Janete Manacá é atriz, poetisa e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu inicio o meu dia regando e dialogando com as flores do meu microjardim. Em seguida preparo a alimentação da Lilith e da Poesia, minhas cachorras, só então eu preparo um suco verde e um chá, de várias ervas, para tomar durante o dia. Se for necessário eu enfrento uma rigorosa faxina. Tudo isso, com muito prazer. Aos meus olhos são diferentes formas de poetizar o cotidiano.
À tarde, quando não tenho compromisso, o que é muito difícil, eu aproveito para ler ou digitar poesias que geralmente são escritas à mão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu ser é habitado por uma multidão de letras inquietas e é no silêncio da noite que elas se rebelam, com a minha permissão, claro. A noite é mágica, é quando a minha inspiração cria asas e alça voos, exuberantes. Sou completamente noturna e se pudesse trocaria o dia pela noite.
Fui criada ouvindo histórias, contadas por meus pais no quintal da minha casa. Nas noites de lua cheia tudo ficava muito mais especial. Essas histórias contadas na infância alimentaram o meu imaginário. Com isso, as noites têm cheiro e sabor de memórias felizes onde tudo flui. A musicalidade da chuva no telhado também é uma fonte inesgotável de criação. Quando isso acontece, deixo a porta entreaberta e a criatividade fica muito mais pulsante.
Não tenho nenhum ritual, muitas vezes porque não dá tempo. A inspiração chega sem pedir licença, toma conta da razão e deixa tudo muito mais sublime. Mas geralmente eu gosto de acender incenso de ervas e colocar uma música instrumental de fundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não, eu não tenho nenhuma meta de escrita diária. Meu processo acontece por meio de inspiração. E tudo que cerca o meu cotidiano é objeto de investigação para a composição de poesias.
Costumo escrever à noite, porque tudo fica mais apropriado à produção. Geralmente o corpo está cansado e a mente, despida de rigor, floresce. Mas, para além da fertilidade das noites, há momentos insólitos na minha relação com as poesias. Às vezes, elas se mostram tão ruidosas dentro de mim que eu acabo cedendo aos seus caprichos.
Em todos os cômodos da minha casa, na bolsa e no carro há sempre uma caderneta com uma caneta de plantão para receber as poesias. Quando a inspiração chega, é só estender a mão. Quantas vezes eu acordei repentinamente de madrugada, parei o carro na rua e, ao chegar em casa, eu escrevi na garagem porque elas tinham urgência e, num segundo de vacilo, fugiriam como um raio rasgando o céu. Por sorte são todas filhas de partos normais. Escrevo praticamente todos os dias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é de pura inspiração. Não faço pesquisa e nem defino sobre o que vou escrever. São elas, as poesias, que batem à porta da minha intuição e pedem para entrar. Eu já estou tão acostumada que nem fecho mais a porta, deixo-a entreaberta. Com o tempo a gente aprende a confiar, estreitar os laços e aí a intimidade é recíproca. Já não sei viver sem elas. Além de fiéis aliadas, inspiram os meus dias, curam as minhas feridas e tecem esperança nos meus caminhos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com a poesia eu não sinto esse problema porque num processo intuitivo tudo flui. Já em alguns projetos acadêmicos eu sentia um pouco de dificuldade para definir o que de fato eu pretendia, mas tão logo fosse resolvido tudo seguia com tranquilidade. Nunca me envolvi com projetos longos, geralmente eram algo mais a curto prazo, como resenhas, artigos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso sim, várias vezes e por fim eu entrego para um profissional realizar a última revisão, quando, então, segue para publicação. Sempre mostro para os amigos e integrantes da família, eles são muito críticos e nunca passam a mão na minha cabeça. Acho muito importante poder ouvir a opinião do outro.
Após o nascimento das poesias, eu as coloco de repouso por um bom tempo até serem selecionadas para uma publicação. E é nesse momento que começam as revisões. Expor o que escrevemos não é tarefa fácil, exige muita ousadia. Mas ousar também é necessário, caso contrário, ficamos estagnados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é razoável. Mas como eu já disse, por ser um processo de inspiração e intuição, geralmente eu escrevo à mão, é mais fácil. Quando a inspiração chega, ela não espera, por isso, a importância de deixar blocos com canetas em lugares estratégicos dentro de casa. Já estou acostumada e isso facilita muito. Depois é só transcrever no computador, sem problema algum.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De tudo que cerca o meu cotidiano. Um sentimento de dor, um gesto de gentileza, a sensibilidade de uma benzedeira, as injustiças sociais, uma recordação da infância, a chegada de um novo integrante na família, o nascimento de uma flor, a miséria, o rompimento de um relacionamento, a sabedoria ancestral, filmes, livros, conversas em pontos de ônibus… Mas há momentos, também, em que eu escrevo sobre algo que eu nunca presenciei e, muito menos, vivenciei, pelo menos nesta vida, coisas que vão além da compreensão racional. Porém, por serem corriqueiros, passam a ser tratados com naturalidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muda a visão dos fatos, com a maturidade, o olhar fica mais requintado, mesmo diante do que é simples e trivial. Eu diria para não ficar constrangida com algumas situações ingênuas ou inocentes porque a cada momento da vida nós só oferecemos o que temos. Mas com o passar do tempo, no entardecer da existência, tudo parece ficar mais claro e é por meio do exercício da lapidação que conseguimos sair do estado bruto para o estado de luz. E esse percurso é um processo natural da vida. O filósofo Heráclito de Efeso dizia: Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tampouco o homem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em 2018 foram lançados 3 livros de poesias: Deusas Aladas, A Última Valsa e Quando a Vida Renasce do Caos, produção independente. Para 2019 já tenho mais dois livros em andamento. Mas os projetos não param por aqui, há muito ainda para se fazer.
Eu tenho a intenção de escrever um livro de poesias para crianças. Vai demorar um pouco, porque a criança, além de exigente, é muito crítica e eu preciso de tempo para elaborar. Outro projeto é um livro de contos que timidamente eu já iniciei. Por fim, eu pretendo voltar para o teatro com texto autoral inspirado na mitologia africana, sobre Oxum, a Deusa da beleza, amor, fertilidade e águas doces, entre outros.
Um livro que eu gostaria de ler que ainda não existe… Um livro sobre o poder curativo das ervas medicinais sob a perspectiva xamânica (de repente já existe), mas não conheço.