Janaína de Paula é psicanalista, doutora em Estudos Literários pela UFMG, autora de “Cor’p’oema Llansol” (Cas’a’screver).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia começa lento. Demoro um pouco a entrar no modo das coisas, mas gosto das manhãs, da luz que entra pela casa despertando os espaços, atravessando os objetos. Gosto da claridade que atravessa os vidros da área de serviço – onde tenho um pequeno jardim – e ilumina as plantas. Normalmente esse é o primeiro lugar para onde vou logo depois de acordar. Gosto de abrir as cortinas, fazer o café e esperar um pouco o corpo chegar. Nos dias destinados ao cuidado das plantas, faço isso antes de tomar o café. O silêncio e a solidão das manhãs é musical. Gosto do silêncio das plantas. Às vezes leio coisas esparsas, fragmentos que vou encontrando no caminho da casa ou páginas de livros que deixei abertas. Não sei bem se isso é uma rotina, pois nem sempre posso me mover nesse ritmo. Mas se posso dar tempo às manhãs, é assim que elas começam.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho trabalhado melhor na parte da manhã. Acho difícil interromper o trabalho da escrita, e, quando ela começa, isso costuma atravessar o dia todo. O início da escrita acontece antes, bem antes que a escrita comece. Bem antes que se possa sentar-se à mesa e tomar uma caneta nas mãos. Recolho palavras, anoto frases que escuto e leio, recorto fragmentos. Depois vou dando a essas coisas recolhidas um lugar no papel, vendo como se comportam umas junto às outras, como os fragmentos se compõem ou não se compõem. Nem sempre funciona. Às vezes tudo resta mesmo como fragmento esparso, sem que um texto ganhe corpo. Mas penso que a escrita é esse trabalho também de anotação e recolha. Recolher talvez seja o modo como escrevo. Muitas vezes a escrita fica nesse ponto: recolher, anotar. Demora a acontecer em mim uma imagem de texto com bordas mais firmes, e nem sempre entendo que os fragmentos, nesse estado sem pregas, podem ser chamados de texto. Apesar de saber, em certo sentido, que a escrita não se reduz ao livro ou ao gesto de produzir um texto. Tudo faz parte da cena da escrita, ainda que nada seja escrito no final. Não há um ritual, mas um modo de operar com as coisas que leio e escuto. Esse modo desenha um caminho. Sigo essa trilha, percorro esse gesto a cada vez. Há dias em que nada é recolhido ou anotado. São dias estranhos, em que vou dormir com as mãos vazias. Em dias assim, acabo me ocupando das plantas, das coisas da casa e da leitura, enquanto espero a escrita voltar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas. Como disse, para mim escrever é recolher. Então posso dizer que recolho coisas (palavras, sons, imagens, objetos) todos os dias. Mesmo que isso não chegue a compor um escrito. Não tenho um compromisso com a escrita no sentido de definir períodos e metas. Sou comprometida por ela. Às vezes consigo responder a esse comprometimento escrevendo. Em outros momentos, não consigo. Passo tempos sem escrever, mas não passo muitos dias sem recolher/anotar. Às vezes penso que deveria levar mais a sério esse gesto, definir dias e horários para me colocar em estado de escrita. Mas não funciona. Tentei algumas vezes… e aí a escrita acontece quando estou caminhando ou lavando a louça, aguando as plantas ou escutando uma história. Penso que a escuta analítica (outro gesto que me ocupa) é também uma escrita. Transito entre o espaço da leitura e da escrita todos os dias. Escuto pessoas que estão imersas num trabalho de grafar no ar as palavras que habitam uma vida. Procurando palavras que possam dar corpo às suas imagens. Escuto essa escrita todos os dias. Transito por essa orla exígua das imagens que acontecem como escrita. Minhas mãos estão diariamente ocupadas com o gesto de ler, escutar e recolher. Nem tudo que anoto se transforma em texto escrito, mas tudo que recolho faz escrita em mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Todo processo começa com as anotações. Depois de recolhidas, vou aproximando-as no papel. Às vezes uma idéia acontece e, para dar corpo a ela, procuro nas notas uma palavra, frase ou imagem que possa sustentá-la. As anotações me permitem acompanhar o movimento das coisas que se movem ao meu redor. Esse movimento está presente tanto no trabalho de escrita teórica quanto literária. Na verdade, penso que tudo é um trabalho só. Uma só narrativa que vou partindo aos pedaços (Maria Gabriela Llansol). As leituras se misturam, leio teoria (aquelas que me comovem) como se estivesse lendo um poema, enquanto extraio do poema o pensamento teórico que me acompanha. É claro que isso pode gerar algumas dificuldades no campo teórico. Principalmente em se tratando do modo como a escrita se articula. Mas hoje penso que os textos que realmente importam são aqueles em que as diferenças estão ali, habitando o mesmo espaço, definindo um estilo que não é nem ensaio nem romance. Uma terceira via, como escreveu Roland Barthes. Então me movo assim, entre ensaio e romance (apesar de nunca ter escrito um romance), entre a recolha e a anotação. Ocupo o entre, me movo pelas nuances, e o processo de escrita acontece nesse vão aberto das coisas. Acho que é nesse intervalo que a escrita acontece.