João Paulo Parisio é autor de Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018), Esculturas fluidas (poemas, 2015) e Legião anônima (contos, 2014).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sonhado, sonhando. Minha rotina matinal é parca porque quase sempre tem pouca manhã pela frente quando acordo. Consiste em correr para o meu trabalho e triar os primeiros processos do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre escrevi (e li) mais à noite, embora a centelha possa surgir a qualquer momento, e eu hoje saiba que o melhor a fazer é deixar-se incendiar no ato. Quando eu era velho eu era ritualista. E platônico. E apolíneo. Às vezes passava a noite inteira lutando com o Anjo para extrair da pedra um parágrafo, se muito. Agora que não sou mais tão imortal, sei me deixar levar pela corrente. Antes eu só escrevia sóbrio e em silêncio, depois das pessoas em casa terem ido dormir. Tomava um banho, ocupava a cabeceira da mesa da sala de jantar (sentindo que todos em todas as salas de jantar tinham ido dormir ocupados em nascer e morrer, só os mutantes despertos), abstraía as muriçocas, tendo antes virado os relógios para a parede, como meninos de castigo, para esquecer o tempo e ele quem sabe me esquecer. Procurava um estado de espírito intuído, estabelecer as minhas coordenadas no universo, localizar-me dentro da eternidade. Logo me punha a perambular pelo apartamento, mas evitava meu reflexo não só no espelho como em qualquer superfície polida, para não petrificar-me em minha identidade. Cada um tem sua medusa da guarda. Esquivava-me de minha imagem esquipática no vidro da varanda olhando para o sol da meia-noite acima do edifício caixão em frente: a lâmpada da sala onde eu escrevia. Tudo para não sofrer a atração fatal da gravidade do ego e cair em mim. Embora escrever possa ser cair em si, nu abismo, quando se trata de prosa é um ambivalente mergulho-e-voo, um exercício de introspecção e alteridade. Emprestar a sua seiva a um ou mais alguéns imaginários, brotos do nosso pólipo.
Escrevi aos dezesseis anos um romance, um dos cadernos indigitados, digo, nunca digitados, que agora são destroços no maleiro do armário embutido do meu quarto, por cima dos quais minha gata dorme, reaquecendo seu pão frio, chocando-os para que quem sabe um dia… Ano passado, vinte passados, também escrevi um romance. Debruçava-me sobre ele todas as noites, madrugada adentro, bebendo, fumando, ouvindo música, dançando com inaudita desenvoltura na escuridão neon, jabeando com o vazio, tocando com fúria bateria imaginária sob a sombrinha rosa com bolinhas brancas de cabeça pra baixo que pendurada no trilho de cortina sem cortina decora a sala, rindo e chorando, nem sempre ao mesmo tempo. Há portanto outras formas de superar a gravidade do ego. Esquecendo de olhar a hora no reloginho do monitor, descobrindo o próprio reflexo no vidro da varanda como uma assombração que se assombra ao deparar conosco. Não recomendo o alcoolismo como coadjuvante da escrita e, findo (nominalmente) o romance, abandonei (oficialmente) esse método.
Seja como for, gosto de chegar do trabalho, depois de ter voado baixo pela avenida Conde da Boa Vista com os poros abertos, e sentar direto no computador para “escrever um pouquinho antes de tomar banho”. Trapaça. Essas são algumas das ocasiões mais frutíferas, e uma vertiginosa hora depois estou tão capturado, envolto da atmosfera do que escrevo, que já se trata de correr para tomar banho e comer rápido para poder voltar a escrever. Lúcido ou bêbado, escrever é uma forma de embriaguez, de embeber-se e aprofundar-se nesse familiar éter e licor do desconhecido que somos constrangidos a esquecer numa época cujo deus é o aparente, cujo empuxo nos atrai constantemente para a superfície, cuja força centrífuga nos afasta dos núcleos, tenta nos jogar para longe do coração selvagem da vida. Ser escritor é integrar a resistência a esse impalpável invasor, esse Horla difuso. E viva a Resistência!
