João Caetano do Nascimento é escritor, autor de O rio de todas as nossas dores.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina, decorrente dos trabalhos que faço para sobreviver. Normalmente, pela manhã, realizo um breve levantamento de todas as pendências que preciso resolver naquele dia e daí organizo uma programação de trabalho, tendo a preocupação de reservar um tempo para escrever e ler. Tempo conquistado a duras penas e com muita luta, vale ressaltar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A melhor hora é aquela em que posso escrever. Tanto isso pode ocorrer pela manhã, tarde ou noite. Evito escrever de madrugada. O cansaço, na minha opinião, não é a melhor companhia para um escritor, mas se o tempo que se tem é só de madrugada, que se escreva de madrugada. O importante é conquistar esse tempo. Não tenho rituais para escrever, mas sempre procuro ter comigo, ao lado, livros, documentos ou as anotações sobre o que estou escrevendo. Tento me isolar das pessoas na medida do possível. Na solidão do trabalho as vozes do mundo repercutem mais intensamente, pois acredito que nesses momentos estou totalmente integrado à vida, ao mundo e ao ser humano.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho como meta escrever todos os dias, principalmente quando estou no meio de um romance ou um texto de maior fôlego. Meta quantitativa eu não tenho. Às vezes, nos sentimos mais gratificados, ao final de longas horas, quando conquistamos duas ou três linhas que nos agradam mais do que várias páginas. Aliás, fico desassossegado, quando a escrita flui muito rapidamente. Textos rápidos e leves para jornais ou publicações podem fluir tranquilamente, “ao correr da pena”. Já um texto que se quer literário, por tudo que ambiciona, deve ser pensado e repensado, cada palavra deve ser pesada, cada imagem ou descrição deve buscar uma alta carga simbólica. Isso exige concentração, trabalho duro, análise rigorosa do que se escreveu, determinação para cortar o inútil e acrescentar o que falta, além de plena consciência sobre o que é e o que se pretende com o ato de escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou bastante rigoroso no processo de escrever. Tento evitar ao máximo me entregar às mãos do acaso. Entendo a escrita como um processo consciente de busca. Normalmente uma imagem, uma ideia nos leva a viajar pelos territórios traiçoeiros da criação. Em meu romance O rio de todas as nossas dores, por exemplo, vendo reproduções de quadros da Idade Média notei que, à medida que eles se aproximavam da Renascença, traziam interessantes modificações, entre elas, uma sacralização do humano. Daí me surgiu a imagem de uma mulher do povo, bem velha, as faces marcadas pelo sofrimento e por uma longa história de conflitos. Por trás desse rosto e desse olhar que guardavam dores, frustrações, rancores e lembranças amargas, um sol ao entardecer a iluminava, redondo como uma aureola. Assim surgiu uma das personagens do romance, Celestina. Em torno desse rosto, foi nascendo uma história. Quando tenho a ideia básica, procuro transcrevê-la em cinco ou seis linhas. A partir daí, traço um esboço geral da história que pretendo contar. Anoto as preocupações e inquietações que me levaram até o esboço daquela história. Defino rigorosamente os locais onde ela vai transcorrer, às vezes, desenho pequenos mapas, para eu me localizar naquele lugar. Os personagens também são definidos em sua totalidade, do nascimento à morte. Faço um pequeno esboço da vida de cada um para que eles tenham toda uma coerência de ações na narrativa. Depois de um roteiro estabelecido, passo então à fase da escrita. Procuro trabalhar com rigor cada detalhe, cada imagem, cada acontecimento: datas, nomes, paisagens, forças da natureza – chuva, vento, aves, pássaros – tudo tem uma função e um significado, evitando o acaso e o improviso na criação, embora, eles surjam algumas vezes com a força de um movimento de ocupação de terra, reivindicando espaço. Daí, se revelarem força e organização, conquistam esse espaço, essa terra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando enfim me decido a escrever o romance, trabalho nele praticamente todos os dias, de domingo a domingo, em qualquer tempo livre. É assim que eu faço. Gosto de projetos longos, do desafio que é pensar e se disciplinar a escrever diariamente, apesar de tudo o que é contra, e muitas coisas são contra. Um projeto longo exige que dominemos, dentro do possível, a dispersão, o medo, a preguiça. Encaro isso, talvez até de forma um pouco romântica, como uma missão, uma obrigação, um dever inadiável. Daí, é fazer e fazer o melhor que a gente pode. O resto não depende de nós.