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A minha maior dificuldade é mesmo com o tempo. Como é difícil para mim interromper a escrita quando ela acontece, acabo adiando muito o tempo desse acontecimento. Para não interrompê-lo, talvez. Ou, ainda, porque sou tomada pelo medo. Entro nesse estado de escrita com o corpo inteiro e, às vezes, tenho medo de não conseguir sair. Então adio. Deixo a escrita para mais tarde, assim como se faz com o amor, depois de ter atravessado o deserto das suas palavras. As imagens mobilizadas pela escrita duram no meu corpo. Atravesso a rua com elas e, estando num lugar, de corpo presente, sinto-me ausente. A escrita precisa do tempo do ócio. Do tempo livre das demandas do mundo, do silêncio e da solidão. Nem sempre consigo esse estado de coisas, apesar de escutar todos os dias a solidão com o silêncio dos meus olhos. Passei 6 meses em Portugal, durante a escrita da minha tese, num doutorado sanduíche. Nesse período, pude experimentar um estado de exílio do mundo das demandas que me permitiu só escrever. O tempo dos dias era marcado pelo tempo da escrita. Pude escrever sem adiar os começos. E ainda que se tratasse de uma escrita teórica, que seria avaliada por outros, o medo não me acompanhou. A escrita foi a companhia dos dias, e o medo não achava espaço para se instalar. Foi a experiência de escrita mais intensa que tive até hoje. Foi nesse período que também escrevi o livro O menino azul para sempre. Escrevia a tese – Cor´p´oema Llansol– e o livro, ao mesmo tempo. Recortava coisas da tese e guardava no livro, recolhia imagens do livro que ganhavam o espaço da tese. Passava de uma coisa a outra sem que a passagem fosse sentida. Só escrevia. Completamente ocupada com as imagens de Maria Gabriela Llansol – autora que pesquisava – e com o trabalho de percorrer os traços das mãos deixados nos livros. Lia, infinitamente. Escrevia em todos os intervalos. Recolhia as imagens nas caminhadas que fazia pela cidade, acompanhada da escrita que não parava de se mover em mim. Sinto falta de um tempo assim. E penso que dessa experiência restou a falta que a escrita me faz.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio muitas vezes os textos que escrevo. Releio e guardo para reler depois. Releio e faço cortes. Alguns textos acontecem de maneira mais precisa e o trabalho de revisá-los pode ser menor. É bonito quando isso acontece. O texto parece nascer pronto e nos resta confiar na sua precisão. Confiar mais nele do que na gente mesmo. Dar crédito a ele. Gosto de ler os textos em voz alta para sentir como as palavras reagem, como dançam na leitura. Gosto de escutá-las depois de tê-las escrito. Depois de ter relido algumas vezes, envio para alguns amigos antes de publicá-los. Mas nem tudo que escrevo ganha o destino da publicação. Muita coisa resta apenas como anotação nos cadernos que carrego na bolsa. Os cadernos são uma espécie de jardim selvagem. Vou encontrando mudas no caminho, recolho e as coloco na página. As mudas vão crescendo ali, desordenadamente. Algumas são colhidas e passam a morar em outros jardins. Mas há muitas que restam sem revisão, sem leitura ou sem um trabalho preciso de jardinagem. Quase tudo resta como muda.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo primeiro à mão, porque minha escrita começa com a recolha. Recolho, escrevo nos cadernos e só depois digito os textos no computador. Como o trabalho de recolher e anotar não termina com o início da escrita, continuo escrevendo à mão enquanto edito os textos no computador. Penso que a edição das notas recolhidas é outra dobra da escrita. Tenho aprendido um pouco sobre o trabalho de edição. Tanto na clínica psicanalítica – penso que o gesto de cortar, destacar e pontuar a palavra do outro faz surgir um novo texto escrito de palavras antigas – como no trabalho de escrever e ler os textos que nos chegam para avaliação na Cas´a edições, percebo que a edição tem se configurado como um trabalho próximo ao da escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As idéias vêm das palavras e das imagens que leio, vejo e escuto. Do convívio com as coisas do mundo: plantas, animais e pessoas. Elas vêm da observação, do estado de atenção ao que se move ao meu redor. Da marca que o tempo imprime nos objetos. Tenho ternura pela passagem do tempo e suas variações de luz. Acho que estou sempre atenta a isso, às nuances das vidas, suas variações; ao movimento das palavras, seus corpos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escreva. A escrita e o medo são incompatíveis.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Leio os mesmos livros, infinitamente. Posso percorrer as mesmas paisagens sem tédio ou cansaço. Acabo sempre recortando coisas não vistas em textos já lidos. Somos leitores diferentes a cada leitura, e o texto acaba por nos encontrar em lugares nunca antes percorridos. Acho que tudo que eu gostaria de ler está no mundo. Não apenas no mundo dos livros, mas na escrita do mundo. Todas as coisas escrevem. As plantas, os animais, as estações. A passagem do tempo e as horas do dia. Gostaria de continuar reco-l(h)endo essa escrita. Gostaria de poder seguir distraída nesse passo. Atenta ao gesto do mundo e ao poema que se desdobra aí. Talvez gostasse de escrever um livro com as palavras que vão caindo de uma vida. Talvez o livro tivesse o título de uma frase que trouxe comigo desde a época que vivi em Portugal. Gostava de escutá-la quando me deslocava de metrô pela cidade. Achava bonito o som das palavras e a imagem que elas formavam no meu corpo. Depois cheguei por aqui e esqueci a frase. Um dia, enquanto procurava uma imagem para dizer a angústia que me tomava como um susto, a frase me aconteceu. “Atenção ao intervalo entre o cais e o comboio”. Se eu estivesse escrevendo um livro, ele teria esse título. Por hora, só tenho a frase e a imagem de um corpo suspenso, no intervalo entre o cais e o comboio, quando os pés ainda não encontraram chão de palavra nenhuma.