Jennifer Trajano é professora de língua portuguesa e revisora textual.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Evito fazer algo que exija mentalmente de mim pela manhã. Alongo, arrumo a casa, lavo a louça, assisto, essas coisas. Se me vem alguma ideia para escrita, é muito raro concretizá-la tão cedo, pois escrever demanda força mental e nesse horário estou em companhia da malemolência.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, acompanhada de um bocadinho de silêncio.
Quando falam “ritual” me vêm a priori coisas sombrias à mente, o que é engraçado. Na realidade nunca antes havia parado para pensar sobre isso. Que me lembre nenhum, nem mesmo com relação ao suporte de escrita. Quando não estou no computador, escrevo no celular, quando não posso usá-lo por algum motivo o faço num caderno, numa folha qualquer. Talvez o “ritual” esteja na escrita em si, na necessidade de labutar a palavra, de rasgá-la até os ossos possíveis de serem vistos por mim, moldando pedaços que caibam no corpo textual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias e é difícil dizer em que períodos sinto essa necessidade. É um mistério que não se desvenda. Vejo gente escrevendo quando está triste, apaixonado, alegre e ou revoltado politicamente. Estou sempre revoltada com a política brasileira, nem sempre tenho paciência para escrever quando vem a tristeza e já sobre a paixão contam-se em uma mão os textos que direciono a alguém. Acho brega e de brega só gosto das músicas. Depois, nem todo mundo é capaz de me inspirar, preciso estar muito conectada, ver algo novo naquilo. Por conta disso prefiro dar vida a quem não existe ou acabei de ver, seja em forma de eu-lírico, narrador(a) ou personagem.
Gostaria de ter disposição para uma meta de escrita diária, mas não consigo, exatamente por buscar o novo no cotidiano das coisas. Paro raramente para escrever, só quando me vem alguma ideia mesmo. E a verdade é que tenho preguiça de organizar um momento todos os dias para me dedicar a isso. Até daria, mas não quero, não vejo por quê.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, édifícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre inacabado, nunca concluo nada. Mesmo que acredite no dia ter concluído, se deixar lá e for ler novamente depois de um tempo provavelmente mudarei alguma coisa ou tudo.
Tenho uma relação aberta com poemas e contos. O meu primeiro conto possui dois poemas em versos que viraram prosa por se encaixarem muito bem na história. Eu precisava de algo para completar e tinha dois poemas cabíveis, então foi o que aconteceu, sem perder as rimas, pois o trecho em si precisava ser rimado, já que citava versos de um livro existente apenas ali, chamado “À espera da liberdade”, nome que não poria em um livro meu. Uma amiga, Rebecca, que depois usou o conto em seu TCC, disse-me que foi atrás desse livro e dos versos, mas não os encontrou, o que me fez pensar (também como leitora) na dimensão do “até que ponto essa ponte de palavras me leva à verdade fora do meu imaginário?”.
É difícil sim escrever, por isso não o faço com frequência, já que exige muito de mim, como já disse. Não consigo fazer outra coisa quando estou concentrada escrevendo. É como se aquele mundo que estou erguendo passasse a ser o meu, a ponto de eu não conseguir sair dele. Você consegue sair desse em que está? Impossível, mas a literatura faz com que eu me iluda achando que posso fazer isso. Eu, sem ingenuidades, adoro me iludir com todo esse jogo.
A minha pesquisa na hora de escrever é inconsciente porque só noto os resultados quando estão expostos, à vista. Portanto, o pagamento é à vista também: não é difícil começar, pago tudo de uma vez, depois dou conta dos juros que o texto me cobra (vou moldando). O bacana é poder escolher pagar ou não, porém, quando escolho a posição de devedora, fico com aquilo na cabeça até que retome, embarque no financiamento que só se resolve depois da publicação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu mesmo imponho as minhas travas, então é uma briga do eu que quer escrever com o eu que ainda não teve tempo ou paciência de parar para isso. Algumas “ideias olhos de ressaca” (dessas que insistem em nos puxar os dedos) me tiram dos afazeres, outras são mais leves e passam como um murmúrio.
No que tange à escrita literária, não sou capaz de lidar com a procrastinação. Deixo que venha, sem consciência pesada, pois tenho noção do meu controle e sei que uma hora ou outra vou escrever. Só me culpo e ponho meta caso seja escrita acadêmica ou revisão a trabalho. Não vejo a escrita literária como uma labuta a ser feita diariamente, não me cobro.
