Jennifer Trajano é escritora, professora de Língua Portuguesa, mestranda em Letras-Literatura pelo PPGL- UFPB.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Organizo-me com base nas demandas do mestrado e da minha ocupação profissional. Não vejo a escrita como uma forma de trabalho/profissão. Não quero, aliás, prefiro a liberdade, apesar de admirar quem é aplicado nesse sentido. Atualmente, sou mestranda em Letras (literatura) pelo PPGL da Universidade Federal da Paraíba, com dissertação envolvendo minicontos e curtas-metragens ficcionais; e também trabalho de apoio técnico para a comissão do SOMA – Pacto pela aprendizagem na Paraíba, uma colaboração entre Estado e Municípios que objetiva alfabetizar todos os estudantes na idade certa. Diante das obrigações, faço o possível para ficar livre até a quinta-feira e depois dedicar o tempo à minha dissertação, dando-me folga aos domingos. A literatura é muito presente nesses dois campos, vale frisar, mas nem sempre estou inspirada para escrever.
Não gosto dessa ideia de ter vários projetos ao mesmo tempo, prefiro começar outro quando concluo o anterior, a não ser que sejam em áreas/gêneros diferentes: aqui um livro de poesia, ali outro em prosa e ao lado um acadêmico dialogam tranquilamente. Não acho bacana, no entanto, ter dois projetos poéticos de forma concomitante (por exemplo), pois talvez me sentisse desorganizada.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Se for literário, planejo antes somente o título, mas isso já depois de ter pelo menos um ou dois textos. O resto flui no decorrer dos anos (demoro para publicar). Vejo gente dizer que o mais difícil é o título, mas para mim é o mais fácil. Complicado mesmo é inserir o ponto final.
Quando penso em um projeto novo, as primeiras palavras já entraram sem licença, porém falo isso com relação a poemas, contos, microficções e crônicas porque, se fosse escrever um romance, pensaria em um resumo da história, no título e já dividiria os capítulos para ir construindo depois. O problema é me faltar tanto tempo quanto paciência para adentrar nesse gênero, pois preciso começar e focar somente nisso, se não acabo perdendo a instiga e transformando em texto curto, como já aconteceu. Mas quem sabe um dia? Possuo algumas ideias…
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não, não me forço a escrever e criar uma rotina seria isso, não tenho tal hábito. Não sei escrever todos os dias, é bem de lua. Como já trabalhei bastante meu foco, escreveria sem problemas no meio de uma multidão barulhenta ou com um som alto ligado, como já fiz. Agora claro que a calmaria do ambiente é mais convidativa e prefiro o silêncio estando sozinha, pois ele ajuda a compor os outros silêncios que pede a voz literária.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Não procrastino quando tenho coisas para cumprir, portanto vir a fazer nada é para relaxar mesmo, sem culpas; e nesse momento aproveito da melhor maneira a teoria da relatividade, deixando o tempo me guiar. É muito bom escolher preenchê-lo ou não com alguma coisa: livro, série/filme, jogo, dança, viagem, canto, conversa fora etc.
Sobre o travamento, como já disse não ter o hábito de escrever literatura, acredito que o poema e a prosa uma hora chegam, tudo nessa vida é assim. Vou, sem pressa, ao encontro dos textos até que a morte nos separe.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Todos dão trabalho, afinal, qual a construção que não exige do arquiteto-engenheiro-operário? Mas (acho que) o mais trabalhoso foi um poema ainda inédito que fiz a pedido de um amigo, é um jogo de perspectivas entre dois animais distintos e criei duas versões, ficando com a primeira. Sobre orgulho, não sei, talvez seja orgulhosa para escolher um (risos). Ressalto, todavia, que alguns não gosto e por isso não os publicaria novamente.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Os temas variam bastante, não há algo específico, acredito não ter essa autonomia porque são eles quem me escolhem diante das circunstâncias. No meu próximo livro de poemas que deve sair daqui a uns anos, “diga aos brancos que não vou”, há muita coisa sobre consciência de classe, então o projeto vai nessa lógica, mas não só; já o “Latíbulos” (lançado em 2019 pela Escaleras) dividi por temáticas concordando com a ideia dos versos; e o “orlas de fogo nos farelos da ampulheta” (contos e microficções), que possivelmente sairá esse ano pela Penalux, é mais aberto, só depois reparei que o título possui alguns pontos em comum entre os textos, indo nessa lógica do que começa, acaba e vice-versa (mas não sou a melhor pessoa para falar sobre isso).
