João Gomes Junior é poeta, professor, historiador e militante LGBTQI+, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários (IFRJ), mestre em História Social (UFF, 2019) e Licenciado em História (UFRRJ, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nem sempre eu começo os meus dias, no sentido mais estrito de “começar”; muitas vezes apenas tiro cochilos de duas ou três horas por noite, o que é um problema e me prejudica sobremaneira. Mas não tenho conseguido dormir nos últimos anos, a cabeça não para de produzir e tenho compromissos que me fazem acordar cedo pelo menos 3 ou 4 vezes por semana – uns dias acordo 5h, noutros 8:30. Ainda assim, quando consigo de fato dormir e acordar, sabendo que aquele é um dia diferente do anterior, novo, separados não por um cochilo, mas por um bom repouso, gosto de me alongar, meditar, me exercitar e tomar um café preto forte, com duas colherezinhas de açúcar, seguido de um bom banho. Quando eu fumava – e eu fumava muito, estou neste momento na árdua luta contra o tabagismo; uns dias fumo bastante, noutros não fumo nada (enfim, tem sido um projeto) -, eu curtia a ideia de tomar uma xícara de café e fumar de dois a três cigarros em sequência. Tudo isso, enfim, depende do meu dia e da minha agenda. A única rotina mais sólida que tenho é a de acordar, pegar o celular e verificar todas as minhas redes sociais e contas de e-mail antes de sair da cama. Passo o olho nas mensagens, vejo se há algo imediato, alguma emergência que altere o meu dia, depois consulto a minha agenda (sempre em minha cabeceira) e me levanto. Acho que esta ação é o mais próximo que chego de uma rotina matinal. Fora a preguiça e o silêncio de todas as manhãs.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que as ideias ganham lógica e sentido em minha cabeça após a tarde, justamente por já ter passado todo o dia refletindo sobre aquilo. Gosto de pensar bem no que escrever antes de fazê-lo, do contrário eu simplesmente empaco olhando para a tela do notebook ou para a folha de papel. Geralmente eu organizo a minha ideia, depois faço algumas anotações, rascunhos e roteiros e a partir disso eu desenvolvo o meu texto, um trabalho que vejo como quase artesanal.
Acredito ser importante destacar que, enquanto poeta, historiador e pesquisador, tenho modos e rituais de escrita distintos para cada tipo/gênero de texto. No geral, prefiro escrever tudo à mão e depois desenvolver melhor no computador. Os poemas eu não fico pensando sobre, tentando criá-los. Pode parecer clichê, mas eles simplesmente acontecem: algo que ouço (uma conversa, uma música), ou leio, ou vejo, ou me lembro – e rapidamente ganha vida enquanto verso. E depois vem outro. E outro. Assim escrevo os meus poemas: anoto versos, estrofes ou textos completos no bloco de notas do celular; depois de um tempo passo à limpo para um caderno; por fim, quando sinto que ele está pronto e “redondo”, transcrevo para algum arquivo e salvo online. Assim escrevo a minha poesia – o que difere da escrita acadêmica em um simples detalhe: o texto acadêmico eu faço diretamente no computador, cercado de livros e com vários artigos e arquivos de fontes abertos. Nesta escrita eu utilizo anotações feitas previamente à mão em algum papel, bloco ou caderno simplesmente para ter um guia e não perder o foco.
Sem dúvida o horário em que me sinto produzir melhor é a noite, especificamente entre 22h e 3h da manhã. Há o silêncio. Há um clima de intimidade entre minhas ideias e eu. Estou ali, sozinho, e tudo o que preciso fazer é escrever. Quando fumava, escrevia com uma taça de vinho e cigarros ao lado. Hoje só preciso de água e café ao lado, às vezes um pouco de vinho.
Não tenho grandes rituais. Só preciso mesmo de silêncio, paz e isolamento. Por isso a noite me contempla.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando existe algum prazo que preciso cumprir, seja para a entrega de algum trabalho que me foi solicitado, como algum artigo ou capítulo de livro, por exemplo, costumo dar maior atenção a essas produções e escrever um pouco a cada dia. Dependendo do prazo, escrevo de maneira mais concentrada e direta, como no final da escrita de minha dissertação, quando virei algumas noites sem nenhuma dor de consciência.
Eu sou uma pessoa de marte em virgem, então busco ser organizado, estabelecer metas e trabalhar aliando prazer e esforço. Confesso, porém, que ando um tanto relapso e indisciplinado, perdendo facilmente o foco, mas nada que um pouco de repouso não resolva.