Sobre isso das expectativas, sei do fato de não poder agradar todas as tribos, portanto minha escrita é um Narciso, sendo eu suas águas que servem de espelho. Quero dizer que escrevo para agradar o meu gosto e só. Caso agrade outra pessoa e essa verbalize, fico muito feliz pela afetação e reconhecimento, porém o contrário (a tristeza por não terem gostado) não acontece, pois penso: “do mesmo jeito que tenho o direito e o repertório de não gostar de tudo, as pessoas também têm”, afinal, gosto é muito relativo.
Acho bonitos projetos longos, a exemplo do romance, todavia acredito que nunca escreverei tal gênero, penso ser um saco não concluir logo um texto. Já tentei escrever um romance chamado “O rio Lete não esqueceu de devolver”. Esse rio é o de Hades. Os gregos acreditavam que quem tocasse ou bebesse de suas águas experimentaria o completo esquecimento. O enredo seria sobre uma mãe que tem seu companheiro desaparecido durante a ditadura militar. Os capítulos já estavam divididos, a história toda em minha mente: espaço, tudo… mas tive preguiça de ficar voltando para escrever, daí apaguei muita coisa e transformei numa pequena ficção de uma página (com o mesmo título). Isso porque me dou muito mais bem com jogo rápido, todavia não simples (apesar da brevidade). Fazendo uma analogia com tamanhos: prefiro o retábulo à igreja. Já sobre os livros em si, nunca tenho pressa, pois pretendo investir na qualidade. Não gosto de me forçar a nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Algumas vezes contáveis, já outras… impossível saber. Assim que comecei a escrever, mostrava minhas coisas para pessoas bem específicas, até postava no Facebook em alguns momentos (era mais nova, tinha 16-17 anos), porém atualmente penso ser chato, prefiro que vejam depois de publicado. Acredito que essa necessidade que muitos têm de mostrar é mais para se achar ali dentro da escrita (estilo), para receber elogios (quem disser que não gosta estará mentindo), ter parâmetros, saber se está fazendo uma coisa bacana mesmo, se dá para seguir escrevendo literatura publicamente, enfim, não sei com precisão. Pode ser uma, todas ou nenhuma dessas inferências.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uma amiga, Gabriela, disse-me que escreve sempre à mão para depois passar para o computador. Faz tempo isso, nem sei se ela ainda o faz, mas quando ouvi disse: “nossa, que trabalho, hein?”. Dou esse exemplo porque como sei que vou precisar passar para o arquivo depois, a fim de me organizar e também de não perder o que foi escrito, pego uma caneta só em último caso. Gosto de poupar tempo e odeio copiar uma coisa de um canto para outro. Mais fácil abrir uma nota no celular e depois só colar no arquivo do Word (por lá mesmo), enfim, prefiro a praticidade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias são chuvas ocorridas do nada, sem nuvens prévias para previsão. Explicar isso é confuso porque pode vir quando olho para o chão na fila da padaria; ou enquanto vejo alguém que não conheço e continuo sem querer conhecer para poder imaginar uma história; ou quando me contam ou reflito sobre algo; ou quando vejo, em silêncio, qualquer imagem. Não sei, é uma espécie de incidente que muda meu momento, que nunca sei quando vai ocorrer, porém estou sujeita a ele. É como uma morte acidental.
O único hábito que gosto de cultivar – e sei que isso ajuda na criatividade – é o de olhar o mundo, as coisas, as pessoas que, por algum motivo, se destacaram na circunstância do momento. Mas não faço disso uma obrigação voltada à escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou porque meu olhar sobre e sob o mundo modificou e muito desde a primeira vez que me lembro escrevendo um poema. Nem sei qual foi o primeiro, pois se perdeu, ou melhor, fiz questão de deixá-lo perdido. No início tinha muito costume de querer fazer soneto, versos contados, toda essa exigência arcaica, mas depois fui deixando de leseira e me importando mais com o que estava dizendo, pois, ao tentar enquadrar numa forma dada, o conteúdo não ficava bom, não a meu ver. Então, se pudesse voltar àquela época, não diria nada porque me conformo com o fato de já ter passado. Apesar de tudo, vejo que foi necessário vivenciar tal fase de adequação e encontro. Hoje em dia só faço versos contados se me pagarem (e seria um produto barato, digo logo).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Todos os meus projetos já foram iniciados ou finalizados. Tenho, porém, um projeto utopia: ler todos os livros do mundo, pois um livro só passa a existir depois de lido. Sou leitora assídua, vale ressaltar, mas penso que só se conseguisse isso teria algum parâmetro literário. E digo tal coisa porque não entendo completamente quem tem um livro preferido quando não visitou (e nem vai) todos os outros. É impossível para mim ter algo preferido, pois cada livro, música, série, filme etc. me toca de maneira distinta, além de depender da minha lua.