Jacqueline Sinhoretto é professora do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente começo o dia brigando com o despertador. Porque ele me acorda. Ou – muito pior – quando ele é incapaz de me acordar! E aí tenho uma rotina. Preciso de tempo para café da manhã, ler notícias, trocar as primeiras mensagens do dia, ir ao banheiro. Antes, eu lia jornal. Agora já não me importo muito com a mídia hegemônica. Mas leio atentamente minhas amigas e amigos em seus posts no Facebook, intelectuais, militantes de várias temáticas. Elas e eles estimulam meu pensamento e fazem uma boa seleção das notícias relevantes do momento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho muito melhor à tarde. O horário em que não preciso de nada é entre 15 e 19 horas. Se tenho algo para escrever com prazo, tento começar de manhã, mas a coisa rende mesmo depois do almoço. Almoço, tomo um café, olho a poeira no ar por uns minutos, sento a bunda e só levanto quando o dia se foi. Faço pausas para mais café, xixi, e faço várias pausas para as mensagens no celular. Escrevo sobre temas árduos, que envolvem sempre muito sofrimento humano – linchamentos, violência, mortes, racismo, discriminação, injustiça, discursos de ódio. O objeto de minha escrita profissional envolve o sofrimento, que também vivencio subjetivamente. Por isso, as conversas ativas nos aplicativos são fundamentais para eu distender e não me entregar a estados depressivos. Perder o foco às vezes é parte de conseguir manter o foco. (Na teoria parece ótimo! Na prática, vivencio uma ansiedade bem maior).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quem me dera poder escrever todos os dias! Mas a rotina de trabalho de um professor universitário no Brasil é muito intensa. Se for um pesquisador ativo, ainda mais. Esperamos ansiosos as férias, os feriados prolongados, os recessos de aula para ter um tempo livre maior e dedicá-lo à escrita criativa. Gasta-se muito tempo com burocracias totalmente descabidas, prestações de contas kafkianas, falta apoio técnico no desenvolvimento dos projetos: o coordenador de um projeto tem que se preocupar com o recibo do café que o auxiliar tomou no campo. Não basta ser transparente, é preciso ser transparente dentro de um modelo extremamente complicado de registro de informações, em que as regras estão sempre mudando – os procedimentos que valeram no ano anterior, no ano seguinte estão sempre mais complicados, então parece que você nunca vai aprender a fazer as coisas, mesmo que as faça por dez anos. Tem que se manter ativo na busca de novos projetos, tem que se envolver com os problemas de todos os seus orientandos, preparar aulas, corrigir avaliações, participar da administração da universidade, viajar muito, estar horas em estradas, aeroportos. Infelizmente, escrevo hoje sob pressão de prazos e me contento em fazer o melhor nas condições que me são dadas. É mentira, não me contento, eu me frustro e me estresso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita é o momento de materialização e finalização de um longo percurso. É parte da pesquisa, vem de um conhecimento adquirido, refletido. Vem do tratamento anterior de outros textos – documentos, cadernos de campo, relatórios preliminares. Um artigo, um capítulo de livro, uma tese, na versão em que é publicado, é o resultado de longo processo de reescrita, de amadurecimento da informação, de adensamento da interpretação. Quando se tem muita convicção do que se quer dizer e de onde se quer chegar, o fluxo de ideias vem, as palavras se apresentam. Agora, é claro que materializar o texto é uma atividade muito específica, a expressão escrita é um artesanato, tem dias em que você e sua mente estão plenamente integrados e, neles, realizar um texto é como realizar uma necessidade de expressão, que uma vez satisfeita, gera prazer. Mas tem dias que é mais difícil, que você não tem o tempo que precisa, não tem as condições, o material em que se baseia não está totalmente satisfatório, tem dia que dá cólica, dor de cabeça, dor na coluna, problemas na família, na política, mal de amor, picuinhas, disputinhas, pequenezas… E é aí que o artesanato é pressionado pelo processo industrial em que estamos inseridos. Aí você faz e nem sempre fica satisfeita com o resultado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como lido com isso? Tenho medo, fico ansiosa. Sofro. Desacredito de mim, choro, fico doente, peço ajuda. Depois que ocupo bastante meu tempo tendo pena de mim mesma (e às vezes eu estou super certa sobre as injustiças que sofro), eu sento e faço o que tenho que fazer da melhor forma que puder fazer naquele dia, porque é fazendo que responderei às injustiças. Não tenho conselhos para dar, infelizmente, porque sou uma das pessoas mais intensas que conheço… Tem gente que é organizado e controlado. Eu não sou, paciência, inútil ficar lutando contra mim mesma. Mas experimento prazer também. E às vezes ouço elogios e incentivos que me fazem ver que afinal até que está valendo a pena.
