Jade Bittencourt é poeta, autora de “tinkuy” (padê editorial, 2018) e “amares interrompidos” (Letramento, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar devagar quando é possível. Me traz felicidade deixar que os sonhos da noite escoem pela fronha antes do café, antes do “bom dia”, antes. Os sonhos falam sobre meu sono, sobre coisas que aconteceram, são maneiras de quem me acompanha falar comigo, semeiam poesia. Todas as manhãs espero uma das minhas gatas vir ronronando estabelecer primeiros contatos comigo, um ritual só nosso. Tomo café enquanto converso com minha namorada. Dedico bastante minhas primeiras horas de olhos abertos dando atenção para as gatas e minha cadelinha Diana, fico vendo elas existirem. Se eu for trabalhar cedo, programo o despertador pra que seja possível fazer tudo num ritmo tranquilo. Mas a verdade é que gosto muito de dormir, tanto quanto gosto de fazer esse acordar devagar. Em dias de muitos afazeres isso se embola.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo em muitos horários, quase nunca preparo um momento pra poesia vir ou pra colocar aquela que já veio no papel. Curiosamente grande parte dos versos que brotam de mim chegam quando estou caminhando na rua, no ônibus, no metrô. Em trânsito. É quando posso passar sentindo outras maneiras de estar no mundo. Os mais urgentes pedem pra que eu os escreva antes que escapem por uma janela da memória e jamais voltem, são os poemas borboletas-etéreas, eu os capturo no ar. Então anoto onde eu estiver. Muitas vezes guardei alguns versos no papel encostada na parede de algum lugar, sentada na calçada, no banco de alguma praça, no chão. Há outros que me acompanham como num vai e vem de ondas, estes cuido pra olhar com calma pra eles e sei que estarão ali ainda quando eu sentar pra tomar um café no meio da tarde. Me lambem os pensamentos num contínuo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu fluxo de escrita depende muito de como estou emocionalmente e dos outros fatores que independem do meu querer, às vezes a vida atropela minha escrita. Fico sem ter palavras pra oferecer, então todos os poemas que vêm em tempos assim fica existindo por dentro do meu ser, em alguma parte da minha alma ou corpo. Se quando já estou recomposta persistem então eles tomam forma. Porém gosto de fazer o exercício diário de escrever, sempre levo comigo caderninhos que reservo para isso. Versos, frases, uma palavra que me rodeia especialmente… Caminhos que me levam de uma inspiração a outra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Alguns dos meus poemas chegam quase prontos, uma ideia/verso já vem todo acompanhado de seu desdobramento. Talvez tenham tido seu tempo de maturação imperceptível até pra mim, que sou a escrevente. Os que não são assim é porque necessitam assentar, precisam de algo que ainda não houve como ser, tento esquecê-los até por acaso dar com eles em um caderno ou pedaço de papel. Curiosamente muitas vezes já os percebo prontos, como se estivessem só esperando por essa percepção, ou estou com algo no presente que combina perfeitamente. E há os que perderam o sentido completamente, são os que reservo para ter a memória de que isso também é uma possibilidade. Encontro muita dificuldade em colocar títulos nos poemas, geralmente só faço isso quando retomo a leitura depois de algum tempo. Tenho criado algumas estratégias para tal. O que ocorre é que fico com receio de limitar a aproximação dxs leitorxs com os versos por um título que nem diz tanto sobre o que está ali versificado. Dessa forma o corpo do poema vem sempre antes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que a maior trava que se apresenta como desafio pra mim é a sensação de que esgotei com algum tema e que permaneço no mesmo lugar, embora hoje já tenha consciência de que dificilmente estou estagnada de verdade. Ter paciência comigo mesma e com os fluxos de criatividade é um aprendizado precioso que estou levando pra vida. De certa maneira esse pensamento faz com que eu tenha outras perspectivas sobre procrastinação, na poesia nunca sinto que estou procrastinando porque não quero que escrever se torne uma obrigação dentre tantas que existem no cotidiano. Tento entender quando percebo em mim uma resistência a manter o exercício lírico diário que me propus. Não forçar esse limite. Em relação a corresponder às expectativas, sinto que relaxei um pouco depois das publicações. O retorno daquelxs que lêem tem sido muito interessante e é completamente incontrolável se as pessoas vão ser tocadas pelo o que produzimos. Posso confiar somente em ser fiel ao que acredito, isso basta por enquanto. Nos trabalhos mais longos foco nas etapas para conseguir concentrar minhas energias nos passos que chegam ao resultado, estar inteiramente presente no processo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A depender de como tenha sido a escrita revisito muitas vezes, porém alguns já chegam bem prontos e só releio em voz alta para sentir como soam. Faz diferença para mim essa leitura, que pode ser particular ou dividida. Quando outra pessoa ouve, consigo ter um parâmetro de como está reverberando alguns detalhes. Há algumas pessoas que são as minhas preferidas para esses compartilhamentos, pois sinto que estão conectadas de maneira profunda com os momentos. Acho bonita a partilha.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou uma pessoa não muito tecnológica no quesito escrita criativa. Gosto de escrever no caderno, riscar, reler versões, comparar, passar a limpo… Se for muito urgente registrar uma ideia e não houver nenhum papel por perto (o que é bem difícil, levando em consideração que sempre guardo um caderninho na mochila) eu digito no celular, mas sempre com a intenção de passar para o papel o mais rápido possível. Guardo sempre a sensação de que preciso de algo mais palpável para não temer perder tudo nesses tempos tão digitais em que as informações ficam guardadas em “nuvens”.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias brotam dos mais diversos lugares. Porém percebi há alguns anos que sou movida pelos encontros. Não por acaso meu primeiro livro recebeu o titulo de “tinkuy”, palavra que significa “encontro” em quéchua e que está relacionada a tudo o que gera algo novo a partir deste ponto. Poetizo amor entre mulheres, detalhes cotidianos que se repetem e nunca são iguais, os muitos tempos, tudo o que me alcança em instantes de profunda atenção. Gosto de observar olhando para direções que transforme a ótica sobre as coisas. Caminhar olhando para o céu ou atenta às pessoas quando elas estão distraídas ou ir por uma rua que não costumo ir. A vida me mantém criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que me tornei uma escritora mais segura do que quero e faço. Isso se reflete diretamente nos meus poemas. Se eu pudesse viajar até a minha criança, provavelmente escutaria as histórias dela, primeiras sementes de um jeito de pensar poesia. Imaginaria a estrela que visitava amigos no céu, conversaria com os encantados do quintal ou da matinha lá de perto de casa com ela. Porque aí ela não começaria achar bobagem quando começasse a arriscar a colocar no papel os primeiros versos na adolescência. Faria um exercício de escuta comigo mesma, não de fala. Tenho certeza que isso me encorajaria sem medida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de me dedicar à produção de zines e compartilhar isso com outrxs poetxs que ainda não vislumbraram como fazer circular sua escrita. Quero fazer esse exercício de trocas de experiências com outras pessoas queridas. Quero estar mais presente em eventos literários.
Os livros que gostaria de ler existem e só se multiplicam, que cresçam cada vez mais as possibilidades de partilhas justas para nós escritorxs. Espero ler cada dia mais pessoas LGBTs das mais distintas existências e narrativas.