Jeferson Mariano Silva é doutor em ciência política pelo IESP-UERJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tarde. Normalmente, o dia começa tarde, por volta de 11h. Quando há algum compromisso matutino – e eles são, sempre, presunçosamente inadiáveis –, a rotina se limita a brigas com o tempo para honrar o tal compromisso. Caso contrário, aproveito a manhã para evitá-la ao máximo. Em qualquer caso, a primeira coisa que faço, angustiadamente nos últimos anos, é me certificar, via redes sociais, de que nossas instituições ainda não nos destruíram completamente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A melhor hora para fazer qualquer coisa, inclusive trabalhar, é a madrugada, sem a menor sombra de dúvida. A tranqüilidade, o clima e a solidão das madrugadas favorecem, imensamente, a pesquisa e, especialmente, a escrita. Fora isso, preciso apenas do meu material de trabalho, que se limita a meu computador, músicas e livros, nesta ordem. Essa é toda a preparação necessária.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Pesquiso com metas. Por exemplo, estabeleço alguns objetivos de curto prazo, como ler e classificar tais ou quais informações sobre determinada quantidade de decisões judiciais por dia. Mas escrevo sem rigorosamente nenhuma meta. Tenho, é claro, prazos que me obrigam a priorizar ou a concluir um texto abruptamente, mas metas de escrita impostas por mim mesmo não tenho. Escrevo quando a pesquisa o exige. E, acredite, ela exige. Afora isso, tenho o juízo, meio difuso, de que não seria mau tentar escrever dois artigos por ano, algo assim. Não chega a ser uma meta.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para mim, escrever significa realizar duas atividades muito diferentes e, no entanto, consubstanciais. Uma delas é a pesquisa aplicada: reunir, organizar e interpretar, diariamente, pequenas quantidades de informação e ir integrando-as, pouco a pouco, em conjuntos um pouco maiores, mais abrangentes, até fazer com que transbordem minha memória, meus esquemas, minhas anotações, minhas fichas, meus bancos de dados, minhas bibliotecas, enfim, todas as clausuras que tento impor ao mundo. Quando a pesquisa já não cabe mais nos registros que, sozinho, sou capaz de organizar, aí começa uma outra atividade mais propriamente de escrita, de redigir um texto que dê sentido a toda essa rebeldia do mundo e busque impor a ele novas clausuras, agora, coletivamente compartilhadas. Nesses momentos, a pesquisa quase que se escreve. Eu cuido apenas da forma, do estilo e do tom do texto, porque a pesquisa, em regra, não é muito polida. Dessa perspectiva, redigir um texto é negociar os termos de sua rendição, como autor, com seu próprio material de pesquisa. Nesse sentido, começar a escrever é difícil, porque exige muito trabalho prévio.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para cada mal, uma reza brava. Contra a procrastinação, rotina de pesquisa. E sem devaneios. Rotina é mesmo um troço meio arrastado. A ideia, por sinal, é essa. Se um pesquisador de direito e política, por exemplo, se acostumar tanto com seu material de pesquisa ao ponto de se sentir entediado por ele e, por isso, sentir a necessidade de animar um pouco sua aborrecida vida prestando atenção em outra coisa, bom, então, talvez, nesse caso, algum conhecimento esteja realmente sendo produzido nessa área. A dificuldade está toda em produzir esse nível de conforto rotineiro com a pesquisa.
Medo de não corresponder a expectativas? Bom, desde que o medo e as expectativas sejam minhas, está tudo certo. Está certo se as expectativas forem atendidas, porque é sinal de que elas devem ser elevadas e está certo se elas não forem atendidas, porque é sinal de que o medo deve ceder a alguma ousadia. O problema começa com a heteronomia, seja do medo, seja das expectativas. E, contra isso, solidão e madrugada são as coisas que me fazem melhor.
Sobre a ansiedade com os tempos da pesquisa, confesso que me sinto menos à vontade com projetos curtos. Claro, projetos longos produzem situações bizarras, como dias sem noite, semanas sem fim, anos sem férias e coisas do gênero, mas não me deixam ansioso. Me chateiam mais e me deixam mais ansioso prazos curtos e, de modo mais geral, a imaginação de que um texto é alguma coisa que se pode terminar sem preparação. Seja como for, a forma de organização do tempo de trabalho talvez seja o elemento que mais distancia a atividade de pesquisa de outras atividades profissionais. Causa sinceros estranhamentos e alguma frustração as sensações de estar à deriva no tempo, de não se encaixar muito bem nas violências mesquinhas que o mercado impõe ao tempo da maior parte das pessoas, de não ter alternativa senão a de se submeter ao calendário de incompreensíveis imposições por meio das quais diferentes estruturas burocráticas sempre encontram novas maneiras de nos impedir de trabalhar, etc. Nesses casos, só a indignação, organizada ou não, salva.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho a mania de pensar na próxima coisa que vou escrever enquanto passo os olhos na parte que já escrevi. Assim, acabo revisando muitas vezes os primeiros parágrafos que escrevo e poucas, os últimos. Depois, faço, claro, uma revisão final. Mas aí já sinto certo distanciamento com o texto. Já não o sinto mais como algo propriamente meu. E, como que para me livrar desse incômodo de estar na posse de algo que não me pertence, mando-o logo para algum lugar público.