Por isso mesmo, longe de mim dizer que o escritor deve frequentar ou não oficinas de escrita criativa (no mínimo estará mais capacitado a escrever uma narrativa ambientada numa oficina de escrita criativa), que não deve chamar sua obra de produto (sei que é e até pode enxergar-se poesia nisso, como em tudo), que deve ser ritualista ou espontaneísta, nominalista ou universalista, imanentista ou transcendentalista, cru ou assado. A escrita artística é antes de mais nada um ato idiossincrático e se tem uma coisa que acho que toda escrita literária deveria ser é – idiossincrática. Criar é pessoal, escrever é uma liberdade. Ser livre não garante ser hábil, mas escolher ser escravo e fiscal da escravidão alheia é sintoma de mediocridade, e cabendo a todo (?) humano sua parcela ou latifúndio de mesquinhez, a arte nasce do que em nós está acima dela, ainda que beba do amor como do ódio. Ambos podem ter algo de inefável, sublime até; a pouqueza de espírito, não, de forma alguma. Ao menos em um sentido a escrita é um rito, de liberdade. Se uma escrita não é libertária, fruto da liberdade e tendente a ela, tampouco é literária.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo (nem sempre pouco) todo dia, mas não por autoinjunção. Acontece-me escrever diariamente. Quando estou escrevendo um romance, proponho-me a engendrar uma página por dia, mas isso é uma – trapaça: se às vezes é difícil começar, por inércia, preguiça, cansaço, tristeza, boemia, luxúria, leviandade, depois que escrevo a primeira página não trocaria escrever por n.d.a.
Tenho também as épocas de defeso: abstenho-me de escrever algo além do que me aconteça escrever, até para consagrar-me à leitura. Fico restrito a uma escritura para a subsistência de minha fauna de demônios. Acaba sendo uma trapaça também: às vezes esse é o período de maior abundância. No tocante à poesia, a não ser por um longo poema narrativo que costuro na manga, escrevo sempre sob esse regime aprogramático. O máximo que já fiz foi um dia sentar para selecionar os poemas que conformariam um livro, e aí se relê, se reescreve, se reformula.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Dificilmente começo com notas ou pesquisas direcionadas, conquanto esteja sempre pesquisando por diletantismo e paixão. Lembro uma entrevista de Érico Veríssimo já velho dizendo que no momento estava descobrindo e fascinando-se por semiótica. Começo quando tenho a primeira frase ou o primeiro verso, embora nem sempre seja a abertura do texto. Parece que Rubem Fonseca disse que a imaginação é um labirinto em que o difícil não é a saída, mas a entrada. Descobrir a primeira frase é desenhar uma porta com um lápis concretizador, de condão. Para aí perder-se no que se compõe. Se tomo notas, é depois que começo. Se pesquiso depois que começo, faço-o mais movido pela curiosidade do que por outra coisa. Assim que terminar de responder estas dez perguntas, vou pesquisar sobre pântanos mesozoicos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Os bloqueios que conheci foram aqueles relacionados a um perfeccionismo obsessivo, paralisante. Contra a procrastinação, trapaças, chantagens, prestidigitações, sortilégios, simpatias, engalobamentos. Se tenho um medo é de que minha expectativa quanto à reação dos outros seja frustrada, mas só o experimento pouco antes e depois da publicação, não ao escrever, ao gestar. Quanto à ansiedade associada a projetos longos, escrevo para abreviá-los e assim abreviá-la.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
