João Nemi Neto é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu vivo entre dois mundos com dois nomes distintos. Como professor, eu assino meus textos João Nemi Neto e como poeta, eu assino João Maria Cícero. Entre essas duas identidades, eu tento escrever todos os dias, seja o meu trabalho acadêmico, seja o poético, porém tenho percebido, os dois estão se misturando cada vez mais.
A minha rotina é vinculada ao meu trabalho de professor. Eu preciso deixar as aulas preparadas durante a semana. Porém, como escritor, eu procuro trazer elementos de escrita para as minhas aulas. Os alunos têm cadernos de escrita, escrevemos textos juntos, organizo leituras de poesias na faculdade, publicações… Ainda que não sejam meus, os textos que vamos produzimos ao longo do semestre me mantém próximo da escrita.
Nos dias que dou aula, a escrita tende para o lado professor. Eu escrevo para os alunos – comentários nos seus textos ou atividades de escrita coletiva. E escrevo alguns textos acadêmicos, sobre educação e cultura.
Afina, a rotina matinal é simples: organizar os textos do dia: os que vão ser lidos e os que vão ser escritos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu escrevo melhor de manhã. Logo cedo. Meu ritual de escrita é corporal. Eu tento manter o corpo em movimento para escrever. Corridas matinais e caminhadas fazem parte do processo. Saio gravando minha voz e depois continuo escrevendo o que comecei andando.
Além das mãos e da cabeça, eu tento conectar pernas, braços, boca… É um ritual de corpo mesmo. Eu tento escrever em lugares diferentes também. Em casa, na rua, no trabalho…
Eu acordo cedo todos os dias, tomo café e tento escrever pelo menos uma hora. Quando o clima permite eu saio para correr. Eu fui percebendo com o tempo que movimento me ajuda a escrever. Jean Claude Van-Itallie, um dramaturgo belga-americano, diz que a escrita é corporal, é coletiva. A gente tende a ficar muito parado, e eu fui vendo que o movimento me faz escrever. Assim, eu procuro andar, correr, dançar…. como parte da minha rotina de escrita.
Eu tenho medo de escuro e do escuro. Escrever de noite me causa ansiedade…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tento trabalhar com escrita pelo menos duas horas por dia. E nos dias que não dou aula, pelo menos quatro horas dedicadas inteiramente a algum texto.
Prazos ajudam bastante… A meta é calculada de acordo com os prazos que vão surgindo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu escrevo em vários espaços. Em caderninhos, no bloco de notas do celular, no computador, em folhas de papel em casa, em post-its e na parede. Essas ideias vão se juntando de alguma maneira enquanto vou escrevendo.
Eu tenho uma escrita bem caótica. Vou trabalhando com vários capítulos e títulos ao mesmo tempo. A minha dificuldade nunca foi começar, está em terminar, sempre.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevendo. Eu perdi a vergonha de escrever para mim mesmo. Eu deixo as ideias entrarem. Aos poucos vou criando um arcabouço de textos para serem trabalhados depois. Como eu disse antes, a dificuldade é terminar. A minha trava é depois da escrita. Tenho medo de ler o que escrevi e vou adiando o processo. A procrastinação vem com o texto já existente no meu caso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu acredito na escrita coletiva. Todos os meus textos são lidos por várias pessoas que admiro e por algumas pessoas que me dão medo. Eu acho fundamental que leiam o que escrevo. Entre idas e vindas os textos vão se fechando depois de muitas revisões. Não sei precisar um número, mas são entre cinco e seis pessoas e para cada um desses colaboradores uma revisão nova minha.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso as tecnologias que estão disponíveis. Há textos que vão surgindo no papel e outros no computador ou no celular mesmo. A minha voz é tecnologia de escrita também. Eu gravo muita coisa antes de escrever. Eu mantenho material de escrita próximo a mim, seja a tecnologia-papel ou a tecnologia-computador.
Não tenho nada contra computadores, ou outras formas de escrever. Acho que todas as nossas ferramentas são tecnológicas, depende só da maneira como as usamos ou desde quando as temos/ tememos. E junto com isso, também sou daqueles escritores saudosistas do tempo da máquina de escrever. O barulho das teclas da máquina como na música do Chico Buarque para os Trapalhões me dão prazer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tenho medo de descobrir de onde vêm minhas ideias e não sair de lá nunca mais. O plano das ideias é bastante atraente, não?
Quando eu era professor de crianças, eu fiz um curso sobre como ensinar a escrita para crianças e durante as duas semanas de curso, nós – professores – fomos estimulados a trabalhar com a ideia de caderno do escritor (Lucy Calkins fala bastante sobre esse tema). A partir daí fui cultivando meus cadernos como fontes de ideias. Assim, manter esses cadernos é parte dos hábitos que cultivo para me manter criativo.
O segundo hábito é visitar museus. Além das obras, observar as pessoas, arquitetura, espaços, tempos… dentro de um lugar destinado à arte.
E um outro hábito é o contato com escritores. Trocar textos, ideias, conversas, loucuras… É quase como manter pastas de papéis de carta como quando éramos crianças. Eu me lembro bem de como as meninas colecionavam papéis de carta e eu era fascinado por aquela ideia. Como eu era menino, essas pastas me eram proibidas. Assim, eu passei a colecionar coisas que não seriam interditas: recortes de jornal, fotos dos cadernos de cultura, propagandas de revista…
Hoje eu mantenho minha escrita como uma coleção de papel de carta. Eu vou trocando com as pessoas e guardando nas minhas pastas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A primeira coisa que eu diria: “Não jogue nada fora”. Eu me arrependo de ter jogado fora meus primeiros caderninhos de escritor, minhas notas de escola, minhas redações da faculdade.
Como eu disse antes, eu gostaria de ter essas pastas que eu fui colecionando ao longo da infância. Minhas agendas do colegial, minhas notas…
A escrita para mim foi um processo de saída do armário. Permitir que me chamem de escritor foi mais difícil que a compreensão da minha identidade de gênero e orientação sexual. Ainda hoje, tenho dúvidas sobre o quão escritor eu sou. Portanto, para mim, escrever é parte da minha resistência de viver. Escrever em português em outro país, escrever em outra língua… Esses pontos são pontos frequentes de dúvida e incompreensão, por isso insisto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto mais antigo para mim é colocar no papel uma reflexão sobre ser professor e escritor. De que maneiras esses dois caminhos se cruzam. Em muitos momentos, eu deixei de escrever por longos períodos para poder seguir ensinando. Por outros, eu fui escrevendo textos acadêmicos, deixando a ficção de lado. Hoje eu vejo que minha escrita acadêmica é parte da ficcional. Elas se complementam.
Que livro não existe? Acho que o seu projeto é um livro que quase existe e que eu gostaria muito de ler. O que todas essas pessoas têm em comum? O que trouxe todas essas pessoas para cá? É o livro ou a escrita? Do que os livros precisam?