João Rasteiro é escritor e poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O dia começa sempre por volta das 7h30 (sou Funcionário Público no Departamento de Cultura do Município de Coimbra – ‘Casa da Escrita’, e tal como proclama Ferreira Gullar no poema “Não há vagas”: ‘O funcionário público / não cabe no poema / com seu salário de fome / sua vida fechada / em arquivos’), logo: duche, pequeno-almoço e paragem a meio do percurso a caminho do trabalho (na pastelaria habitual) para beber o imprescindível café (em Portugal chamamos de “bica”, ou um “cafezinho”) acompanhado da leitura dos habituais 2/3 jornais que existem à disposição no estabelecimento. E depois, bom, depois é…em frente, que a manhã é ligeira na passada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se falarmos de trabalho, no que concerne à actividade profissional, normalmente é de manhã, se falarmos da escrita, não é muito linear essa minha predisposição. No entanto, cada vez mais tal acontece ao final da tarde, início da noite. Não tenho propriamente um ritual, mas gosto muito de escrever ouvindo música (e conforme a disposição, pode ser música muito distinta, mesmo se vou trabalhando no(s) mesmo(s) texto(s), pois tudo depende da minha disposição. Em determinadas alturas, só consigo escrever recolhido na solidão e no silêncio, outras, pelo contrário, só consigo escrever no meio da… “multidão”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não escrita não tenho mesmo o “horário do funcionário público”! Eu não escrevo todos os dias, posso aliás estar vários dias sem escrever, sem qualquer angústia, por vezes até alívio! No entanto, também tenho alturas em que a escrita me “encosta à parede” e se torna obsessiva, cruel e impiedosa no “sofrimento” que me provoca.
Como referi, posso estar muitos dias sem escrever, como posso escrever (e faço-o mesmo porque não consigo deixar de o fazer) alguns dias seguidos de forma obsessiva tentando fazer estender todos os minutos e todas as horas desses dias. E são mesmo momentos de sofrimento mental e físico, nessa obsessão de querer “chegar ao fim” do que se formou e esquematizou na minha cabeça e no meu corpo. Até porque por vezes, a folha está nitidamente a olhar-nos de forma trocista, e impotentes perante ela, entramos quase em desespero.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu já respondi um pouco na pergunta anterior. Mas, posso acrescentar o seguinte. Eu continuo a escrever maioritariamente poesia, embora aos poucos vá escrevendo mais prosa.
No entanto, mesmo para a poesia, eu vou sempre tirando das minhas leituras (literárias: da prosa e da crítica ao ensaio, e sobretudo poesia; mas também da imprensa, e nomeadamente das áreas da ciência: biologia, astronomia, mundo animal, etc.) várias notas, frases, ideias, que depois utilizo, adapto e renovo – por vezes uma pequena frase de âmbito científico pode ser utilizada na íntegra, ou adaptada poeticamente na sua ideia ou no seu sentido. Mas, claro, também pesquiso (mais para a prosa, mas por vezes também para a poesia) determinadas temáticas, quer seja do ponto de vista da história da literatura, como da história do mundo – seja a “história” do mundo, seja a “fábula” do mundo!
Mesmo na poesia, normalmente, após a escrita de uns 10/20% dos poemas, tal como num romance, logo idealizo a estrutura, título (principal e das partes do livro), elaborando depois o grosso do livro a partir dessa mesma estrutura e títulos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esta é uma pergunta interessante, pois todos os escritores (prosa, poesia, teatro, ensaio, etc.), mesmo aqueles que já possuem um nome e uma obra consolidada, por vezes têm momentos de interrogação sobre o que escrevem, ou continuam a escrever, medo, ansiedade, procrastinação. Eu, naturalmente, não sou diferente.
Muita das vezes, mais do que medo, sinto bastante ansiedade e algum desânimo, quando ao olhar em redor e depois de ler alguns dos textos e obras (até de conhecidos e amigos) que “florescem”, pressinto que o que estou a escrever, mesmo podendo não ser mau, não está a “acrescentar” algo substancial que possa vir a fazer “ferver o verso”!
Aliás, em papel, ou nos locais mais obscuros do computador, das pen drives, etc., faz anos que inúmeros poemas e até alguns “livros” meus estão (e provavelmente com toda a justificação) no limbo ou Hades.
