João Lucas Dusi é escritor, autor de “O grito da borboleta “ (Penalux, 2019) e redator do Rascunho.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Café puro e cigarro. Meio caricatural. E checar o celular, claro, com a avidez de quem busca uma Revelação. Como um perfeito imbecil – filho pródigo de seu tempo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As madrugadas são sempre produtivas em tempos de escrita. A música ideal tocando, alguma que converse com o ritmo da prosa, ajuda bastante na cadência do texto. Para escrever bem, considerando o que eu mesmo acho bom, preciso estar calmo. E a calma vem sempre depois de uma tempestade de merda. O ritual pode preceder a ação em dias ou meses: quando uma ideia forte me domina, deixo-a fazer ninho e ir me consumindo – com maior ou menor violência, dependendo da urgência do discurso. Essa obsessão, às vezes, pode ditar o ritmo das minhas ações mais do que eu gostaria.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando se transformar em meta talvez seja a hora de parar. Ou talvez essa afirmação inicial seja a de um romântico e se por acaso surgisse a necessidade de se ter uma meta eu me renderia a ela de bom grado. Por enquanto, escrevo em períodos bem concentrados. Em um clima quase de mania, com direito a situações caricaturais como despertar com a urgência de anotar uma frase ou ideia. Posso ficar meses afastado da fabulação, aí surge esse ímpeto doentio. Eu costumava obedecê-lo com uma seriedade absurda, mas há algum tempo a Chama vem se apagando. Ou pode ser só uma fase ruim. O mundo inteiro está atolado na merda, afinal, é ou não é?
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de anotar ideias esparsas, e as melhores costumam surgir em momentos inesperados – louça, banho, caminhada, fumando, regando uma planta, me masturbando. Aquela ladainha de sempre. Madrugadas regadas a álcool e drogas podem ser brilhantemente produtivas, mas também trazem muito material lixo. Quando sinto que a ideia da vez está madura o suficiente, o que pode levar bastante tempo, o processo mecânico de passar para o computador é bem rápido. Há algum tempo, pelo menos desde minha novela de estreia (chamada Meu escrito, cuja primeira parte foi publicada na revista Madame Psicose), tento cultivar um estilo bem direto e cadenciado, quase musical e puxado pra oralidade, que acaba saindo com muito mais facilidade do que minhas primeiras experências narrativas – todas muito cabeçudas, com aquele desespero de tentar soar o mais inteligente possível, abusando de recursos em momentos errados, exagerando em referências, sendo hermético. Quanto às pesquisas: tento evitá-las. Me baseio muito em acontecimentos reais para escrever, mas, depois de um primeiro contato, acho melhor deixar que a ficção feche as brechas, dite o ritmo. É a terra da alucinação, do devaneio, que então o que é real fique na realidade. Se a gente já precisa brincar diariamente de existir em um plano social organizado, pautado em supostas verdades e cercado por pessoas muito sérias que pesquisam as coisas e definem o tom da realidade, que na ficção possamos chutar o pau da barraca, tacar fogo no inferno, crucificar Jesus pela segunda vez e sentar no trono de Deus. Claro que esse processo de anarquia moderada está inserido dentro da própria realidade da qual estou zombando, mas etc. etc. etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como a ficção nunca me deu um centavo, muito pelo contrário, tenho a liberdade de encará-la com maior desleixo – um desleixo bastante metódico, na verdade. A ansiedade não me pega muito com relação à escrita, pois desde bem cedo já saquei qual é do nosso país e não tô muito aí pra nada. Claro que seria ótimo ganhar a grana alta de um prêmio e ser adulado por uma pequena corja de urubus, mas vou tocando a vida como dá. Em meu primeiro romance, O diabo na rua, enfrentei os problemas mais clichês relacionados à produção da prosa de maior fôlego: momentos de hesitação, vontade de deletar tudo, de ficar batendo a cabeça na parede até sangrar. Mas acabou saindo. É preciso calma, e a gente nem sempre pode ter o que quer – como já disse Mick Jagger. A disposição para projetos longos, pelo