Joaquim Falcão é professor Titular e Diretor da FGV Direito Rio.
São duas as rotinas que sigo: a urgência dos compromissos inesperados e a maturidade das ideias flutuantes. Quando uma encontra a outra, é deslumbramento. Mas nem sempre acontece.
Como identificar esse encontro? Tenho um indicador preferido. Acontece quando o título do texto anuncia e sintetiza tudo que quero dizer. Fala por si próprio. Com tanta intensidade que, às vezes, dispensaria o próprio texto.
Imagino então que um artigo acadêmico ou de jornal deveria ter um título tão auto explicativo que, em seguida, a primeira palavra do texto deveria ser: “Portanto…”. A partir daí o leitor nunca saberia se ainda estava no título ou já no próprio texto.
Não custa lembrar. A ambição de Nietzsche era dizer em dez frases o que outros grandes autores não diziam nem em um livro inteiro.
Assim, a escrita, feita das urgências dos compromissos, e de sínteses e clareza das ideias, criou-se em mim como prática, hoje, quase diária. Servidão voluntária. Compromisso ansiosamente inesperado. Por exemplo, analisar e escrever sobre uma sessão do Supremo, no mesmo tempo em que iniciou e se encerra. A pedido do G1 ou O Globo.
Esta rotina começou assim.
Na década de setenta, Otávio Frias Filho convidou-me para colaborar com a Folha de S. Paulo, desde Olinda, onde eu morava, a escrever pachorrenta tese de doutorado. O Brasil ia mudar, a redemocratização era inevitável, e os intelectuais não poderiam se abster. Muitos não foram para os partidos políticos. Não fui. Fomos para a mídia.
Com pequeno grande desafio. Escrever três vezes por semana, artigos de vinte ou trinta linhas, no máximo. Enviados antes de fechar a edição do dia, final da tarde, por telex. Às vezes até por telefone, ditando palavra por palavra, sem DDI. Nem computador.
Na máquina de escrever, uma Valentine da Olivetti, encarnada. Hoje presente em coleções particulares e museus de design de todo o mundo.
O objetivo das vinte linhas era analisar, explicar e defender, a partir do fato do dia, o que viria ser o estado democrático de direito. Ajudar a construí-lo. Foi saboroso choque cultural e político. Além de estético.
Entre a tese de doutoramento e o jornal militante, quem me decidiu foram as ideias. As para o jornal, muito mais prontas. Estavam claras e impacientes. O jornal me levava a identificar, analisar e difundir a latente democracia brasileira. Fosse política, jurídica, econômica ou cultural. Que viria. E veio. Foi convite irrecusável.
Como pesquisador acadêmico, escapei de apenas ser observador do Brasil. Fui seu agente também.
Por isto, a pachorrenta tese demoraria mais anos. Foi prioridade passageira. Como sói acontecer. O tema era bom: Doutrina Jurídica e Regime Político. Mas a execução foi medíocre.
O fato é que no final de um ano, a tarefa virou hábito, e fazia tudo em vinte linhas: pensava, conversava, comia, dormia, respirava. Fui-me, a mim mesmo, programando e programado. E me descobri imerso em grandes prazeres.
O prazer de reduzir, cortar, encolher, retirar, substituir por menos, e não por mais. Emagrecer o texto é um prazer estético. Aliás, muito além do apenas estético, diria Gilberto Freyre.
O prazer de burilar, modelar e esculpir a palavra, a frase, para que menos seja mais. Como em Bauhaus. Uma tarefa quase neoconcreta. Como nas gravuras de Hélio Oiticica.
Com o computador, a busca da clareza pelo sincretismo da linguagem se transformou no mais delicioso dos games. Jogar palavras no lixo. Control-alt-del, enter, return e edit. Send. Foi. Fui. De tão sincrético, às vezes me sinto síntese de mim mesmo.
O prazer do ritmo foi a outra descoberta. O prazer da pontuação. A pontuação é a respiração do texto, segundo Clarice Lispector. Que não pode ser ofegante, nem sonolenta. Tem que estar a serviço da argumentação, ênfases, do parar para continuar, do esconder para revelar. E vice-versa. Não é o acessório. É a energia que faz o texto caminhar, perambular ou correr. Ou parar. Como paro.
Agora.
Por exemplo.