Mas é importante considerar que o tipo de trabalho intelectual que realizo é de natureza coletiva. Na escrita estou sozinha, embora tenha produzido muito em co-autoria ultimamente. Nunca se está sozinha num projeto. Então, quando bate a ignorância, a incerteza, o medo, a angústia, recorro às parceiras e aos parceiros e troco, converso, discuto, peço opiniões, ouço. Sempre há uma equipe de pesquisa, sempre há parceiros intelectuais com quem divido as preocupações, sempre há companheiros de militância para ajudar a recuperar a relevância social do que fazemos. Sempre há interlocutores e é com elas e eles, por e para elas e eles que escrevo. Quando não houver mais um sentido coletivo, aí será o fim.
Meu orientador diz uma coisa que sempre me ajudou com a ansiedade: ninguém vai fazer tese para revolucionar definitivamente os rumos da sociologia mundial ou descontruir inteiramente as relações de poder em que está inserido… a gente vai trabalhar duro e a vida toda para demonstrar um elemento, um aspecto, uma perspectiva particular, um dado que tinha passado despercebido, uma nuance, uma certa forma de recortar uma questão. E pensar isso sempre me ajudou: se confrontando com o grande a gente sempre vai se achar pequeno, mas se a gente vê cada produto como parte de algo maior, daí os elementos ganham relevância.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
“Escreveu e não leu, o pau comeu”. Essa é uma verdade absoluta do universo. Saber revisar um texto, conhecer bem as regras da linguagem, procurar se aperfeiçoar nisso é fundamental. Meus orientandos sabem como sou apegada com a boa escrita. Não significa que eu saiba escrever perfeitamente. Mas eu procuro isto como uma utopia que me faz caminhar. Tem horas que se escreve para cumprir tarefa – e sempre dá problema. Para escrever bem você tem que ter em mente o leitor, se preocupar com quem vai ler, que usos dará ao texto. O problema é que os leitores são diversos, plurais. É preciso procurar formas elegantes, atraentes de escrita. Seu texto vai disputar espaço na mente das pessoas com milhares de outras produções e com uma profusão infinita de discursos em circulação. Então, toda a questão da boa escrita é saber para quê e para quem você escreve – qual a relevância que este interlocutor tem para você e como quer tocá-lo.
Os textos profissionais estão sempre sendo lidos e discutidos nos espaços formais do debate acadêmico. É assim que funciona, antes de enviar um texto para publicação, ele sempre circula.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão? Nunca. Jamais. Never. Acho que nem sei mais escrever à mão. Fora que escrever, corrigir, mudar já é parte da escrita e isto pode ser obtido muito mais facilmente com as ferramentas eletrônicas. Às vezes gravo ideias quando estou dirigindo, indo para algum lugar, já deitada na cama, no meio da madrugada… O celular é o máximo! Uso aplicativos de gravação e de registros de notas. E há pouco tempo aprendi a usar ferramentas de organização de bibliografia e referências. Ferramentas de conversão de voz em texto são tão revolucionárias como foram as fitas adesivas nos absorventes (antes eram presos com alfinetes)… não, espera, como os absorventes íntimos…. não, espera… como os copinhos… sorte a minha não menstruar mais… posso me preocupar agora só com escrever mesmo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias, os temas, os enfoques, os objetivos, as formas, tudo vem da relação com um campo de pesquisa sociológica e com um campo político que se preocupa com transformações da segurança pública e na justiça criminal, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa, menos violenta, menos discriminadora, menos desigual. É o debate desses campos e a interlocução com outras pessoas que movimenta o meu pensamento. Não tenho falta de ideias, porque sempre há algo para dizer, disputar, dizer melhor. Às vezes sinto falta de achar o melhor jeito de comunicar os dados, de escapar das armadilhas do discurso fácil, pronto. Mas os tempos de retrocessos estão tão bicudos que já ficou claro que não se trata apenas de “esclarecer” o meu ponto de vista. É preciso perceber que discursos e práticas sociais você reforça quando escreve. Ou que tipo de insurgência você consegue alcançar… Acho que hoje gravar vídeos e falar para públicos atentos é até mais importante do que escrever. Mas na escrita temos obrigação de coerência e sistematicidade, por isso é difícil falar com convicção sobre o que você ainda não depurou pelo processo da escrita.