777. Na época platônica, eu avançava tão lentamente porque meu ideal era que a primeira escrita fosse a definitiva. Achava que enquanto não fosse capaz de não ter nada a alterar num texto depois da primeira escrita, não estava pronto: eu. Se não pinçava a palavra ou expressão exata, não ia adiante, impedindo páginas e páginas de virem à tona, fazendo-as refluir para o limbo onde se desagregariam: mais do que o fraseado, o coágulo de sentido, a coisa-a-dizer, talvez perdendo-a para sempre. Agora sei que justo pela primeira prensa da oliva gerar o melhor azeite, não se deve deter assim o – não gosto de usar, em relação à escrita literária, as palavras “processo”, “projeto”, “trabalho”, “meta”, “produto”, que soam-me demasiado benthamistas – voo. Curiosamente, o livro de contos que estou publicando agora pela editora Patuá, Homens e outros animais fabulosos, lança raízes no pântano mesozoico daquela minha primeira encarnação de escritor, adolescente, velho, ritualista, imortal. Portanto, tem contos cujas primeiras versões datam de vinte anos atrás, que nunca deixei de ruminar. O poeta Raimundo de Moraes diagnosticou lapidarmente ser o escritor uma espécie de esquizofrênico que, “fazendo respirar suas criaturas, por elas se acha perseguido”. Espero conseguir parar de elaborá-los agora, com o exorcismo da publicação e a curtição (de couro) da crítica, mas isso me causa certa ansiedade, como quando você cumpre o protocolo para dar fim a um poltergeist que já se prolonga demais e olha ao redor sem crer na fidedignidade dos objetos imóveis.
Às vezes mostro meus inéditos a outras pessoas. Quase sempre dão maior e melhor retorno as que não são profissionais da escrita, mas leitoras interessadas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Compactuo com ideias de meu eu adolescente (o ser humano é uma serpente arlequinal, troca de pele conservando parte das antigas), que escrevia em cadernos, mas embora ainda ande com um bloquinho e uma caneta no bolso, eles são mais um registro fóssil, um dente queiro, um órgão que perdeu a função. No outro bolso, está o celular, que é hoje minha principal máquina de escrever, no qual agora mesmo digito. Falei que nas temporadas de pesca estabeleço o limite mínimo de uma página. Pois bem. Muitas vezes, quando chego em casa e descarrego no notebook o que escrevi durante o dia, percebo que já transbordei da taça. Ao reler o rascunho (!) no computador, quase sempre acrescento, desenvolvo, prossigo, e vou dormir com um sorriso de canto de boca, a sensação de que passei a perna num inimigo, íntimo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Às vezes não sei. Talvez seja inevitável que todas provenham do chão da realidade, mas a raiz pode estar muito bem escondida, a semente pode ser aérea. O primeiro conto de meu livro novo, eu lembro como foi: tinha feito vestibular (avisei que fazia tempo) e estava assistindo a um daqueles programas em que os professores fornecem seus prognósticos de gabarito. Nesse, entretanto, exibiram antes uma reportagem sobre vestibulandos com necessidades especiais. Depois de uma tomada em que aparecia adentrando o local de prova pedalando um triciclo, uma anã cedia entrevista ao repórter. Era bonita e notavelmente vaidosa, de uma vaidade cativantemente ingênua, um pouco canhestra. Quando passava a mão nos cabelos ao responder notei as unhas pintadas e (ou será que aqui já invento?) que as mesmas mãos eram desproporcionalmente grandes. Daí nasceu minha personagem e minha fábula, Boneca-de-Pano.
Outro conto do volume, Clepsidra, é dedicado a Ariano Suassuna antes de mais nada pela razão prosaica de que o escrevi sob encomenda, encomenda minha, é verdade, para ele, depois de o ter visto num condomínio de casas de praia em Candeias, Jaboatão dos Guararapes, e apurado a informação de que estava de férias ali por algumas semanas. Escrevi em duas ou três noites, coloquei o manuscrito num envelope e tentei fazê-lo chegar ao velho calango alado de Taperoá. O Calangóatl voou daquelas paragens sem recebê-lo.