Penso que cada pessoa deve avaliar como se sente melhor, como produz melhor. Para mim é tudo uma questão de momento, de tempo e do que estou escrevendo. Posso dizer que a poesia, e até os contos (quando escrevo), saem de maneira mais concentrada; já a produção acadêmica demanda mais tempo e investimento, sendo realizada, por mim, um pouco a cada dia.
Sem dúvida cada um deve verificar o que lhe faz melhor. Mas trabalhar com metas é uma ótima forma de começar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não costumo pensar em um processo de escrita único, mas em processos, múltiplos e variáveis de acordo com o gênero e o teor do que estou escrevendo; minhas intenções; meus prazos e objetivos; o que acredito que esperam do que estou escrevendo.
Ainda assim, se eu precisasse apontar algum processo de escrita ou metodologia, certamente eu diria: anote, rabisque e rascunhe as suas ideias, tudo o que puder, como puder, quantas vezes puder e quiser. Não tenha medo de escrever bobagem.
Depois passe para o computador, de maneira organizada, sistematizada, com coerência e articulação. Em seguida se afaste um tempo (o que depende de cada pessoa, para mim bastam umas horas ou alguns dias), para que o texto madure. Volte, corrija o que achar necessário – sempre haverá correções a serem feitas, um texto nunca está pronto, finalizado de fato.
Para mim a escrita acaba acontecendo facilmente quando tenho uma boa compilação de notas, uma pesquisa bem feita e alguma leitura da bibliografia referencial sobre o assunto de que estou tratando. Quando me preparo assim tenho menos chances de travar ou me perder em bloqueios. Mas eles acontecem, é inevitável, somos humanos. Acabo tendo mais bloqueios em textos acadêmicos do que em textos literários, por exemplo. Não vejo isso com maus olhos. Escrever exige trabalho, dedicação, esforço – e uma porcentagem considerável de inspiração. Do contrário, não sai nada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sem dúvida a ansiedade e a procrastinação são os meus piores inimigos na hora de escrever e o que mais me fazem travar. Acho que um começo é não se importar muito com a opinião dos outros, muito menos buscar corresponder às expectativas que não as suas. Um texto, seja do que for, é uma criação extremamente pessoal e deve atender aos desejos, objetivos e expectativas de quem o escreveu antes de qualquer outra pessoa. Comparações serão feitas? Sim.
Avaliações acadêmicas? Com certeza.
Mesmo assim, no fim, se você não se agradar e estiver satisfeito ou satisfeita com o que fez, de nada adiantou. É o que costumo dizer sempre para quem me cerca e está escrevendo algo, precisa ou quer escrever: tome o seu tempo, faça um pouco a cada dia e não se importe em agradar ou atender as expectativas de ninguém. Para alguém perfeccionista e controlador como eu (glórias e maldições), sei da importância de ouvir alguém mais experiente, um professor ou professora, a pessoa que te orienta. Sei que, antes de escrever qualquer coisa, é preciso ler tudo o que puder sobre o que está escrevendo. O seu texto precisa atender demandas, obviamente. Mas jamais agradar ninguém. Pelo menos eu penso assim do que escrevo.
Seria hipócrita eu dizer que não espero que outras pessoas gostem e se identifiquem com o que escrevi. Sim, quero que se identifiquem, que se reconheçam, que se aproximem. Mas entre eu me preocupar em agradar um leitor e ser honesto com a minha criação vai uma distância enorme. E é daí que brota a identificação do outro, da honestidade do texto, da sinceridade da escrita. E só podemos ser sinceros com o outro quando somos, primeiro, com a gente mesmo: meu texto precisa atender às minhas expectativas.
Não existe, contudo, uma receita de bolo para isso, para esse medo, essa ansiedade de agradar o outro. Talvez alguém se sinta contemplado ou contemplada com as minhas palavras. Pelo menos o que descrevi é o que funciona comigo.
Sobre a procrastinação: ainda estou buscando um meio de lidar com ela.
Acredito que trabalhar seguindo metas diárias seja um bom negócio!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como apontei anteriormente, penso que sempre haverá correções a serem feitas, um texto nunca está pronto, finalizado de fato. Para mim isto é um problema, porque perco mais tempo revisando, modificando, buscando aprimorar o texto e aprofundar os argumentos e a ideias que nele coloco do que escrevendo o texto de fato.