Se for o conceito de “leitor ideal” de Gerald Prince, não mantenho. É impossível, aliás, pois o sentido de uma estética literária não se esgota, varia de acordo com o contexto, a não ser que a mímesis seja ruim e não possibilite interpretações distintas, não nos fazendo pensar sobre ela. Gosto de textos que me tiram do conforto interpretativo. Não consigo supor alguém ideal quando ninguém é ideal diante da ficção, nem sequer quem escreve. Ao participar do Projeto Leia Mulheres João Pessoa com meus “Latíbulos”, fiquei encantada ouvindo algumas atribuições de sentidos não pensados por mim no ato de escrever, mas quando disseram havia fundamento na estrutura, ou seja, o texto proporcionava, mesmo que eu não tivesse me dado conta. Isso é incrível! Ora, não interessa o que eu quero dizer porque a voz da minha escrita transcende a minha e cabe aos outros analisar o (não) dito.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Assim que acabo de escrever já me sinto confortável, mesmo que provavelmente mude depois. Se concluí é porque pelo menos naquele momento sei que o parto acabou. Mas hoje em dia só quem ouve é o meu terapeuta e muito raramente alguém que eu mencione sobre e me peça. Como modifico, faz mais sentido mostrar após publicado em revistas ou livros. Já mudei textos que ficaram completamente diferentes da ideia inicial, então não acho que seja bacana mostrar logo o recém-nascido, mesmo que me sinta à vontade, pois é mais racional deixá-lo menos verde. O tempo conduz.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Lembro de estar na graduação em letras e ser insegura com o que escrevia aos 16/17 anos. Não sabia se estava bom e o universo poético era novo para mim que não tinha a bagagem literária de hoje. Muitos poemas “perdi” de propósito, então não sei por onde comecei a escrever poesia, mas o meu primeiro conto (“Boatos, apenas boatos”) foi usado em um minicurso que objetivava ensinar a estudantes de letras vernáculas um modelo de aula de literatura, levando em conta as Habilidades Sociais Educativas. Os participantes não sabiam que o conto era meu – o nome de outra escritora foi utilizado –, então falaram abertamente sobre. E antes, no processo de escolha do texto, os meus amigos do “Programa de Antropologia Literária e Habilidades Sociais Educativas” (PALHSE, 2014) – organizador do minicurso – também desconheciam a autoria e o escolheram por meio de votação. Assim, pude ter uma ideia boa de como a minha primeira prosa foi recepcionada. Os estudantes de letras normalmente não perdoam quando não se agradam, então fiquei feliz na época por não haver reclamações, só elogios. Também me diverti muito com as indagações feitas ao final indeterminado: “Jennifer, ela morre ou não?”; “Pra mim ela morre, é isso mesmo?”; “Mas se morre, a história é meio Brás Cubas?”. Não pretendo responder, não cabe a mim.
Não sei o que gostaria de ter ouvido, pois tudo o que me falaram foi suficiente para chegar até aqui. Citando um conto de Raduan que gosto bastante: “acho que as coisas se passam como não deveriam deixar de passar”.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não sei se possuo um estilo “próprio” (no sentido de ser única), pois há tanta gente escrevendo, não conheço tudo e seria pedantismo afirmar algo, mas demorei para me “achar” de um determinado jeito na composição estética. Talvez mais para frente possa mudar, é uma possibilidade. Ressalto que o importante mesmo para mim é buscar causar impacto de alguma forma, independente de um estilo fechado. Vejo poemas “simples” que me deixam boquiaberta e outros dificílimos causando sensação parecida, é relativo, depende de como as figuras de linguagem estejam dispostas.
Parece ser mais fácil escrever quando dificulto. O que possuo de didática dando aula é o oposto na hora de escrever ficção. Não sei explicar ao certo, é como se os labirintos me convidassem, portanto acabo tentando convidar também quem irá ler. Gosto muito de ver as pessoas se perderem e se acharem diante da literatura, quando percebem serem capazes de atribuir sentidos àquilo que não está claro. Nessa perspectiva, adoro motivar e puxar as interpretações em sala de aula, observando esses pormenores. E digo tal coisa porque, ao ler algo difícil e me “achar” depois, percebo não ser a mesma, é uma mudança interessante. Uma vez, na época em que ainda estava na graduação, martelei por horas os versos de Herberto Helder:
Tu és o nó de sangue que me sufoca. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. És uma faca cravada na minha vida secreta. E como estrelas duplas consanguíneas, luzimos de um para o outro nas trevas.
Nossa, isso é brutal de lindo e conseguir interpretar foi de uma sensação fantástica. Algo dado, muito óbvio, não causaria o que esses versos proporcionam de genialidade estética. Às vezes, leio literatura e tenho vontade de chorar só por ser genial e não pela história, Borges que o diga. Talvez por isso evite uma linguagem mais dada. Texto estético é para ser pensado. Se fosse para ler apenas, sem expandir o meu nível cognitivo, estaria embarcando e saindo muito rápido de um best seller qualquer. Parar para analisar um verso, levando em conta a sua própria capacidade, é um ato revolucionário nesse mundo onde vivemos, em que é mais fácil “pensar” por meio de repetições. Agora, claro, é um processo, pois quem não tem hábito de leitura precisa começar dos mais fáceis e depois subir o nível, como em um videogame.
Alguns autores me tocam profundamente, de forma repetitiva, a exemplo do citado, de Nydia Bonetti, Adriane García, Conceição Evaristo, Maria Valéria Rezende, Hilda Hilst, Wislawa Szymborska, Manoel de Barros, Sérgio de Castro Pinto, Machado de Assis, Gabriel García Márquez, Augusto Roa Bastos, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Luis Borges, Raduan Nassar, enfim… Mas não sei dizer com precisão quem me influencia mais, talvez tudo ao mesmo tempo. Até os que não gosto interferem de alguma maneira.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
A Bíblia (Novo Testamento), dada a situação obscura que estamos passando no Brasil. Talvez lendo diretamente as histórias e abandonando o ofício de papagaio-propagador de discursos prontos e versículos soltos, algumas pessoas compreendam o que há tantos anos Jesus tentou dizer. Mesmo que não se acredite no Deus cristão, é inegável: seguir os pés de Cristo tornaria o mundo mais fraterno e a fraternidade é um ato esperançoso e necessário.