Jéssica Cristina Jardim é ensaísta e pesquisadora, autora de “Dramaturgos, críticos e ratos: reflexões sobre o teatro em Edgar Allan Poe” (Editora UNESP, 2020).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu nunca me adaptei direito a rotinas fixas e, por uma série de fatores, o horário da tarde foi se tornando preferencial para mim, sobretudo para os processos criativos. Não sou de acordar muito cedo, exceto quanto tenho algum compromisso, e geralmente minhas manhãs são voltadas ao meu aperfeiçoamento pessoal. Eu medito, pratico exercícios, tomo um longo e pausado café da manhã. Nesse horário, gosto de conversar e de pensar sobre minhas ações na vida em todos os setores, leio e escrevo a respeito, releio reflexões antigas que me ajudam a observar esse percurso. Meu horário matinal é de contemplação. Também gosto de passar esse horário em companhia de pássaros. Há alguns anos tenho acordado com o canto deles, talvez não tão cedo quanto eles gostariam e costumam acordar. Por muito tempo os psitacídeos, e atualmente as cambacicas (aquelas pequenas sósias dos bem-te-vis), fora algumas abelhas e um beija-flor tesoura que vêm todos os dias tomar o néctar, as laranjas e as jabuticabas que ofereço e que, em troca, percebem minha energia – quando está baixa, é comum entrarem no apartamento, darem algumas voltas e saírem, como se pudessem levar embora o que precisa ir. Sou grata a eles pela companhia. A importância desse encontro está no fato de que é nesse horário que busco principalmente organizar minhas energias, realinhar meus pensamentos e me colocar em um estado de tranquilidade, etapas primordiais para meu processo de escrita. Estou falando essencialmente de me sentir alegre e cheia de energia, e quem melhor do que os pássaros para ajudar nisso?
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Uma vez que tenha organizado a minha mente, o meu corpo e as minhas emoções, posso dizer que escrevo melhor a partir das três ou quatro horas da tarde, mas também é comum escrever à noite. Não apenas a escrita, mas também a leitura, ambas se dão mais naturalmente nesses horários. Não tenho exatamente um ritual, mas gosto de meditar mais uma vez antes de começar realmente a escrever. Preciso dizer, no entanto, que não estou sempre escrevendo. Escrever para mim é o resultado espaçado de um processo de pensamento contínuo. Assim, não escrevo nem quero escrever todos os dias. Não funciona para mim. Escrevo em curtos espaços de tempo, permeados por longos dias sem escrita, e por fim escrevo intensa e incessantemente. Se há um ritual, é o processo inteiro que resulta nesses momentos curtos e vigorosos de escrita. Fora isso, doces e café ou chá são infalíveis. Gosto de também, nas folgas, exercitar meu cérebro com jogos de lógica, montagem de móveis, resolução de enigmas e quebra-cabeças. A obrigação de escrever sempre me entedia, e o tédio é para mim o inimigo número um do pensamento de qualidade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo de vez. De repente, tudo é posto às claras: o pensamento que se forma no consciente e no subconsciente precisa sair, e eu permito essa eclosão. Não sei a hora, então, estou sempre a postos para permiti-la. O meu processo fragmentado é apenas do pensamento, mas a escrita é feita tão intensa quanto rapidamente. Demorei um pouco a perceber e valorizar esse processo, mas hoje posso dizer que ele se alinha exatamente com minha forma de pensar. Creio que confio mais nas palavras do que no pensamento, e por isso preciso pensar incontáveis vezes antes de resolver que, afinal, cheguei a um ponto da reflexão em que posso por as palavras no papel. Se meu pensamento se tornar claro, minhas palavras serão claras. Se meu pensamento não for claro, escreverei inútil e mediocremente. É só. Não trabalho com metas. O texto terá o formato e o tamanho condizentes com o pensamento e, nesse sentido, estabelecer uma meta seria contraditório. Além disso, por estilo, estou sempre buscando condensar o pensamento ao máximo possível. Reduzir é minha técnica de ouro: conduzir ao mais simples, ao mais direto, ao mais certeiro. Assim, se há uma meta, é a de não permitir que o texto seja supérfluo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para mim, a escrita é a superfície de um longo processo mental. Pouco tempo dedico realmente à escrita de um texto. Em geral, busco me concentrar na organização do pensamento, na reflexão, na pesquisa. Uso um caderno, como uma espécie de memorial, onde guardo frases, palavras, reflexões breves, tudo que se vai materializando durante o processo de pensamento, que pode durar meses. A pesquisa, eu a realizo em arroubos, em blocos tão concentrados, que é difícil falar em processo. Quando trabalho com arquivos, em poucos dias, bastante intensos, acesso aos documentos, em uma busca frenética, manhã, tarde e noite. Descanso alguns dias essas informações. E nesse processo de pausa, as ligações vão sendo feitas, às vezes consciente, por vezes