menos pra mim, exige um bocado de fé cristã. Uma moderada dissociação da realidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro para bem pouca gente. O círculo vai se fechando cada vez mais. Meu processo é parar para reler em cada frase. Reviso todo parágrafo obsessivamente, caindo às vezes num processo que desconfio ser autossabotagem: o de mudar uma vírgula de lugar, por exemplo. Não sou o James Joyce pra fazer esse tipo bosta, e me dá uma puta vergonha alheia quando vejo gente dizendo – nas redes sociais, sempre elas – que levou duas décadas pra terminar um livro de 80 páginas que saiu por uma editora obscura. Não consigo deixar de pensar que essa pessoa com certeza tem certeza de ser o novo Guimarães Rosa ou Hilda Hilst, e aí meu estômago cede – bílis no teclado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O grosso da coisa vai sempre no computador, mas tenho uma cadernetinha para anotações. E uma daquelas canetas bonitonas que se compra por cincão nas Livrarias Curitiba. Estilo é tudo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minha produção é radicalmente intertextual. Meu primeiro livro, O grito da borboleta, é um emaranhado de referências obscuras quase initeligíveis – gosto bastante dele, mesmo assim. Era tudo que eu queria naquele momento, e acho que o realizei com a maestria do meu possível à época, guiado por impulsos honestos. Os hábitos, então, para além da vivência cotidiana (tudo muito mais acentuado antes da pandemia: pegar ônibus lotado, beber ou não beber, cheirar ou não cheirar, estar ou não com alguma garota, estar em período de abstinência ou completamente louco, término de relacionamento, tarefas idiotas, ódio sibilante etc.), giram em torno da leitura e consumo de outras mídias/linguagens – filmes, séries, fotos, documentários. E sensações as mais extremas; imaginar cenários caóticos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria para aquele rapaz de 16 anos fazer tudo exatamente igual – sem tirar nem pôr. Minha primeira narrativa, escrita há uma década, traz todos os elementos que trabalhei ao longo dos anos – violência, drogas, suicídio, existencialismo, metaliteratura, intertextualidade. O que vem se modificando é essa passagem do hermético para algo com mais gingado. Acho que devido a uma maior segurança, talvez: sem mais o desespero de querer ser visto como muito incrível. Claro que o ego ainda grita diariamente, senão eu não colocaria um pingo de tinta no papel (ou não teclaria uma palavra no computador), mas a situação geral é mais moderada. Há mais calma, diria, e também alguma desilusão: publiquei meu primeiro livro e acho que não senti o que supostamente devia ter sentido. Meus projetos mais modestos, como o fanzine Obsoletos (do qual fiz parte por três edições) e a revista Madame Psicose (ainda em andamento, com uma edição disponível), me deram – dão – mais prazer do que a ideia de publicar uma obra e toda a merda que vem a reboque. Enfim. Tenho mais quatro livros na gaveta, de qualquer forma, se alguém aí se interessar. Se a publicação não envolver parcelas de 400 reais por mês ou um valor fixo de 7 mil: melhor ainda. Ou se alguma alma caridosa quiser me apadrinhar dentro de uma casa editorial enorme, para que eu me torne parte do sistema cancerígeno de editoração brasileira tocada pela elite, também estamos aí.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou trabalhando em um segundo romance, chamado inicialmente Animais urbanos, e com ele quero atingir a simplicidade escandalosamente potente de Androides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K. Dick. Quero uma narrativa sutilmente metafísica – e que converse com meu próprio romance anterior. Os personagens devem estar conectados por algum tipo de energia obscura que os rege – talvez o macaco-demônio, uma entidade criada pelo Richard Fariña em Tanto tempo na pior que o que pintar é uma boa. Por ora, no entano, não tenho a menor ideia de como desenvolver essa história de maneira satisfatória. Já rabisquei algumas páginas e há um tom que se insinua, mas o caminho será longo e bem penoso, provavelmente obedecendo a todos os clichês já citados que envolvem um projeto de fôlego.