Lembro sempre de soneto, que aprendi no Colégio Santo Inácio, de Júlio Salusse, que diz: “A vida, manso lago azul algumas vezes, as algumas vezes mar fremente…”. No texto também é assim. Às vezes lago azul, às vezes mar fremente. A pontuação acalma ou agita o mar das ideias que se quer transmitir.
Existe identidade do autor, sem a identidade do ritmo de seu texto? Não. Na escrita acadêmica, somos treinados para quase suprimir a identidade individual. Há regras, convenções. Mas a escrita como experiência e fenômeno é maior que elas. É possível ajustar seu ritmo individual ao auditório, à ocasião, às convenções do contexto. Mas o ajuste da forma não precisa, nem deve ser supressão da identidade.
Ambos, sincretismo e ritmo, precisam de mais para serem texto, artigo final. É preciso ter sempre à mão, como mosca azul, uma ideia-força, vindo de quadro conceitual, teórico, mais amplo. No caso de uma compreensão de Brasil e missão de democracia, à espreita do compromisso que os dispara.
Seja o compromisso de escrever para a mídia, para a sala de aula, para o exercício da profissão jurídica, para a comunidade acadêmica, ou para mover sua cidadania.
Sem um prévio entendimento do que seja democracia, por exemplo, a ideia sozinha se desmancha no ar. Não chega até o leitor. Flecha sem rumo.
Mas atenção. Deve-se pensar antes, e guardar sua ideia para o momento em que um fato do quotidiano a excita e dispara. O problema gerador, diria Paulo Freire.
Não se escreve antes. Não tomo notas. Guardo-me em mim mesmo. Espalho-me nas múltiplas ideias. Como um vivo e sempre incompleto desorganizado arquivo. Quando embaralhadas, as ideias não mudam a compreensão de meu todo, assinala Roberto de Oliveira.
No começo foi a desorganização. Só depois o lavar, racionalizar, sistematizar as ideias. No começo era o caos. Antes de serem palavras, são ideias, quase sentimentos, intuições, percepções, olhares, deduções guardadas sem rumo. Somente depois se encontram e se fazem sentido em volta da realidade observada. E se fazem escritas. Neste momento, elas me deixam, sem nunca me deixar.
Para formatação das ideias a partir do fato observado, listas colaborativas e de discussão em internet são imensamente preciosas. Puro estímulo. Listas que mantenho regularmente com colegas professores e alunos da escola de direito. A quem, a todos, sou imensamente grato. Dão-me o que não tenho. O outro eu. Meu contraditório. Testam, aperfeiçoam e muitas vezes destroem minhas ideias. Se assim foi, é porque não valiam mesmo a pena. Não virariam textos.
Em geral, a ideia explode-se em múltiplas edições. A mesma ideia que criou o artigo acadêmico, de rigorosa pesquisa empírica feito, testado em sua veracidade no diálogo com colegas, pode se transformar em análises para o jornal. Testado então na sua comunicabilidade pelos leitores. E mais. Pode se sintetizar em twitter mobilizatório. Ou em aula na escola, testada pelo debate e compreensão dos alunos. Virar palestra. Sem esquecer que há sempre a possibilidade de um livro no fim do túnel.
Resta então observação derradeira. Quem influenciou e influencia esta minha prática do escrever? Antes de tudo, a audiência.
Falar, já foi dito, é maneira de pensar. Escrever, também. Em mim, todos os três – pensar, falar e escrever – voltam-se para audiência. São instrumentos de sedução do leitor. Sem audiência, inexiste texto em mim.
Escrever é dialogar. É mais do que somente ser. É estar-com, ou mesmo estar-contra. Mas sempre dialogar-se, consigo próprio e/ou com os outros.
E cada edição que a ideia assume – artigo acadêmico, análise jornalística, aula, conferência, twitter, ou livro ou muito mais, tenho sempre em mente que as audiências mudam. Às vezes se completam, às vezes se sobrepõem, até mesmo se divergem. Mas sempre estará lá. É a audiência quem decide como uma mesma ideia-força será escrita, editada.
Mas quem me fez ir para onde fui, foi, por exemplo, Nelson Rodrigues. Com certeza o mais poderoso texto brasileiro de sínteses, das frases curtas. Às vezes de palavra sozinhas, a serem completadas pela imaginação do leitor. Sempre o envolvendo e seduzindo. Faz do leitor momentâneo escritor também. Ou, à moda de Fernando Pessoa, contínu-a-dor. No caso, o inverso. Não a dor, mas o prazer.
