João Schlaepfer é escritor, roteirista, professor e sócio da Metaforia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho um certo problemático vício em trabalho. Muitas vezes isso é romantizado e logo inventam um anglicismo para parecer chique, um workaholic, da vida. Mas não, a verdade não é gloriosa como se faz pintar. Acordo e, ainda na cama, pego o celular para ver os e-mails e responder as demandas mais emergenciais. Dificilmente tomo café da manhã. Meu café é um banho assim que acordo e parto para a escrita. Porém, minha angústia dificilmente permite que eu sente para escrever rapidamente, a não ser que esse material escrito seja a entrega mais urgente, aí tudo bem. Normalmente, limpo a caixa de e-mail e faço outras tarefas domésticas entre o acordar e a hora do almoço. Só depois eu me sento para esse momento de desenvolvimento de texto, seja qual for o gênero e formato. Acontece muito também de eu organizar as ideias de manhã, criar um planejamento para o caso de um texto mais encorpado, organizar as entradas e ordem dos acontecimentos e partir para outras tarefas. Depois de almoçar, volto a essas ideias e só então elas ganham cara de texto. Nesse meio tempo, é claro, algumas possibilidades vão sendo estudadas em segundo plano e, eventualmente, tomo o papel e caneta ou mando um e-mail para mim mesmo pelo celular com uma frase solta. Se eu não voltar à anotação no mesmo dia e a adicionar ao planejamento, nunca mais saberei o que quis dizer – e isso já me aconteceu muito.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que não há nada melhor do que o sonho para a escrita. Isso significa para mim que o ideal é sempre depois, quando estou indo dormir, mas no mundo real isso não se sustenta. Há um horário de pico que, felizmente, coincide com meu sócio, Guilherme Mattos, na nossa produtora de desenvolvimento, que é entre quatro da tarde e oito da noite. Esse horário costuma ser o da escrita grossa. Sem muito trabalho de revisão, uma avalanche de texto em forma bruta. Depois, o cansaço toma um pouco de espaço, é preciso sair um pouco da cadeira, dar uma andada (pela casa) e volto a escrever. Passo mais um tempo tomando notas, releio a besteira que fiz e volto a escrever. Depois desse intervalo entre quatro da tarde e oito da noite, a mágica volta a acontecer a partir de umas dez, onze horas. Só que não há mágica. Geralmente, a essa hora, as pessoas estão mais quietas, tem menos barulho dentro de casa e na rua, já desistiram da televisão com volume alto e consigo novamente me concentrar para focar em escrever. Muitas vezes, tenho uma ideia de texto na cabeça que ainda não tomou formato. Sento e escrevo, sem pé nem cabeça, do jeito que der. Já aconteceu de fazer mais de dez começos diferentes e jogar todos fora. Isto acontece muito: descartar. Parte do ritual é reescrever. Quando comecei, ainda criança ou adolescente ou no meio do caminho, acreditava que escrever era uma vez e pronto, o texto captaria a essência do momento (como se houvesse essa essência, essa aura mágica, superior e celeste). Hoje sei que isso é uma grande baboseira. Primeiro faz-se algo ruim, depois melhora-se. Como qualquer comida, vem crua, há de ficar um tempo no fogo, e mesmo as comidas cruas têm que ser temperadas para dar certo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O exercício da escrita é definitivamente um exercício contínuo. Por isso, para mim, é preciso escrever todo dia. Mesmo aos domingos. Os escritores não estavam lá quando assinaram o contrato de que domingo é dia inútil. Nem os garçons. Nem os motoristas. Nem os seguranças. Acho que o romantismo que engloba a profissão do escritor prejudica muito o andamento de seu trabalho. Escrever é necessário. Um escritor escreve. Um costureiro costura. Um piscineiro piscina. E por aí vai. Um costureiro não vive de uma ideia de casaco que teve. Um piscineiro não imagina a forma mais eficiente de limpar a piscina ou de misturar produtos para arrumar um pH mais exato. Ele executa. Por que diabos o escritor seria diferente? O escritor escreve. Precisamos fugir dessa ideia platônica do ideal. A cadeira é a cadeira. E se você sentar nela e ela cair, quebrar, é uma porcaria de uma cadeira. Junte os pedaços e faz melhor. Quem fez a cadeira não diz que você usou errado. Pega os gravetos e pede desculpa. Por que nós que escrevemos tentamos arrumar