consciente (só vim a entender “Às vezes o buraco é mais embaixo” após o livro já lançado). Com a atmosfera assimilada e a história essencial imaginada, escrevo o enredo em uma página; começo, meio e fim, com todos os acontecimentos principais que serão desenvolvidos. Então, para definir os personagens, vou lhes atribuir características físicas, gostos pessoais, estilo visual, tendências políticas, preferências gastronômicas, signo zodiacal — coisas que talvez nem apareçam no livro, mas que me dão sustentação para desenvolver cada personagem e fazer com que criem vida “própria”. A etapa seguinte consiste em dividir o enredo em capítulos para, finalmente, desenvolver cada capítulo de acordo com o que foi pré-definido. Essa é a parte mais difícil, mais trabalhosa, e depois o texto ainda precisará ser lapidado e relido e refeito várias vezes.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Normalmente não sigo rotina. Meu lado esquemático não vai muito além da construção do esqueleto das narrativas. Posso estar bem adiantado em um livro e interromper seu desenvolvimento para começar outro, mas depois sempre volto ao anterior, ainda que acabe iniciando um terceiro. Quando sinto que um texto emperra, parto para outro e, enquanto isso, vou fermentando soluções e atrações em segundo plano para depois voltar ao texto inacabado.
Quanto ao silêncio, raramente recorro a ele. Normalmente o silêncio total me desconcentra. Gosto de escrever ouvindo música, especialmente clássica ou instrumental moderna, jazz antigo, ou canções que já conheço muito bem e, por isso, não me distraem, funcionando na verdade como um confortável pano de fundo.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Escrever mais de um livro ao mesmo tempo é a minha maneira de não procrastinar.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
“Crianças do abismo” foi o livro de ficção que mais me deu trabalho e é o livro do qual mais me orgulho. Uma coisa não tem relação com a outra, não acho que qualidade seja resultado obrigatório de esforço. A dificuldade de escrever esse livro tem a ver com minha decisão de apresentar um tema já insólito (magia, mais especificamente magia sexual e magia com uso de drogas) buscando uma estética própria.
Também me orgulho muito de “Aleister Crowley: a biografia de um mago”; é um livro que exigiu mais de uma década de pesquisa e se tornou referência em língua portuguesa para interessados na vida de Crowley e em ocultismo em geral.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Meus interesses são muito variados e não me encaixo facilmente em rótulos, nem como escritor, nem como músico, nem como pessoa. Isso faz com que eu tenha contato com indivíduos e perspectivas de tipos muito diferentes, até mesmo contraditórios. Além disso, tenho como característica essencial do meu trabalho a busca por confrontar ideias e estéticas contrárias, e não necessariamente buscando uma harmonia ou uma solução para esse confronto, mas antes buscando, através da ênfase no contraste, certa desafinação, certo deslocamento. Tudo isso se reflete nos temas que escolho para meus livros.
As pessoas que tenho como público alvo são todas aquelas que buscam narrativas estruturadas e fluidas, mas de alguma forma inusitadas no conceito e/ou na mensagem. Gente de todas as idades, de adolescentes a idosos, de todas as origens sociais, étnicas e culturais. Não digo isso de maneira leviana; meu trabalho sempre mirou na mistura, de modo que esse amplo leque de grupos humanos que busco como leitores não é falta de critério, mas reflexo do conceito multifário e contraditório que norteia o meu texto.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Rascunhos eu não mostro para ninguém, só trabalhos prontos (que poderão e deverão ser revisados como qualquer texto, mas, ainda assim, são trabalhos prontos, não são textos inacabados). Normalmente os editores são as primeiras pessoas a ler meus manuscritos, com a eventual exceção de um ou dois amigos muito próximos.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Percebi que ia me dedicar à escrita quando fui alfabetizado, com os primeiros livros incluídos no currículo escolar. Sempre tive fui tão bom aluno de português quanto péssimo de matemática; minhas redações sempre ganhavam notas altas e até comecei a vencer concursos de poesia e redação nas escolas em que estudei. Alguns professores perceberam minha vocação e procuraram me orientar informalmente, me indicar autores e analisar meus textos. Ainda no começo da adolescência, tive a oportunidade de conhecer dois de meus escritores favoritos, Ferreira Gullar e Marina Colasanti, que me deram a honra de ler meus textos imaturos e de escrever notas recomendando esses textos. Claro que as simpáticas notas observavam que o autor era uma quase uma criança (a nota do Ferreira Gullar foi compartilhada no meu Instagram e demais redes sociais). Felizmente, demorei muito a publicar poesia e ficção, mas o estímulo e as críticas que recebi desses e de outros professores, autores e profissionais do mercado editorial foram fundamentais para solidificar minha vontade e reafirmar minha vocação para a escrita autoral.
Acho que ouvi o que tinha de ouvir das melhores fontes possíveis ao meu alcance.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Minha maior dificuldade para desenvolver um estilo próprio foi aprender a estruturar a narrativa, no caso da ficção, e a lapidar o texto, no caso dos poemas. É sempre difícil saber a hora de parar de lapidar. Reler meus livros já publicados é angustiante por isso; nunca deixo de encontrar algo que eu e os revisores e editores dos livros deixamos escapar. Tenho passado muito por essa situação agora que estou vertendo alguns de meus livros para o inglês e o espanhol.
Os autores que mais me influenciam são aqueles que mais afirmam sua própria individualidade na escrita; aqueles que transformam em estilo algo que a tradição considera defeito. De toda forma, autores que li quando criança ou bem jovem e me marcaram bastante, certamente influenciando meu estilo (mesmo que de modo não proposital) são Cecília Meirelles, Ferreira Gullar, Oscar Wilde, Hermann Hesse, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Ana Cristina Cesar, Charles Bukowski e Aleister Crowley.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Sempre recomendo muito “A maçã no escuro”, de Clarice Lispector, porque considero o melhor livro daquela que é minha escritora favorita dentre todos e todas. É um livro que abre universos na mente da pessoa. Eu só não digo que é um livro que transcende a arte porque o objeto máximo da arte é mesmo fazer transcender.