Nelson Rodrigues, ao mesmo tempo que acolhe o leitor pela cumplicidade, o despreza pela obviedade. Tanto o mima, quanto minimiza.
Nelson não escreve. Antes, conversa, prega, briga e faz as pazes com leitor. O tema é sempre o mistério do cotidiano. É o banal e a paixão, o gesto e a surpresa, a maldade e o patético. O hábito escondido e o sentimento revelado. Nele, nada mais espetacular do que o cotidiano de seu Brasil, seu Rio, seu Fluminense revelados. O cotidiano profundo.
Nelson é grande teatrólogo, por ter sido essencialmente dialógico – seus personagens entre si e o leitor com eles. Influenciou-me. Talvez porque tenha me dedicado ao quotidiano do direito.
Pois o que é o fazer e o aplicar do direito, senão a tentativa de uma conversa bem-comportada? Se democracia é diálogo, o texto a favor do estado democrático do direito tem que ser dialógico também. Como em Nelson. O meio é a mensagem.
Neste mesmo sentido, o famoso e rodriguiano complexo de vira-lata que tudo penetra, às vezes, inclusive com elegância e confiture, penetra também, e muito, no pensamento e na prática jurídica. Penetra no hábito de muitos juristas, juízes, advogados, professores de importar ideias alienistas para moldar nossa própria constituição, leis, sentenças, petições, manuais jurídicos.
Muitos vivem em um direito feito de mimetismos elegantes. Dos sofás e cortinas, diria Eça de Queiróz, em vez da vira-latice libertadoras de nossas ruas. Onde se esconde o verdadeiro constitucionalismo. O constitucionalismo de realidades.
Quem também me fez ir para onde fui, foi Camilo Castelo Branco. Sim, o escritor português do final do século XIX. Escreveu mais de noventa pequenos romances. Novelas.
Seu texto é mais moderno do que o de Eça de Queiróz. É curto. De frases curtas. Dialoga, conversa e envolve o leitor. Li quase todas as novelas. Frases de uma palavra. Como se fossem apenas suspiro.
Li cada novela, a cada duas horas e meia, nos voos 341, Recife-Rio e Rio-Recife, Varig. Edições Parceria, capas de tecido encarnado e desenhos art nouveau. Herdei a coleção de meu avô Horacio Saldanha.
Em Camilo encontrei-me com a mesma matéria-prima: o cotidiano das pessoas. Ninguém nasce dedutivo. Somos todos, antes, indutivos.
O roteiro, a história, os tipos, os sentimentos, os criados, a sopa de couve, o assado, o vinho do dia a dia, são quase sempre, em Camilo, os mesmos. Pouco importa.
Através deles, Camilo segura nossas mãos, nos arrasta, e só nos larga, embora demoradamente rápido, quando já estamos de saudades. É esta a função do escrever. Comunicar para seduzir. Ou melhor, para importar.
Finalmente, sempre o cotidiano como matéria-prima, Montaigne, também me influencia. Desta feita, diferentemente. O cotidiano se traduz em ensaios e em matéria-prima da reflexão filosófica.
Pode haver caminho melhor para a ideia atravessar os tempos e permanecer? Fundamentada na experiência temporal do Ocidente e explicando a experiência atemporal de cada um?
Montaigne ouviu e analisou gregos, romanos, a experiência europeia, sua torre, sua comunidade na Aquitânia, França. Retirou-lhe a essência e a disparou na história.
Seus ensaios foram os precursores dos analíticos artigos de hoje e opiniões editoriais.
Pronto. É tudo, ou quase tudo, o que tinha a dizer sobre como escrevo.
Já escrevi mais de 800 artigos para jornais, revistas acadêmicas, de todos os tipos. Livros e teses. Aqui e no estrangeiro. Como este, inclusive. São textos de experiência feita que se procuram sintonizados com nosso tempo.
A mobilização em defesa do aperfeiçoamento da democracia, do estado democrático de direito, com igualdade e liberdade, precisa de menos do que dez frases. A serem escritas e editadas de múltiplas formas.
Encontrá-las é o desafio.
Em compensação, escrever é o prazer de concretizá-las com muita clareza e sincretismos.
Não se tem hoje muito tempo para ser longo e único. Mas há muito tempo para escrever e ler mais. Para se ser sínteses e claras multiplicidades.