A forma que encontro de parar com as revisões é publicando. Não que isto impeça novas alterações, edições, acréscimos e cortes, mas é uma forma de entender o trabalho, de dar ao texto um caráter finalizado. E, mesmo assim, não é algo que me satisfaz. Acho que um texto nunca está realmente acabado. Vejo um bom texto aquele que se apresenta redondo, completo, mas com aberturas para novos desenvolvidos, permitindo novas escritas.
Acredito que a opinião de outra pessoa, como dito acima, não é fundamental para o texto como a nossa própria opinião. Mas quando mostro os meus trabalhos para alguém, faço isto muito mais para saber se o meu texto pode ser considerado pronto, ou seja, apto a ser publicado, do que “bom” ou “ruim”. Opiniões, críticas e outras leituras ajudam. Mas não são, novamente, o principal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como pude adiantar em algumas respostas anteriores, sou bastante ativo no uso de redes sociais e das ferramentas disponíveis pelas tecnologias contemporâneas. Estou sempre online, atento ao que acontece e incorporando isso em minha escrita. Ainda assim, acabo sempre por trabalhar melhor escrevendo tudo ou preparando rascunhos à mão. Sinto-me menos preso, é como se a tecnologia desse um status de oficialidade ao que estou produzindo, diferentemente do papel, que me permite a reescrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Costumo buscar as minhas ideias para a escrita acadêmica, para a produção científica no caso, na observação do que me cerca. Sou um historiador da História Cultural e da História Social. Pesquiso a História Privada e, a partir daí, lanço-me em investigações sobre raça, gênero, sexualidades, masculinidades, homossexualidades, família, relações de poder, exclusão social e a formação das subjetividades e identidades dos indivíduos no convívio social, como nos movimentos sociais, por exemplo. Tudo isso escrevo em franco diálogo com a Sociologia, a Antropologia e a Linguística. A multimodalidade textual, a transdisciplinaridade e a interdisciplinaridade são características da minha escrita acadêmica, a qual nasce a partir da minha própria vivência. São as minhas observações e experiências com e no mundo que me despertam interesses, curiosidades e a criatividade científica.
A minha produção literária, por sua vez, que se desdobra em novelas engavetadas, contos escondidos e na poesia (sendo este o gênero com o qual eu melhor me relaciono e onde me sinto mais livre, fértil e honesto), brota de tudo o que ouço, desde músicas, conversas etc. A minha poesia se elabora a partir da minha vivência. Assim, alguns dos hábitos que cultivo para manter a criatividade ativa são a observação das pessoas que me cercam, o ouvido sempre atento, músicas variadas (vou de Belchior e Bob Dylan a Lana del Rey e Milton Nascimento tranquilamente), filmes e muita leitura. Estou sempre lendo e relendo poesia. Estes são os meus hábitos, o que não vejo como nada demais nem especial. Uma vida comum. Só a minha mente que é desenvolta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que o acúmulo de conteúdos, o contato com escritas diversas, variados pensamentos e epistemologias diferentes enriqueceram e contribuíram muito para que as minhas produções se tornassem mais complexas e melhor desenvolvidas. A escrita, para mim, é uma forma de arte, um meio de expressão, e assim como toda expressão artística torna-se melhor conforme for sendo explorada, trabalhada e exercitada. Quando comparo coisas que escrevi a cinco, seis anos atrás a mudança é perceptível. Sinto que o que mais mudou em meu processo de escrita foi a diversificação de gêneros e a busca por uma disciplina. Além disso, olho hoje para a escrita com mais seriedade e profissionalismo que algum tempo atrás.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria a mim mesmo para ler mais, ousar mais, não ter medo de fazer diferente. Não mudaria muito, enfim, pois acredito que a escrita, e os textos, são produções eternas. Nada é novo, estamos sempre reescrevendo algo que já escrevemos anteriormente. É um modo de mudarmos a nós mesmos, de melhorarmos inclusive.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos em mente, estou sempre em busca de algo. Me tornei um tanto workaholic, o que é bom e ruim, mas não consigo parar. De mais concreto, por enquanto, há uma pesquisa sobre os usos do pajubá enquanto mecanismo linguístico na construção de resistências e identidades na comunidade LGTBQI+. Junto a isto estou desenvolvendo pesquisas paralelas sobre história, educação, gêneros e sexualidades. Existem, fora dos projetos acadêmicos, dois de caráter artístico/literário: um livro de contos e um romance, mas ambos são, ainda, meros desejos sem corpo.
Acho que o livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é o livro que ainda me falta escrever e um dia será escrito.