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrevo e reescrevo várias vezes. Tiro, acrescento, troco palavras, suprimo parágrafos, coloco outros, etc. Mesmo depois de considerar a obra pronta, ainda me pego alterando coisas até o último momento. Enquanto estou escrevendo, em meio a todo o processo, não mostro nada, nem adianto trechos, etc. Daí, quando tenho a obra concluída, levo a um grupo de amigos a quem confio, para darem opiniões, sugestões ou registrarem impressões durante a leitura. A partir disso, analiso cada sugestão e faço alterações sem problema, quando reconheço que acrescentam, melhoram ou reforçam o digamos assim “espírito da obra”. Muitas vezes, por causa do nosso envolvimento tamanho, não percebemos coisas óbvias. É meio como a relação entre pais e filhos. Às vezes, um olhar de fora ilumina os pontos dessa relação que não percebemos, cegos pelo envolvimento afetivo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma relação tranquila com a tecnologia, embora seja da geração que começou a escrever nos bons velhos e saudosos tempos da máquina de escrever. No entanto, na escrita literária tenho algumas peculiaridades: escrevo e reescrevo inicialmente à mão. Depois, passo para o computador, imprimo, leio, faço anotações e alterações a caneta ao lado do texto impresso, depois volto ao computador e faço as alterações. Mas encaro a tecnologia numa boa, sem deslumbre, mas sem preconceito. Apesar de meu apego ao livro impresso, com tudo o que ele representa, tenho até lido alguns livros pelo Kindle e gostado da experiência.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem das formas mais variadas. Acima, eu citei a ideia inicial de O rio de todas as nossas dores. Eu tinha a personagem, tinha o cenário, mas faltava a história. Um dia, quando tentava organizar o romance, me veio na memória uma conversa que tive com alguns amigos há mais de trinta anos. Um deles relatou o episódio de um despejo. Aquilo na ocasião me despertou a atenção, mas depois o tema morreu e nunca mais pensei nele. De repente, me veio essa conversa de trinta anos atrás e descobri que a partir dela eu teria o fio condutor de uma história. De resto, leio muito, acompanho jornais, procuro ver como as pessoas vivem, o que pensam, as lutas que travam. Neste aspecto, gosto de deixar claro: como cidadão e como escritor eu tenho lado. Defendo transformações sociais, justiça, dignidade para as pessoas. Luto por isso. Vivo essas aspirações intensamente. Elas, portanto, estão também presentes de forma viva em tudo o que escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Na imaturidade dos meus primeiros textos, já havia, felizmente, essa febre, essa necessidade de escrever, mesmo que essa fosse, como eu já tinha vaga noção, uma luta contra o mundo. Às vezes, lendo coisas antigas, me surpreendo ao descobrir o jovem que eu fui e do que restou dele ao longo do correr corrosivo dos anos. Mudei, mas mantive a essência: a fé na literatura, na vida, nos homens e essa esperança, certeza de que temos condições e poderemos criar um mundo melhor. Nesse processo, a literatura, como profunda criação humana que é, tem seu papel. O jovem, que fui, preserva o amor às letras, tenta manter aguçada a gana de criar e vive entregue a essa batalha constante, essa “guerra sem testemunhas” no dizer de Osman Lins, que é o ato de escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, não penso no que gostaria de fazer. Estou no meio de um novo e longo romance. Ele tem me tomado tempo e atenção. Quero e só penso em trabalhar nele ao máximo, regular meu tempo livre e minhas forças para que possa concluir esse projeto. Se valerá a pena publicá-lo ou não, só o tempo e a obra concluída poderão nos responder. Quero, tenho a obrigação de fazê-lo. Isso me basta. Quanto aos livros, há muitos livros bons por aí que a gente precisa ler. Me contento em ler o que já existe e me concedo a petulância de fabricar os meus. E espero que muita gente leia e leia muito, muita gente escreva e escreva muito, dedique-se à literatura. Nestes nossos tempos tão conturbados, a literatura é mais do que nunca necessária, mais do que necessária, é imprescindível. Só podemos melhorar à medida que sonhamos e criamos. A vida é isso: buscar o impossível.