desculpa? Licença poética? Se estiver dentro da gramática do texto, não precisaremos arrumar desculpas para justificar. A escrita, voltando à pergunta, é diária. Isso não significa, tudo bem, que vou fazer um conto, um roteiro, uma cena, um capítulo, um poema ou uma crônica por dia. Isso significa que, todo dia, vou escrever, revisar, desenvolver. O texto é a última etapa da escrita. Bato muito na tecla do planejamento, ou o texto não se sustenta. É claro que posso escrever um poema, um conto, coisas mais curtas dessa maneira, mas duvido haver alguma narrativa longa que se sustente sem planejamento. Às vezes estamos na página 78 de um roteiro e para executar uma ideia preciso alterar a página 13 para que a 78 funcione. Isso é escrever. Depois de ajustar a 13, a 24 passou a não ter tanto sentido e a piada da 39 perdeu a referência. Isso é escrever. Há de alimentar os textos um pouco todos os dias. Domingos Oliveira falava sobre isso e seus cadernos, todo dia escrevia algumas linhas. As ideias não podem ser abandonadas, ou se perdem, murcham. Marina Colasanti deixou isso claríssimo para todos que quiserem saber em Uma ideia toda azul. Escrever todos os dias não é, portanto (e para mim), ser genial todos os dias. É executar todos os dias. Revisar. Planejar. Reescrever. Reorganizar. Mudar a ordem dos acontecimentos. Criar palavras – eu adoro criar palavras, tenho contos, poemas, personagens e fiz até um livro só de palavras criadas. Seria impossível criá-las todas de uma só vez e uma boa parte foi acidente. Adoro os erros de digitação. O exercício da escrita é escuta. Aberta e atenta. Isso é parte da escrita, crucial, eu diria, ou a escrita se torna um eco de pensamentos do escritor, os personagens ficam todos iguais e as certezas engessam o texto. Quanto à parte das metas, sim, crio metas para narrativas ou poemas. Depois de todo planejamento, anotações, me coloco de castigo. Só posso ir dormir depois de atingir a página tal, ou só posso ir dormir depois de terminar tantos poemas, ou só posso qualquer coisa depois de fazer o que me prometi.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita é intuitivo, mas não é nada fácil. Não é intuitivo escalar de cabeça para baixo, mas às vezes é a melhor saída para ir para cima. Acabei falando disso na pergunta anterior, me animo escrevendo. Isso é parte da escrita. Não filtrar. Muitos poderiam dizer que estamos fugindo do tema, fugindo da linha de pensamento. Vai! Depois volta. O meio do caminho ajuda a descobrir qual a história e redefinir o porquê de aquilo estar sendo contado. Tenho uma pasta de arquivos chamada Não terminados. Lá dentro, há livros incompletos, notas, palavras criadas, personagens, piadas, frases, ideias de cenas etc. Quando penso uma nova história, vou a essa pasta e revisito as anotações. Algumas ideias encaixam, trago-as para o arquivo do novo texto. Costumo dividir a tela (uso duas telas), uma parte com as ideias, geralmente em tópicos, outra para o texto. Nem sempre as ideias que trago ou que tenho encaixam, mas elas ajudam a provocar outras possibilidades. Quando esse é o caso, ótimo, a ideia não entrou como estava, mas passou por modificações e serviu. Em outros casos, ela não serviu mesmo e das duas uma: ou percebi que não serve e é lixo (sem dó nem piedade, temos ideias o tempo todo, trinta por dia com facilidade, precisamos filtrar as que merecem ser usadas e contadas), ou ela volta para o Não terminados. Há material lá há mais de sete anos. A pesquisa muitas vezes se perde no meu caso, me empolgo e quando vejo vou sempre parar na astrofísica, na física quântica, matérias que amo e que tanto explicam nós humanos. Gosto de traçar conexões entre micro e macro. Quando arrumo alguma chave dessa ou tenho a espinha dorsal da estrutura, é hora de sentar e escrever. Do jeito que vier. Depois edito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa ideia de branco ou de bloqueio criativo para mim é uma enorme baboseira. Há de forçar um pouco a passagem. Eu sempre demoro a dormir. Tenho muitos pesadelos e costumo sonhar antes de pregar os olhos. Tudo o que vejo nesse limiar sonho-realidade é tenebroso. Mas só consigo dormir quando enfrento esses monstros, todos os santos dias, e esses monstros só existem na minha cabeça. É claro que há travas (e trevas), dias e dias, mas é preciso insistir, fazer ruim mesmo, e depois melhorar. Tem