inconscientemente. É muito depois que considero a escrita. Evito sempre o sofrimento da folha em branco – para mim, ele só existe quando ignoro etapas desse longo processo de reflexão. Se a escrita me gera sofrimento, simplesmente paro de escrever, porque é sintoma de uma compulsividade que me afastaria de uma reflexão que se busca honesta com o material do qual trato. Existe honestidade intelectual quando nossos sentimentos estão envenenados? Aguardo, pois, a exuberância, a alegria da escrita, porque acredito que uma escrita sofrida torna os pensamentos desfigurados. Esse tipo de escrita, em mim, falaria mais sobre um processo desgastante do que da busca por uma reflexão que se busca isenta, ainda que alinhada com minha visão de mundo. Não escrevo, nem busco escrever quando não estou bem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que não separo as dificuldades naturais à escrita das dificuldades comuns ao cotidiano e à vida. Nesse sentido, a confiança na escrita e no pensamento me ajudou de sua parte a me tornar mais confiante em mim mesma e em minhas decisões. Gosto de trabalhar em projetos longos, porque me dão mais espaço para a escrita cautelosa, pensada e calma. Valorizo mais o pensamento do que a escrita, e considero que nenhum pensamento de qualidade se faz abruptamente. Meus processos de pensamento e escrita são egocêntricos – no melhor sentido – e por isso as interferências externas são mínimas: estou me referindo às expectativas externas, porque os diálogos com outras vozes e perspectivas nunca cessam. Gosto de ficar comigo mesma e com meus pensamentos. Assim, minha expectativa principal é de deixar correr solta a reflexão, de deixá-la seguir os caminhos que precisar seguir. Há muitas pausas nesse processo, muitas interrupções e a necessidade natural de afastamento. E eu fui aprendendo a compreendê-las e aceitá-las. Não gosto do termo procrastinação, porque muitas vezes ele se aplica incorretamente aos momentos em que precisamos realmente nos afastar daquela reflexão para um retorno posterior grato e profícuo. Uma trava na escrita sempre significa, para mim, que não pensei o suficiente a respeito de um tema. Por isso, a procrastinação é o processo natural e amoroso que realizo em nome da qualidade e da expressão da minha verdade nos textos que escrevo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso setenta vezes sete. Meu prazo final é o prazo final da publicação do texto. Se tiver dois dias, usarei os dois dias; se tiver dois anos, usarei os dois anos para reescrever e revisar o texto. Até um segundo antes de enviar o texto eu o estarei revisando. Existem mil formas de dizer mil coisas, por isso, a rescrita é o processo natural da escrita. Isso se dá porque confio que o pensamento se torna mais afiado conforme o tempo passa e pelo confronto natural com o contraditório. Isso leva tempo. Já me referi que me demoro mais pensando do que escrevendo, por isso, os momentos finais são os mais importantes para a minha escrita, durem esses momentos finais horas, dias ou mesmo anos. Quanto aos leitores, é verdade que não costumo pedir que leiam meus textos em processo, mas prefiro que leiam suas versões mais finalizadas: geralmente pessoas em quem confio intelectualmente. Também pessoas por quem sinto amizade ou com cuja honestidade intelectual eu possa me alinhar, em suma, alguém que não tenha escrúpulos de me dizer a sua verdade sobre o meu texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não costumo diferenciar e-books de livros de papel. Para mim, a plataforma é o que menos importa. Acho que isso veio do fato de que os livros digitais facilitaram em muito meu acesso a obras raras, com que trabalhei a vida inteira. Algumas mudanças de residência também me mostraram muito cedo o quanto é difícil carregar livros por aí e por ali. Tenho poucas coisas comigo. Minimalista, que chamam? Acho que não existe um livro do qual não me desfaria. Quando concluo uma pesquisa, posso me despedir desses livros e seguir meu caminho. Claro que sempre significarão algo para mim. Para isso que serve a memória, não? Mas devo confessar que, quando uma ideia irrompe, é bem mais fácil escrever urgentemente em um pequeno caderno que sempre levo comigo. Meu caderno de memórias, meu memorial. Tenho que escrever logo, senão ficam desbotadas, esqueço as palavras e guardo apenas um sentimento de alguma coisa vaga que se perdeu. Quando isso acontece, preciso esperar alguns dias antes de ela voltar. Mas sempre volta. As coisas sempre voltam para o lugar de onde vieram. Nesse pequeno caderno, à mão, escrevo palavras, frases curtas, pequenas sugestões, falo de algum sentimento que surge, de alguma bobagem que veio à cabeça, dos filmes que vi. Estou sempre em processo de pesquisa e reflexão, e vejo meus objetos por toda parte. Por isso, estou sempre escrevendo, mesmo que de maneira fragmentada e mesmo que não tenha sequer uma folha concluída. Se estiver sem meu caderno, escrevo no celular ou mando