Jefferson Dias é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As manhãs que não coincidam com o despertar voluntário são uma invenção burocrática, quer dizer, são a guilhotina ao contrário – e inopinadamente há o corte. Ou ainda, a guilhotina do nojo (na dúplice acepção): a alvorada é a repugnância, a náusea, vômito branco para dentro, mas também o direito de me ausentar – às funções etc., e não me refiro necessariamente à presença física, porque o corpo morto é como fosse o meu. De modo que o escritor amador, não raro, forçosamente se confina ao alarme muito cronológico e se levanta aos trambolhões. O escritor funcionário público que faz o café – não só o único e aromático ritual, mas uma inevitabilidade – e funda uma rotina (sempre pequeno-burguesa): é a minha condição, de modo que, um tanto covarde, um tanto alheio, preferiria não ter deixado o leito. Misantropia, misantropia. O silêncio, ademais de prevenir a defenestração de um comensal, garantiria dignidade à morte. Porém – o grande porém – estou de pé às 06h30 e, um tanto covarde, um tanto alheio, não escrevo sequer uma linha.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As manhãs deveriam ser compulsoriamente destinadas à contemplação letárgica. Após a sesta do fauno, entretanto, tudo quer parecer menos impossível. E à noite o que há para baixar, baixa melhor, sobretudo quando se trata do texto literário. Mas a despeito do mistério fisiológico, do vampirismo, não há afetação maior, menos ainda se houver qualquer sorte de delimitação do tempo. Nem tampouco há ritualismos preparatórios. O ritual é a própria escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando há o alumbramento. Posso, contudo, sentar-me ante a branquidão e forçar um processo – ainda que pela manhã –, a frio. Mesmo porque há nisso, também, uma questão de estilo ou de necessidade ou tanto faz: de saída, quero ajustar o visionário e o calculista. Mas aqui creio ser preciso distinguir a escritura poética: neste caso, o que está em jogo, necessariamente, é a espontaneidade. Poesia é acontecimento aparentado à revelação – poesia é, mesmo, revelação –; assim, já que não se trata de apenas querer escrever, muito menos de só quebrar um texto em versos, não há como falar em meta. Se, entrementes, falo em alumbramento, não tenciono simplificar as coisas, nem tampouco mistificá-las: tudo é estopim, nada é estopim, porque a maravilha diz também respeito a quem a descortina.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se se trata de poesia, há um grau de fermentação, uma atenção exordial, que acaba culminando na escrita, e também um tempo ótimo para que ela seja cometida e o entusiasmo não estiole. Mormente o processo é despoletado pelo descobrimento da imagem: mesmo pela vibração de uma singular palavra, ou de uma frase bem solta – que acabam por atingir o estado de abracadabra. Considero a imagem poética nos termos postos por Pierre Reverdy: trata-se da aproximação de realidades díspares, pela qual quanto mais distantes entre si, tanto mais pujante a imagem poética que dela resulta. É conciliar o inconciliável. Segundo Octavio Paz, toda imagem aproxima realidades opostas e, creio, o desvelamento da imagem tem que ver diretamente com a visão do poeta (com a sua antevisão, com a sua clarividência); se o poeta está possesso, alumbrado, tudo ocorre – naturalmente. Se não está, há, ao menos, qualquer sorte de memória de procedimentos e o pragmatismo determina as demandas. A pesquisa, essencial, dá-se pari passu com a criação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando não me prostro e amaldiçoo, realizo a partir da crise – nisso está o congraçamento do profissional e do diletante. Boa parte do que escrevi em 2017 advém desse quadro. O entrave se revela tema profícuo; e o medo, furor fortuito. Além do mais, a poesia é vivência, espécie de crivo, mesmo não havendo o enlevo permanente; o que justifica tratar de uma prática em termos de memória de procedimentos e afirmar que posso me sentar para escrever a qualquer tempo. Para mim não há outra saída: a poesia, no que há nela de mais contestador dessa linguagem arrasada pelo cotidiano, é sempre o fundamento da minha escrita, mesmo quando escrevo a prosa mais protocolar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando escrevo, minha maneira tende a ser morosa, porque a revisão se dá já aí; posso escrever de um jato, mas na maioria das vezes experimento muito, permuto palavras, dobro a frase, o verso, testo a ductilidade do texto até ao limite, e isto durante sua tessitura mesma; quando o dou por findo, leio, ainda troco, acresço ou corto isso ou aquilo, burilo uma imagem se não refulge suficientemente; aí espero arrefecer. Mostro sempre a amigos, em quem confio e aos quais sou tão grato; são o termômetro. Não há o esgotamento do texto, de maneira que é necessário esquecê-lo um momento. A revisão é algo sempiterno por excelência – Herberto Helder chama o “poema contínuo”. Porque de permanente só há a transfiguração.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre ao computador. Tiro o maior proveito; creio que muito do meu procedimento se viabiliza pelo editor de textos: apago, troco, corto, colo com a maior facilidade. Quando não, opero isso no silêncio, comigo mesmo, naquele momento em que o texto está fermentando, ainda dentro. No meu caso, não há os primeiros rascunhos – não os há absolutamente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Há a vivência inveterada da arte de modo geral. A música é onipresente – permeia o meu sono, inclusive. O cinema é um borbotão – há tanta inteligência no cinema. No que difere, o cinema, da poesia? No suporte mais imediato? Costumo dizer que Ingmar Bergman é um dos meus poetas favoritos. Bem como as artes plásticas; se um Francis Bacon, um Egon Schiele não são poetas, não sei quem seja; ou um Tunga, um Nuno Ramos – que ademais é propriamente escritor. O que está em jogo é a imagem sempre. Sem contar que a leitura é o fundamento: sem ela, não existe escrita; com ela, a escrita passa a integrar um sistema infindável que se retroalimenta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O rigor. Mas sobretudo a maturada preocupação com a recepção – o texto é para o leitor, a despeito de quaisquer solipsismos. A literatura se prolonga para fora, é claro, ainda que mane do autor; mas quero crer, agora, que seria uma puerilidade galopante apostar na obra que se universalize por si. Nesse sentido é preciso laborar e elaborar. E se percebo tal coisa hoje, jamais a diria, por exemplo, a mim mesmo lá durante o primórdio. Aliás, não diria nada. Sou muito crente no processo, na organicidade dele – assim a famigerada meta se revela despicienda.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Talvez a elaboração do bildungsroman da classe média brasileira. De todo modo o projeto – qualquer projeto – é a maior das vaidades, porque a morte é esse mar em que estamos metidos até ao pescoço. Amanhã estou morto, ponto final. Ainda assim, não há nada sem a vaidade. Lembremos do Camus, “só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”, quer dizer, o resto é o resto, é vaidade – se julgo que ainda vale a pena viver, a vaidade é conditio sine qua non. Então passo mais um café e quero ler todos os livros – que, se os não li, é como se não existissem, todos –, e quero escrever todos os livros. Não o lograrei. Tanto faz.