dias que o personagem tal não quis me visitar de jeito nenhum, mas que pena, parto para outra ideia, outro projeto e vida que segue. Uma carreira ou vida de escritor não pode depender de um único texto, um único roteiro, um único projeto. É o costureiro que só fez uma peça. Ou o piscineiro que só faz a própria piscina. Ou o cara da cadeira que quebrou a dele e nunca mais fez nenhuma. Não gostaram? Que pena… É claro que meu ego quer agradar, mas minha escrita muitas vezes aponta, é feita para incomodar. Já no campo da poesia eu adoro experimentar, incomodar, provocar. Faz parte. Quem faz terapia não espera que seu terapeuta diga que está tudo bem. Se esperam isso de mim, que leiam autoajuda, tudo bem. O medo de corresponder eu já entubei. Não vou corresponder e não sou o gênio que gostaria de ser. A ideia de gênio é problemática por si só. Todos os humanos erram, precisam comer, sentem frio, fazem cocô, brigam com a mãe, enterram o pai. Planejamento para isso é fundamental. Separar a “vida lá fora” é muito difícil quando o trabalho tanto envolve subjetividade e afeto. Aí volto aos projetos, deve haver outro que está mais para aquele tom. Quanto às críticas, sempre haverá alguma. Eu escolho qual crítica vale. Qual opinião importa e como superar. Se não, não continuaria escrevendo. Se cada cozinheiro que um dia recebeu crítica parasse de cozinhar não haveria um único restaurante aberto. Ou eles falam puxa vida, esse é meu tempero (e pensam procure outro lugar), ou eles mudam a quantidade de sal e açúcar. Eles não deixam de ser cozinheiros. Agora, para a escrita longa, nossinhora, como costumo dizer. Sempre tive muita dificuldade, e quem me salvou nisso foi o roteiro – e o Guilherme. Mencionei o micro e macro. Um não existe sem o outro. Só consegui me aproximar das narrativas longas pelo roteiro, quando aprendi a segmentar a série, o filme em sequências menores, cenas. Eu preciso da sensação de feito, terminei, dever cumprido, isso me motiva muito, mas não consigo fazer isso com um filme em um dia. Consigo com uma cena. Um capítulo. Algumas páginas. Ver o trabalho do Guilherme como romancista também me incentivou muito. Dou aula de redação, e dói ver aqueles textos todos iguais. Uma coisa é ler um romance e ser arrebatado, outra é ver um romance arrebatador sendo feito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Por conta própria, reviso umas duas, três vezes. O olhar vicia e tem uma hora que não funciona mais, não enxerga mais nada. Costumo dizer que eu sei tudo que eu quis dizer, se o leitor não entendeu, problema meu que não transmiti direito. Isso não significa que precise escancarar e deixar tudo explica, mas adequar o tom e descobrir quem é o leitor ou espectador daquele produto. Sim, produto. Não vivo de palmas ou notas de agradecimento. Tenho boletos motivacionais, como diz minha namorada Tatiana Teixeira. Prontos mesmo, quase nunca estão, mas eles precisam ser enviados para eu receber retorno – menos feedback, por favor – e pagamento. Depois das minhas revisões, de quando não consigo mais enxergar nada lá dentro, mando para meu sócio, Guilherme, para alguns outros leitores críticos, sempre críticos. Para dizer que lindo, parabéns, envio para minha mãe. Gosto dessa primeira leitura para apontar os erros. Além do Guilherme, para cada formato e gênero tenho mais um ou dois bons leitores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Rascunho vale de qualquer jeito. A ideia que não foi anotada sempre era a melhor de todas e valia um milhão de reais. Eu perdi umas trinta e sete dessa. Estou trinta e sete milhões de reais mais pobre. Teve um dia que achei um bloco de notas antigo, cheio das ideias de um milhão de reais. Elas valiam mais quando eu não as tinha mesmo… Adoro tecnologia. Quando bem usada, vem para ajudar. Tenho vários e vários cadernos e blocos de nota. Anoto palavras, ideias, frases, sinopses, o que vier. Depois passo para minha central de textos, no computador, e aí posso acessar por qualquer dispositivo que tenha internet em qualquer lugar do mundo. É ótimo. Viajei no carnaval de 2020 e recebi uma ligação. Me pediram um texto X para um cliente Y. Qual não foi o alívio ao saber que era só fazer login.