um e-mail para mim mesma. Terminando o processo, o texto já está escrito nos meus pensamentos e vou buscando seus pedaços no caderninho, então, não faz diferença se escrevo no computador ou no papel. Para a versão final, prefiro escrever no computador, porque é mais rápido e mais limpo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Meu processo de escrita começa antes do ato de escrever, e é basicamente formado pelos atos de pensar, duvidar, repensar. Estou sempre pensando e lendo sobre tudo, e busco remover os limites entre áreas do conhecimento, entre temas, entre abordagens, entre objetos de pesquisa, entre épocas, entre movimentos artísticos, principalmente entre o acadêmico e as coisas mesmas do cotidiano. A escrita é quando o pensamento se decanta e algo mais material se forma. Nesse movimento contínuo, se eu puder indicar uma constante, é a decisão primeira e amorosa de me voltar a um tema. Sem essa decisão, não haverá nada. Falando mais a respeito disso, essa decisão amorosa se liga diretamente a minhas emoções e ao grau de importância intelectual que o tema da pesquisa ganha para mim em um momento de alegria e de decisão insuspeita. Acho que esse amor seja o desejo de inserir e de agrupar, é a energia ao redor da qual tudo se concentra e retorna constantemente. Uma vez tomada essa decisão, em um momento de exuberância, me mantenho nesse projeto até concluí-lo: é daí que vêm minhas ideias e motivações. Reconheço o final de uma pesquisa quando já não há mais nada a ser feito, quero dizer, quando de minha parte já não há mais nada a ser feito, porque qualquer tema pode ser pesquisado infinitamente. Durante o processo, muitas coisas acontecerão, pois esse é o caminho natural da vida: precisarei de pausas, de afastamentos; poderei me sentir triste ou desmotivada; poderei esquecer o sentido de tudo. Mas sempre voltaremos um para o outro – até não voltarmos mais, e o processo estará de fato concluído. Tudo termina quando já não há mais motivos para voltar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo de escrita sempre foi muito semelhante. Não mudou muito, é claro, além do aprendizado de técnicas de escrita e da sofisticação do pensamento, pela ampliação natural das leituras, dos diálogos e das reflexões. Mas nos primeiros anos, não confiava em meu próprio procedimento desarticulado de escrita, sem grandes rotinas e horários de trabalho, com grandes vazios em que faço tudo menos escrever ou pensar diretamente sobre meu tema. Acho que isso refletia minha confiança em mim mesma. Com o tempo, aprendi a não temer meus momentos de afastamento e meus silêncios. Hoje consigo passar semanas sem escrever, embora sempre pensando no meu tema, sem constrangimento ou angústia. Hoje sei que estou trabalhando mesmo que não pareça. Antigamente, nesses momentos de reflexão e de escrita nula, eu me forçava a materializar algo que ainda não estava elaborado em minha mente, e isso me causava muito sofrimento e um resultado medíocre. Aprendi com o tempo a me respeitar, a reconhecer meus processos e a curti-los. Outra coisa importante é que aprendi a me envolver sentimentalmente com minhas ideias antes de escrevê-las. Foi assim quando da pesquisa que resultou no livro “Dramaturgos, críticos e ratos: reflexões sobre o teatro em Edgar Allan Poe” (Editora UNESP, 2020). Se pudesse voltar à escrita dos primeiros textos, diria a mim mesma apenas: nunca escreva sem amor suficiente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Qual livro eu gostaria de ler e que ainda não existe? Difícil dizer, quando não pude ler ainda todos os livros que já existem, e nem pretendo ler, porque nem todos os livros são para todos os leitores. Quando digo que nem todos os livros são para todos os leitores, quero dizer que se por um lado todos têm a capacidade de ler qualquer livro e de entendê-lo – pois não acredito em uma propedêutica para leitura, além do letramento, e penso que todos somos sempre profundamente sábios e profundamente ignorantes sobre tudo –, digo apenas que nem sempre estamos alinhados ou dispostos a uma leitura em particular. E não há mal nenhum nisso. Evito assim a megalomania de ler tudo. Em meu papel de pesquisadora e ensaísta, guardo a única obrigação de ler várias e várias vezes o mesmo livro.
Sobre os projetos futuros, quem sabe? Mas tenho a suspeita de que todo pesquisador tem uma gaveta, ou caderno, ou caixa – onde guarde as ideias e propostas de pesquisas futuras. Ao menos, eu sou assim. O contato constante com os textos e as ideias dos meus pares me põe em um estado de efusão reflexiva, e assim muitas vontades surgem. Leio aquilo com que me deparo, aquilo que me encontra. Algumas ideias perdem o fogo primeiro e seguem seu rumo. Outras permanecem tempo o suficiente para eu amá-las. Daí que comece novamente o processo fragmentado, pausado, interrompido e de repente efusivo que é minha escrita. Há tempo para todas as coisas. Como escreveu Reiner Maria Rilke, “a vida é longa e lenta”.