Quanto à procrastinação em particular, e essencialmente no que se refere à prosa, tal tem-me acontecido com alguma frequência, pois há muito que tento escrever um romance, mas pela “falta de tempo” e por vezes pela não crença em alavancar tal “empreitada”, ou está/estão em suspenso(s), interrompido(s), ou acabam em conto(s) muitos destes projectos de romance que já “amareleciam” na longa espera que (me) desespera.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Bom, esse é outro problema (e não de importância menor) que me cria bastante insegurança e até alguma agonia. Até porque eu tenho por vezes alguma ansiedade em que o texto veja “a luz do dia” com alguma premência.
Normalmente faço umas duas revisões, e depois tenho que pedir a dois ou três amigos em quem confio (alguns professores e também poetas) que sempre estão disponíveis para fazerem essa leitura, pois a partir da segunda leitura/revisão eu raramente (mesmo se os erros se mantenham no texto) consigo detectá-los.
Para além disso, se começo a “mexer muito” nos textos, por vezes não consigo parar, o que faz com que por vezes eles se comecem a distanciar muito da sua essência inicial, não sabendo eu já qual “dos textos” gosto mais, ou estará mais de acordo com o que inicialmente pretendia.
De qualquer forma, mesmo depois de publicados, e não falo de erros (apesar de mesmo assim por vezes se encontrarem), muita das vezes sinto que ainda talvez não estivessem completamente prontos a publicar. Mas acho que geralmente isso acontecerá sempre comigo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase todos os poemas “soltos”, e mesmo aqueles 15/20% que depois acabarão por outorgar imediatamente a realização da estrutura de um livro, são escritos à mão. Depois, é no computador que eles ganham a sua forma final (pois é lá que tenho acesso à pesquisa de forma mais fácil, ao Priberam, que utilizo bastante, aos dicionários online, etc.).
Como referi atrás, andam sempre comigo pequenos cadernos onde também vou escrevendo alguns rascunhos de poemas, mas sobretudo, frases, palavras, ideias, etc., a partir de leituras ou olhares “diários”.
Curiosamente, por vezes descubro alguns desses apontamentos e rascunhos (já com algum “bolor”) no meio de livros, e que acabei por não utilizar, às vezes porque lhes “perdi o rastro”!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Bom, não cultivo propriamente nada, ou talvez sim, mesmo se não o faço de forma racional. Alguma das coisas que me proporcionam ideias, já terei respondido em perguntas anteriores.
Para além disso, leio muito (essencialmente poesia – não consigo entender ou até acreditar na “palavra” de alguém que diz que escreve mas que não lê, ou lê muito pouco. Nós somos a leitura dos “nossos mortos” (e vivos, ainda…), não tenho (nem deveríamos ter), como alguns, a “angústia da influência” de que fala o Harold Bloom). Leio também bastantes jornais (culturais e de informação generalista), cinema (bastante), algum teatro, exposições, etc.
Enfim, as minhas ideias podem “vir” de mil coisas, mas virão certamente da minha vida, seja da que “directamente eu vivo”, quer seja da que indirectamente me faz viver. Enfim: Mundo!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Bom, essa mudança ocorreu, mas não sei se isso por si só acrescentou qualidade (eu penso que sim, mesmo se ela não for muita), mas a escrita dos meus primeiros poemas, dos primeiros livros, era de alguma forma demasiado hermético. Também deixou de ser um pouco tão torrencial (e que inicialmente fazia lembrar ou farejar uma linguagem algo surrealista). Os poemas de forma geral tornaram-se mais pequenos, com menos adjectivação (mesmo possuindo a minha poesia uma forte carga imagética), e por isso acho que ocorreu algum maturação, tanto na forma, como na contenção.
O que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos? Bom, posso dizer que estou a preparar uma antologia (para Portugal, pois em 2017 saiu uma em Espanha com cerca de 50 poemas) da minha poesia (que já contém mais de uma dúzia de livros), e que não só não entram os meus primeiros livros, como alguns poemas que entram estão a ser “maquilhados” e “intervencionados”.
Como é lógico, eu (e todos nós) e a minha escrita, sou “eu e a minha circunstância”, daí que que as coisas se alteram, mesmo que por vezes não obrigatoriamente para melhor. Por isso, não renego o que escrevi, o que não quer dizer que me reveja hoje em alguma dessa escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projecto que ainda continuo a acreditar conseguir levar a bom porto é escrever (e editar) o meu primeiro romance. E, principalmente continuar a ter vontade e prazer (mesmo se momentaneamente mesclado com alguma dor) em escrever e sobretudo, ler, sempre ler.
Pois só assim me continuarei a traduzir, como diria ainda o Ferreira Gullar: “Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo. (…) // Uma parte de mim / é permanente; / outra parte / se sabe de repente. // Uma parte de mim é só vertigem / outra parte, / linguagem. // Traduzir-se uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?”. Dixit.