João Gomes é poeta, escritor e editor da revista literária Vida Secreta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Já tive muitas rotinas, mas nenhuma se tornou estável. Começo o dia afinando a cintura abdominal com a técnica do stomach vacuum, logo depois bebendo bastante água e comendo três castanhas do Pará porque meu corpo também é escrito pelo tempo e o reviso sempre. Nunca escrevi após acordar, visto que também não me lembro dos meus sonhos e não durmo com ideia hibernada para o próximo dia. Acordo com preguiça de fazer coisas lentas, como ler ou escrever. Prefiro ir correr alguns kms, pedalar umas subidas íngremes, malhar as pernas. Atualmente tenho passeado com minha cadela todas as manhãs. Reconheço que a rotina é importante para o escritor, mas não consigo manter nenhuma a longo prazo. Talvez daí não me sinta profissional, nem quando escrevo por encomenda.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre gostei de escrever de madrugada, pelas ruas e pontes do Recife. É algo sintomático da minha eterna solidão, do meu apego ao conhecimento. Para escrever poesia, preciso estar só comigo mesmo, sem ninguém para me interromper. Já escrevi muitos poemas em poltronas de livrarias, ficando horas olhando o nada. Quando escrevo artigos, posfácio de livros, resenhas ou elaboro perguntas para entrevistas com artistas, não me importo de estar rodeado porque me sinto na redação de um jornal, num centro de pesquisa universitário, lugares estes que nunca estive por ser autodidata e desconfiado do meu futuro. Não acredito que tenha ritual, mas sim vontade de dizer a quem pouco quer ouvir. Quando rascunho poemas, gosto de digitá-los dizendo cada verso para o Android, talvez este seja meu único ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse, preciso sempre separar o meu lado pesquisador e crítico do de poeta. Quando o texto é em prosa, são raríssimas as vezes que não o escrevo de uma vez para depois começar a reescrita, os cortes e a leitura em voz alta para entregar. Quando escrevo poemas, prefiro rascunhar tudo num bloco de papel com páginas costuradas e sujas, úmidas, bem pessoais. Quando a inquietação está muito grande, rascunho até cinco poemas, com temas próximos ou parecidos numa tentativa sempre de fazer aquele poema que pensei já ter dado por finalizado. Minha meta de escrita é ter dezenas de poemas para falar aleatoriamente a algum amigo que me ouça, ou mesmo para ler quando estou pra baixo e aquilo, o que nem eu acredito ter escrito, me proporciona o riso. Sinto-me como o poeta do livro Dom Casmurro, que lê seus poemas no bonde e desaparece.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como não acredito em originalidade, mas sim em estilo, não anoto nada antes, vou direto para o texto e levo toda a minha alma. Geralmente vejo entrevistas, tento forçar a memória para associar o mais importante naquele tema, faço das minhas experiências referências reais para argumentar o que pretendo discutir. Na poesia às vezes é uma frase, um trecho de uma canção, ou mesmo uma melodia para começar um poema. Só é difícil começar quando não temos nada a dizer, ou não deveríamos tocar naquele tema, quer seja por não ser nosso terreno, por invadir uma zona de conforto. Movendo-se da poesia para a prosa argumentativa e discursiva, é sempre necessário não enfeitar o texto, não florear demais, mas sim trazer o ritmo tão importante na pedra de toque do estilo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É sempre frustrante a perda do raciocínio, o não lembrar daquela palavra quando estamos conversando. Quando estamos escrevendo, e o texto não nos convida mais a escrevê-lo, é porque o mesmo deixou de se conectar com nossa respiração, com nossas sinapses. Não sei se seria uma falência dos órgãos, mas é tão triste quanto a notícia de um falecimento. Quando é um romance, parece que estamos perdendo um filho, mas não ainda para o mundo, que talvez nunca chegue a conhecer. Gosto de projetos longos porque já editei revistas literárias sozinho e já dirigi editorialmente antologias com organizador convidado. Escrever e editar, quer seja meu texto ou de várias pessoas, está muito entranhado em mim. Então tudo isso facilita um pouco o processo, faz com que eu mais ou menos imagine como é ser o autor e quem aguarda pelo texto. Em se tratando de poesia, gosto muito dos poemas por encomenda, às vezes são os melhores, porque foi proposto e você nem sabia que poderia tocar naquilo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu leio sempre em voz alta, na medida em que escrevo, cada parágrafo, cada estrofe, cada pergunta de uma entrevista. Se não tiver ritmo e vida não me interessa publicar. Quer ser narcisista na arte, que seja, mas para o bem, para a busca da qualidade literária e ética da vida. Tenho um time de amigos e amigas, uns escritores, outros apenas leitores, que sempre envio e mostro meus textos. Entre o elogio e a crítica prefiro a crítica, por mais estranho que possa parecer, porque também