Janaína Perotto é música e escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com um café forte e boa alimentação. Gosto desse ritual – com seus aromas, texturas, gestos e sons característicos –, que sinto como uma forma de autocuidado antes de encarar o dia. Depois da noite de sono, é nesse momento que me reconecto com a concretude, tento perceber meu estado de espírito e percorro mentalmente a lista de coisas a fazer. Mesmo antes da pandemia, com maior rigidez de horários em função do trabalho presencial, esse espaço de tempo já era importante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor a partir do meio da tarde, quando a temperatura já está mais amena e o turbilhão do dia começa a acalmar. Não tenho um horário fixo para a escrita, mas é quase sempre nesse momento do dia que consigo me isolar e me entregar a esse trabalho.
Não sei se é um ritual de preparação, mas, por ser uma escritora iniciante, sinto que ainda preciso virar uma chave, ou acionar um mecanismo diferente, para que as palavras possam chegar. Tem a ver com o silêncio literal, mas também com o silêncio interno. Ainda preciso de um tempo para afastar as vozes da insegurança – que dizem que a minha profissão é outra, que a minha escrita é isso ou aquilo – e deixar fluir as vozes mais luminosas, mais livres e gentis.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever um pouco todos os dias, mas nem sempre é possível. Quando isso acontece (às vezes por alguns dias seguidos) sinto a energia acumulada, como o corpo quando não se exercita, ou não se move no sentido do desejo. Acho que minha meta atual é conseguir ter esse contato diário, ainda que breve, para evitar a sensação de transbordamento, de ansiedade por transcrever o mundo das ideias, das experiências que nos marcam e nos estimulam.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é múltiplo. Trabalho a partir de compilações de notas escritas e notas mentais, mas também gosto de deixar fluir de forma espontânea, como uma experiência catártica. No primeiro caso, o ponto de partida já é algo mais controlado e consciente, o que não significa que a intuição e a experimentação não participem também. No segundo, me permito extravasar para só depois analisar e, se preciso, dar outra forma.
Recentemente saí de um longo período de escrita acadêmica, onde eu sentia uma dependência muito forte dos fichamentos, de certezas absolutas e a necessidade constante de malabarismos para escrever dentro das convenções e das expectativas dessa comunidade. Pode parecer estranho imaginar que essa rigidez se aplique a uma área de conhecimento como a música (minha área de atuação principal)… mas acontece.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinto mais dificuldade em lidar com a ansiedade para conseguir dedicar mais tempo à escrita. Em relação aos bloqueios criativos, que vejo como naturais, procuro não forçar ou me cobrar por não me sentir instigada a compor um texto. Quando isso acontece, recorro a experimentações, sem muita expectativa de que se tornem algo mais consistente naquele momento específico.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos dezenas de vezes antes de me arriscar a dizer que estão prontos ou de mostrar para outras pessoas. Na verdade, sinto que a palavra ‘pronto’ nunca corresponde aos meus textos… Quando releio alguns deles, depois de semanas ou meses, sempre encontro soluções diferentes, revejo certas escolhas e acabo fazendo mais alterações. Talvez seja um hábito a evitar, e permitir que os textos sejam livres e aceitar o que eles puderam ser naquele momento, sem julgamento excessivo. É claro que cada texto novo vem de um lugar inaugural, a partir das experiências anteriores, e isso é bonito de sentir.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Comecei a escrever ainda na era analógica, onde o máximo da tecnologia era a máquina de escrever. Demorei a me sentir confortável com a escrita criativa diretamente no computador, mas não sinto mais essa dificuldade. Ainda tenho o hábito da escrita em cadernos e tenho vários deles, com capas de todo tipo, que sonho em preencher na mesma intensidade dos tempos antigos. O computador prevalece no meu processo, mas o papel funciona melhor nos momentos em que me sinto travada, ou desconectada da minha voz criativa. Para o estudo, ainda prefiro ler e anotar no papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias costumam passar pela experiência e pela observação do cotidiano, do conflito e do silêncio – que pode vir do que ainda não é dito, da dificuldade humana em se comunicar . Apesar de a música ser um elemento forte na minha vida, não posso dizer que ela exerça uma influência consciente no processo criativo. Há quem diga que toda arte é, de alguma forma, musical. Gosto muito dessa ideia e, a partir dela, tento não separar minhas formas de expressão em categorias definidas.
Não tenho um estilo único de escrita e os temas que me ocorrem parecem guiar o tipo de texto que será escrito. Sem dúvida, o hábito da leitura me mantém criativa e cada vez mais disposta a desenvolver minha própria voz.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Apesar de não ter uma formação tradicional em literatura, os estudos que pude realizar nos últimos anos, com escritores brasileiros experientes, me transformaram como leitora. Em consequência, percebo também minha transformação como escritora. Além disso, a convivência com outros escritores iniciantes, sobretudo mulheres, me fortaleceu bastante. É lindo compartilhar o sonho da escrita, que vem sempre com uma certa dose de insegurança, mas com um potencial enorme de afeto e construção. Nesse ponto, sou grata aos meus companheiros do coletivo Passo o Conto, com quem tenho a alegria de caminhar, e ao grande número de iniciativas femininas que estão ganhando força na cena literária. Uma delas é o selo Auroras, da editora Penalux, com quem terei a honra de publicar meu primeiro livro, que será de contos.
Se eu pudesse voltar no tempo, me diria para sair logo em busca dos meus pares e não dar ouvidos a vozes destrutivas, machistas e limitantes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de concluir um projeto de romance, com inspiração histórico-social, que ainda não teve força suficiente para sair das primeiras linhas e da fase de pesquisas. Como meta mais distante, um livro de poesia – gênero mágico no qual experimento, mas onde me sinto alheia.
O livro que eu gostaria de ler, escrito por uma mulher brasileira, talvez ainda não exista para mim. Mas sinto que, em algum lugar, ele já é real e que logo nos encontraremos.