Jade Prata é mãe, professora, poeta e doutoranda em educação pela UFRJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O começo varia de acordo com o dia, tenho apreço pela rotina justamente por poder fugir dela de vez em quando. Costumava a acreditar que todo dia começa bem, pois a-manhã é a promessa do novo, é um tempo inaugural, e sou uma pessoa, que apesar de realista com o presente tende a esperançar o futuro. Todavia a maternidade mudou minhas manhãs, não me tirou a esperança, essa cresce na mesma proporção que meu filho (exponencial), mas a perspectiva positiva do acordar, que, descobri há três anos, só existe, quando precedida por uma boa noite de sono. Mães e pais presentes me entenderão.
Nosso tempo é definido pelo que somos, sou mãe, professora, estudante e poeta, a ordem pode se alterar dependendo do contexto, mas acho que meu tempo é definido majoritariamente nessa ordem. Meu dia dificilmente começa depois das 8h, mas tampouco começa antes das 6h. Minha rotina se inicia sempre com beijos, no meu filho e no meu companheiro, depois banheiro, banho, escova, pasta, roupa, homeopatia, lanchinho na mochila, carrinho, café, café, café, café, desce a ladeira, caminha a palavra e o corpo, chega na escola um 1,2, 3 e já, abraço apertado e até logo, atravesso a rua, portão azul, bons dias, muitas saudações, mais café, degrau, degrau, degrau, bagunça, abraços, dúvidas, atenção, BOM DIA, olhares atentos, começa a aula de Ciências.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Me considerava uma pessoa da manhã, mas não sei se tenho uma hora em que trabalho melhor, por que a escrita da tese, de uma poesia ou de um plano de aula são processos absolutamente diferentes. Preciso estar muito íntegra para dar aulas, e para cuidar do Matias, e essas atividades ocupam a maior parte do meu dia, o espaço que sobra para a tese é a noite, que já passou a ser a “melhor hora de trabalhar”, pois é a hora possível, a hora da estrela. Enquanto a poesia ocupa qualquer intervalo, mesmo quando não escrevo, canto ou penso poesia, quando já estou cansada a poesia sai às vezes mais fácil do que no início do dia, quando vou ao banheiro deixo um caderninho ao lado da privada e neste pequeno momento privado, escrevo o que pode ficar só pra mim ou ganhar o espaço nada privativo das redes sociais. A poesia é tanto parte da minha rotina como a fuga dela. Já a escrita de um trabalho acadêmico me exige muita organização, separar os materiais, arrumar a mesa, fazer um bom café, e de preferência ter chocolate ou passas por perto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quanto mais escrevo, mais escrevo, independente se com rimas ou citações. Essa é uma de minhas poucas regras. Todavia, nos últimos anos não tenho conseguido me dedicar academicamente todos os dias, as férias escolares acabam sendo bons momentos para o trabalho acadêmico, e nesses períodos a escrita fica mais fluida e periódica. Gosto muito de estabelecer metas para a escrita da tese, mesmo não as cumprindo, ou as ultrapassando. A poesia, no entanto, prescinde de metas, ganha espaço cada vez maior na minha vida sem tirar nada do lugar, a não ser os nervos. Isso por quê poesia não é matéria de medidas exatas, então, não lhe cabe o princípio da impenetrabilidade, poesia é permeável e penetrável.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como você já coloca, a escrita é processo, nada é imediato, mas gosto muito de escrever o máximo de ideias possíveis e depois ir cortando. Acredito que o post-it tenha sido a maior invenção tecnológica depois da máquina de escrever, uso muito, marco o texto e escrevo no pequeno marcador colorido o propósito da marcação. Quando a leitura é deslumbrante e o tempo está a meu favor, também tomo notas em algum dos muitos caderninhos que tenho. Adoro escrever com grafite, lapiseira 0.7, mas sei que a corda no pescoço exige mais agilidade e não me prendo a rituais, posso ir direto ao documento do office e desatar a jogar letrinhas na tela.
A inércia é uma lei universal da física que diz que todo corpo em repouso tende a se manter em repouso assim como todo corpo em movimento tende a se manter em movimento a não ser que uma força altere esse estado. Desta forma, o mais difícil é começar, ou recomeçar a escrita após um intervalo, quando já há um movimento seja de pesquisa de campo, leituras e anotações ou de escrita propriamente dita, é mais fácil seguir escrevendo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em geral, quando sinto que não vou conseguir escrever eu faço outra coisa, como sempre tenho muita coisa a fazer, eu procrastino com atividades paralelas importantes como planejar uma aula mais dinâmica, produzir material didático, corrigir cadernos, fazer a janta, escrever um poema entre um parágrafo e outro do texto acadêmico, inventar de produzir um disco com meus poemas. Tento não ficar parada, gosto de estar em movimento, mas às vezes exagero e perco o foco.