Peço intercessão da Virgem Maria para que ele possa ler o conto do lado de lá, se lhe aprouver ainda a língua dos homens mesmo estando versado agora na dos anjos, não por ter virado um, mas porque a coorte celeste decerto se reúne a seu redor para ouvir causos, autos, anedotas, de que eles mesmos amiúde participam, criaturas da criatura criadora que faz até do Criador criatura. Os livros e gibis que lemos, os filmes e novelas a que assistimos, as músicas e estórias que ouvimos, os fatos que testemunhamos, vivemos e sonhamos, os adágios que absorvemos, os silêncios que nos impregnam, têm cabal ascendência sobre os livros que escrevemos, mas não posso mensurar em que medida as personagens dO Auto da Compadecida são matrizes das desse meu conto. Decerto alguma. A questão é: as de Vidas Secas não são menos. Antígona comparece? Toda ficção é povoada por um cortejo de fantasmas, como a cidade de Pedro Páramo, fantasmas de outras ficções, de outras verdades. Dessa indevassável promiscuidade resulta em parte o enigma criativo. Suspeito que cultivar hábitos para se manter criativo é a melhor forma de afugentar a criatividade; a Musa não gosta desses subterfúgios. E é isso, na barba do velho se esconde o feitiço.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Uma das principais e melhores coisas é que passei a conseguir escrever sem que a angústia me obstruísse, me obliterasse, sem ranger de dentes, com a língua solta e voluptuosa. A palavra “escrever” encerra toda a exasperação relacionada a ela com seu áspero “r” final, o crepitante encontro consonantal “cr”, contrabalançados entretanto pelo veludo do “v” e pelo sibilo do “s”, tudo trespassado pelo “e”, vogal que para mim, diferente de Rimbaud, tem a cor vermelha. Continua a ser árduo, mas extraio prazer da escrita como antes só extraía de imaginar: mais. Escrever é imaginar com mais asas. Se pudesse me dizer algo quando comecei a escrever, não diria nada. Sou leitor de ficção científica. Qualquer alteração no passado pode fazer com que agora eu esteja morto…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um conto ou romance sobre um mundo ou dimensão habitado por monstros em que corpo e mente coincidem. Seu corpo é sua mente, sua mente é seu corpo, de modo que quando um deles adquire um conhecimento, cresce, quando tem um incremento de autocompreensão, uma ponte de carne liga duas partes até então desconectadas. São seres muito grandes, naturalmente, e abomináveis aos nossos olhos. Labirintos vivos, catedrais, panteões, acrópoles de deuses-força nem olímpicos nem infernais: Caos, Érebo, Eros, Anteros. Imagine os sons que produzem com seus órgãos, tubas, trombones, flautas de Pã naturais, pois se a mente é corpo não só seus pensamentos mas todo seu metabolismo ontológico, toda a atividade de existir neles deve produzir sons mesméricos que talvez não fôssemos capazes de suportar, o som do ser desses metapaquidermes de pele sensível, de complexos toucados de tecido vivo, irrigado. Se entram em luta corporal, causam danos à inteligência, sabedoria e conhecimentos uns dos outros, mas têm o dom da regeneração, em diferentes graus. Copulam e se fecundam através de várias zonas erógenas, e saem mutuamente grávides; darão depois um ou mais brotos. Não há sexos, apenas sexo. São pãermazeusapolíneoadesehefesterafroditas, e os hinos que entoam enquanto transam ocupariam a cognição do melhor cientista e a sensibilidade do maior poeta da Terra por uma vida inteira, isso para ser indulgente. Pode alguém duvidar em sã consciência de que eles existem? Parece que comecei a escrever a estória, logo isso não serve mais para responder a pergunta. Perguntas são um potente estímulo inicial. Obrigado pelas suas perguntas, por esta. É uma coisa que quem escreve deve se fazer. Um livro que gostaria de ler e (acho que) ainda não existe é esse que esbocei acima.