sou muito direto e profissional no quesito de apontar e comentar as coisas. Até uma dúvida gera uma crítica, mas ficar só elogiando faz com que o sucesso suba a uma parte da cabeça que talvez nunca tenha nada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre gostei de formatar o que escrevo. O apego à formatação foi tanto que todas as minhas publicações que fui editor na Vida Secreta Publicações foram criadas no Microsoft Word. Quando tenho o poema muito em mente, ou quando é encomendado, escrevo diretamente no computador, para não ser tão lento o processo. A escrita manual só me acontece quando é urgente para mim, envolta num processo transitório de dor de parto, de contestação de que aquele poema carrega toda uma circunstância mesmo quando não é autobiográfico. A fonte que mais me inspira a seguir digitando é Merriweather no tamanho 12 e em negrito. A coisa flui quando já vem bem diagramada, você percebe melhor onde está errando, onde excede inclusive o espaço não só dá página mas também do tempo do leitor. Para escrever sempre à mão não precisa ser tão crítico, pode devanear, secar a caneta, mas desde que no processo de edição tenha mais cortes que acréscimos. Quando escrevemos no computador, a sensação que dá é que foi a máquina que escreveu, que rolou um Ctrl + C e um Ctrl + V no que já está ali, pronto para ser publicado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A maneira como é dita as coisas sempre me fascinou. Minhas ideias vêm das páginas de livros de poemas, de catálogos de arte com seus textos de curadoria, de livros de filósofos como Schopenhauer, Comte-Spoville, de playlists do Spotify, de séries nunca dubladas da Netflix, de vídeos de espetáculos de dança contemporânea e etc. As canções malucas de Tom Zé sempre me inspiram, por ele conseguir fazer música com qualquer ideia. A recifense Duda Beat, Liniker e a nova Mpb nunca sai dos meus ouvidos. Porque sei que quando o artista tem um propósito, mesmo o de ser apenas comercializado, ou de ficar sempre anônimo, lembrado só depois de 50 anos ou só quando morre, nada disso importa quando é mais forte nosso intuito. A minha criatividade parte desse anonimato enquanto indivíduo mas com o requerimento de sempre ser ético com o que escrevo. Ao mesmo tempo acho que tudo isso aqui vai um dia desaparecer como passou a existir e tudo sempre será poeira outra vez. Manter-se informado e atualizado é sempre útil para o processo de escrita, senão você só fala de seu umbigo, algo primário demais quando não se tem estilo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meus primeiros textos são eróticos e pra baixo. Eu teria investido menos na fossa, mesmo sendo essencialmente fossa à época, porque é muito fácil o caminho da tristeza, do amor não correspondido e platônico. O que me salva é que à época eu publicava somente prosa literária, escrevia narrativas e relatos autobiográficos, e o poemas eram como um nó numa cabeleira farta. Hoje tenho tudo isso, mas com um estilo já peculiar, com humor. Na prosa argumentativa a luta é a mesma, a da elucidação e atenção aos temas que sempre me debruço: identidade de gênero, sexualidade, política e escrita literária. A gente não pode se culpar pelo que fez de péssimo no passado, mas o próximo passo é o que importa sempre se for diferente pra melhor. Apesar de ser muito sexualizado, tinha medo de ser apenas um escritor pornógrafo, aí descobri o atletismo e recorri a outros temas que envolvem a mesma matéria mas com ingredientes mais apurados e não mais liquidificados a ponto de ninguém saber identificar o gosto. Meus primeiros poemas ou eram muito tristes ou muito abstratos. Não me arrependo deles, porque tudo é muito complexo, nada é simples, mas se tudo estiver organizado na pretensão de dizer, o poema pode ser sim objeto estético de prazer constante. Antes eu queria ter já lido o Marquês de Sade e os sonetos de Glauco Mattoso, a prosa e a poesia de Hilda Hilst, aí eu seria como sou hoje talvez.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como eu nunca publiquei livro, e vivo organizando o primeiro desde 2013 e que já se desdobrou em três desde então, meu projeto que ainda não comecei é lançar meus poemas políticos, meus poemas de fossa e meus poemas da fase atlética visto que era sedentário e nem sequer sabia andar de bicicleta. Podemos mesmo ter várias faces, mas nunca a da hipocrisia e da falsidade, gostaria de mostrar as que possuo em livros separados de poemas. A fase atlética, a solitária e a política. Eu gostaria de ler um livro que mostrasse como é ser homossexual numa sociedade tão atrasada e reprimida, num país tomado pelo ódio e pela hipocrisia onde nada às vezes faz sentido, com um protagonista retratado em seu dia a dia, visto por todos como um alienígena, mas que sabe se defender, que encara, que veste roupa feminina, que faz entregas de bike para ganhar dinheiro, que mora só desde os 20 anos e que desistiu do suicídio desde que descobriu que o limite do corpo é resistir sempre.