Antes de terminar de escrever um texto, julgo que ele não deve ser lido por ninguém, porque, afinal, ele não está pronto. Depois de terminado, julgo que ele deve ser lido por todos, com os defeitos e as qualidades que ele possa ter, porque, afinal, ele já está pronto. Conclusão: quase nunca mostro meus trabalhos para as pessoas antes de enviá-los para publicação. Por regra, isso só acontece quando tenho alguma dúvida sobre uma palavra, uma frase ou um trecho muito específico.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Evito escrever à mão, especialmente coisas sérias. Não sou um aficionado por inovações tecnológicas, mas gosto de computador e, acima de tudo, gosto da cultura política que se vem formando em torno da livre produção e circulação do conhecimento. Estou falando de coisas como o Ubuntu, o LibreOffice, o R, o Dataverse, o SciELO, o Library Genesis, o Sci-hub e projetos de publicação de livros para download gratuito. Não sei se faz sentido, para as pessoas que fazem parte dessas coisas, serem colocadas todas juntas, mas faz muito sentido para mim e dá sentido ao que eu faço.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Cultivar a criatividade significa, para mim, alternar leituras e conversas sobre problemas que eu estudo com leituras e conversas sobre problemas que, em princípio, não têm nem a mais longínqua relação com o que eu estudo. Espaços acadêmicos de outras áreas da ciência e, especialmente, espaços intelectuais não acadêmicos, como a militância política, arejam as idéias e nos desafiam a conectar nossos problemas de pesquisa com outros problemas, mais reais ou, ao menos, mais dramáticos. Conversar com a Mariana; me reunir com os companheiros do Coletivo Arrua; tentar ler alguma literatura; frequentar o butiquim da esquina; e evitar ler jornais são as melhores maneiras de garantir idéias novas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não faz muito tempo que terminei a tese. Ao menos duas coisas mudaram enquanto a escrevia. Uma mudou relativamente cedo, então eu não precisaria gastar essa oportunidade imaginária com ela. Tem a ver com cultivar certa desconfiança com os livros, especialmente com os que gosto mais. Alguns bons livros capturaram meu pensamento no início da tese e eu tinha alguma dificuldade para escrever qualquer coisa que não fosse uma tosca repetição deles. Daí vi a importância de ler livros e artigos que gosto menos e de deixar os melhores descansando na estante por um tempo.
A segunda mudou relativamente tarde e, talvez, fosse o caso de abreviá-la, se eu pudesse. Demorei um pouco para me dar conta de que escrever uma tese tem menos a ver com pôr palavras em um papel do que com ter um material de pesquisa sobre o qual você possa escrever. A última coisa é muito mais difícil do que a primeira, então a ordem de prioridades deve seguir esse raciocínio. Por ter demorado a perceber isso, tive que adiar alguns planos e isso me causou problemas com os quais ainda tenho que lidar, mas, ao fim e ao cabo, acabei me dando conta. Acho que tentaria atalhar um pouco esse caminho, mas acho, também, que, em outra época, eu daria de ombros para esse conselho. Eu insistiria em me colocar diariamente diante do computador até escrever, hoje, meia dúzia de palavras que não necessariamente teriam conexão com as que escrevi ontem, com a esperança de que, no final, esse processo me levaria a algum lugar chamado tese. Não levaria. Não levou. Por isso, mudei.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou envolvido em um projeto de produção de dados sobre experiências de jurisdição constitucional na América Latina. Gosto muito desse projeto e é mais ou menos inevitável que eu acabe escrevendo sobre esses dados. Mas eu gostaria de ter a capacidade e a oportunidade de escrever folgadamente sobre isso, de tratar essas informações de maneira extensa, de procurar seus complementos em fontes diversas das que eu analiso, de conectá-las com diferentes discussões políticas, jurídicas e históricas, enfim, de transformar esse projeto de produção de dados em um projeto de interpretação política. Essa parte, mais difícil, eu ainda não comecei.
Me vêm à cabeça alguns livros que ainda não existem e que poderiam ser interessantes. Citaria dois. Um seria uma espécie de história do temor às secessões e aos golpes de Estado, alguma narrativa que mostrasse, por um lado, os enraizamentos de alguns dos principais aparelhos estatais em um estilizado e continuamente excitado pavor à “quebra institucional” e, por outro, a leniência ou a cooperação desses mesmos aparelhos com os processos de “quebra institucional” que se comprometam a conservá-los intactos. Outro seria, mais simplesmente, um antimanual de direito. Uma crítica sistemática a esse curioso artefato. Talvez já exista algo assim e eu não saiba…