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Observar. Olhar. Escutar. Rir. Rir do que não se deve. Adoro. Faço muito isso. Cato muitas coisas na rua. Eu não tenho a menor capacidade de inventar um universo novo. Mas tenho total capacidade de mexer tanto no que já conheço que parece novo. Minhas ideias vêm da rua. Vêm de palavras, frases soltas. Sabe quando repetimos uma palavra a ponto de ela perder sentido ou parecer que não existe? Isso ajuda muito. Ah, e minha família. Digna de seriados e seriados. Capto episódios atípicos que geram problemas e desdobramentos, invento personagens novos, embrulho e mando. Tem gente que não gosta. Paciência.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: faz isso não. E depois diria, faz isso, é assim mesmo. Só se aprende errando. Meu primeiro livro foi um parto. Nunca vou saber o que é a dor de um parto, mas o entrelugar da perda e a felicidade, o alívio da entrega é um misto muito confuso. A escrita definitivamente amadureceu, me tornei mais crítico. Menos tolerante a textos vazios. Basta ver o volume. Dez anos atrás, escrevia um texto novo por dia, aproximadamente. Este mês, por coincidência, eliminei um monte de coisa ruim das minhas pastas. Mas ainda dá pra ver do que sobrou. 2013, um poema. 2014, sessenta e quatro. 2015, noventa e quatro. 2016, vinte e oito. 2017, doze. 2018, vinte. 2019, quatro. Os números não são exatos. Tenho livros prontos e quando o texto entra em algum livro sai da pasta de textos, mas até isso mudou. Eles costumam ter mais propósito agora. Usei exemplo de poemas, mas tem muito mais coisa. No geral, eles não são feitos mais porque deu na telha, há um planejamento de para que ele vai ser feito, um livro, uma coletânea, um edital. Não fazia poema há tempo, mas desenvolvi uma série nova, fiz vídeos, tinham objetivo. A ideia de “se vender ao mercado” é bastante chata, mas escrevo para ser lido, ou estou errado? Então, além da maturidade e maturação do texto, com uma lista de projetos que já ultrapassa a centena se incluir literatura e audiovisual, penso em possibilidade de realizar e a quem poderia interessar esse conteúdo. Continuo escrevendo coisas para mim, porque quero, mas busco encaixar em algo maior. Saí um pouco dessa ideia do gênio incompreendido. Um pouco não. Abandonei essa imagem mitológica. Humanizei o ofício; e a obra. Obra gera resíduo, poeira, lixo. O que faço com o entulho e com as caçambas é problema meu, tudo bem, mas duvido que alguém queira carregar uma caçamba inutilmente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São tantos que nem sei. Sou doido por um dos meus primeiros projetos de vida. Tinha sido abandonado, mas encaixou com um outro projeto, de um curta que escrevi. Gostaram, mandaram eu fazer um longa ou uma série. Foi ganhando corpo, hoje sabemos que tamanho ele tem, e isso é uma das maiores qualidades dele e uma das maiores barreiras. Sou um escritor jovem, pouco conhecido. Preciso me provar muito para valer um investimento dessa magnitude. Entendo. Eu também não arriscaria meu dinheiro assim. Então tento arrumar outros projetos mais exequíveis até poder tirar esse do papel. Sobre o que não existe, recebi muito, mas muito incentivo familiar para a escrita. Tenho duas tias escritoras de uma qualidade assombrosa. Estou com o novo livro de uma para ler, ele está há quase cinco anos parado aguardando final. Ainda não consegui me dedicar à leitura, me envergonho de dizer que ele está comigo para ser apreciado há mais de um ano. São 378 páginas. E ela disse que ainda não tem final. Quero correr com a leitura para alcançar o fim enquanto ele é feito. Já sobre minha outra tia, com seu perdão, amo e tenho pena. Tenho certeza da sua intensidade e qualidade literária. Foi, talvez, a primeira incentivadora de escrita, quando publicava em seu blog, faz mais de década. Ela tem um texto brilhante, mas parou de escrever por causa de uma peça. Correu São Paulo e Rio de Janeiro. Foi patrocinada pela Petrobrás, Itaú Cultural, queria eu! Uma famosa crítica teatral desceu a lenha em sua dramaturgia, parece. Eu era muito muito pequeno. Não pude ver a peça, mas li depois o texto da peça. Nunca encontrei essa crítica escrita. No mundo do teatro brincam que a peça só é boa se essa tal crítica tiver falado mal. Rio disso com meus amigos até hoje, mas com um pouco de tristeza. Eu não daria tamanho poder a essa mulher. O que vende é a polêmica, ela sabia disso. Não daria aos outros o gostinho de tanto poder. Sou doido para ler qualquer coisa que essa tia escreva.