Expectativas são inevitáveis, como lidamos com elas faz toda a diferença. Eu sempre tenho expectativas altas, pois me cobro muito, e também por que acredito no poder do desejo e da projeção na construção do amanhã. O medo da falha, caminha de mãos dadas com a auto cobrança, mas compreendo a falha como um atributo humano e natural que garante, afinal a evolução então apesar de querer realizar um trabalho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A tese é revisada infinitas vezes por mim e meu orientador, mas alguns capítulos específicos mando para amigas ou amigos de áreas afins. As poesias variam muito, às vezes mostro primeiro a meu companheiro que é uma pessoa extremamente sensível e crítica, ou grupos mais próximos de amigas, e às vezes as exponho, ou me exponho sem roupa mesmo, nesse caso, a poesia de alguma forma já ganhou o mundo assim que saiu de mim, então eu a deixo ir, livre.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo poesia no papel, posso corrigir algo no computador, a ordem, vírgulas, uma troca de palavras, mas a essência sai pela pele, pela tinta, no papel. Já trabalhos acadêmicos são produzidos diretamente no computador. O estudo parte de leitura e anotações em cadernos também, mas posso até fazer isso direto no laptop se estiver com ele em mãos. A tecnologia não interfere na produtividade acadêmica, pelo contrário facilita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm essencialmente da experiência vivida, dos caminhos por onde passei, dos sentimentos que despertei e que despertaram em mim, dos assombros de lucidez que só a realidade é capaz de prover. Sempre tenho um caderninho para anotar casos e causos, sentimentos e sensações o mais depressa possível. E leio sempre, romances, poesia, contos, teoria política, econômica, filosofia, acredito que estamos em constante formação, e tudo o que aprendo pode virar matéria de poesia. A literatura também pode atravessar a vida e até a tese, mesmo não sendo minha área de pesquisa, é uma forma de refletir sobre a realidade, e portanto facilita a construção e interpretação da mesma.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A gente amadurece, e a escrita amadurece junto. Tenho clareza de que não amadureci tanto quanto projetava da inocência dos meus 12 anos quando já escrevia meus primeiros poemas, portanto minha escrita também ainda está aquém do que almejo. Hoje eu tenho menos purismo em mudar o que escrevi, isso foi em parte consequência de uma relação linda com o editor do meu primeiro livro de poesias, “Do Ventre ao Verso”, Lucas. Ele dizia que não tinha quase nada a ser mudado e eu achava que estava sugerindo muitas mudanças, mas sempre achava que a poesia ficava melhor após a alteração por ele sugerida. A partir daí passei, a olhar com mais calma poemas que não gostava e sem purismo de querer registrado um momento, eu passei a transformá-los, por que a releitura do passado também altera o presente. Muitas vezes deixo agir a crítica do tempo, ou dos ratos, me afasto e depois de um tempo retomo um poema, aí o modifico sem deixar que se perca. Se ainda puder sentí-lo, e as palavras fizerem sentido posso publicá-lo. Já tive a ideia de que o que escrevia fosse imutável, se estivesse bom, ok, se não ia pra lixeira do pensamento. Talvez uma influência de mandamentos feitos em pedra, da religiosidade que nego, mas em alguma instância me constitui. Não gostaria de voltar no tempo, e não diria nada a mim, acho que só faço o que faço pois fiz escolhas, tive perdas e ganhos. Acho que diria ao meu espelho hoje, estude sempre, leia mais, nunca pare de escrever. Mas a Jade de ontem se encarregou do que sou hoje, e não me arrependo de nada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Produzir um disco com músicas feitas a partir de minhas poesias, a música liberta, liberta até a palavra. Eu digo que a melodia dá asas à poesia que já caminha por si só, juntas ganham o espaço com mais fluidez, colorem espírito se espraiam com a leveza de flores dentes de leão.
Ri com essa última pergunta, achei que não haveria nada que eu pudesse querer ler, sem que existisse, mas logo, ao compartilhar a risada com meu companheiro, cheguei a conclusão nítida de que adoraria ler “Grande Sertão Veredas” narrado por Diadorim. Como teria sido a vida dessa mulher, será que Riobaldo seria sua neblina, ou sua luz? Seu sertão carece de porteiras, ou a vastidão lhe refletia os sonhos? O sertão é o mundo e vive na gente, algumas pessoas é que ainda não sabem disso.