Fora isso, eu escrevo uns contos quando me vem a necessidade de fazê-lo. Não publico. É um exercício de escrever num outro lugar. Imagina poder inventar e distorcer uma história? Histórias em que você pode mudar o que os atores fazem e dizem? Em que pode reescrever o final sempre que quiser! Poder brincar com o duplo sentido das palavras e expressões, confundir sentidos, fazer piadas! Fantástico! Para mim é necessário escrever e ler fora do texto científico para conseguir sobreviver a uma vida lendo e escrevendo textos científicos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
“Gata, vai dar tudo certo. Acredita.” É o que eu diria para mim mesma há 12 ou 13 anos quando eu duvidava que escreveria algo que teria relevância para alguém além de mim.
Não sei se mudou muita coisa. Na tese você tem tempo e espaço para pensar uma mesma questão sob vários prismas. Nos artigos não, você tem que recortar e ser econômica. Então hoje eu acho que na tese eu era mais utópica (e no sentido de pensar mais em “e se não fosse assim?”) e parece que meus artigos são mais pragmáticos. Não sei se a minha perspectiva mudou ou se a linguagem enxuta nos leva por esse caminho necessário de colocar em relevo uma coisa de cada vez. E isso não acontece sem cicatrizes num campo de reflexão em que fazer conexões entre as coisas é o que você precisa fazer. Às vezes você tem um capítulo de relatório de 45 páginas. E tem que reduzi-lo para publicar em artigo. Aí você vai lá e reduz. Aí alguém lê e pensa que você simplificou um monte de coisas… Essa é a diferença entre o “feito com as mãos” e o industrial.
Mas queria dizer algo fundamental para as meninas como eu. Muitas de nós não fomos educadas para exercer a palavra. Pensa numa jovem, loira, com cara de que toda a sua existência serve para enfeitar a sala, o escritório, agradar o parceiro, ajudar o marido, de repente achar que quer dizer coisas sérias e contundentes a respeito de como as coisas funcionam. Isto não se faz sem custos, porque não fui educada e encorajada a me expor, a basear minhas ideias em argumentos (em sentimentos, ok, em valores talvez… mas muito pouco em argumentos). Não fui ensinada a falar em público, mesmo nas boas escolas caras em que estudei. Fui bastante preparada para mostrar meu potencial de reprodução. E pouco para afirmar a minha criatividade. Todos os caminhos apontavam para eu ser a grande mulher por trás de um grande homem. E é difícil dizer como foi isso. Mas hoje eu gosto de me ver como uma mulher que trilha o seu próprio caminho. Posso não ser grande. Talvez estivesse envolvida com projetos maiores, com mais grana, com esferas de influência mais efetivas e poderosas, se tivesse escolhido ser o grande suporte de um grande homem. Escolhi outra coisa e estamos aí debaixo desse sol escaldante, suando loucamente, sem direito a sombra.
Toda vez que a minha leitora se achar incapaz, insegura, tímida, precisa escrever bem grande nas paredes por onde passa: eu trilho meu caminho por um universo de falas estruturadas em torno da fala masculina, do jeito masculino de falar, do modo masculino de se posicionar, de ouvidos que foram educados para escutar masculino. Eu sou levada a me achar incapaz de fazer grandes coisas no mundo público e não vou cooperar dessa vez.
Então eu vejo meninas ótimas, fazendo pesquisas ótimas e com muito medo de se posicionar no texto, de tirar conclusões baseadas nos seus dados. Meninas, não cooperem dessa vez, incomodem. Recebam as críticas e respondam, defendam seus percursos, seus trajetos, seus dados. E sejam sempre gentis na crítica.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minha deusa… Eu hoje tenho materiais de pesquisa recolhidos nos últimos anos em processos industriais de produção de dados e que não tive tempo e possibilidade de trabalhar melhor. Gostaria de ficar um ano inteiro somente revisitando meus dados. Ah… meu sonho de consumo é ter quatro anos para escrever um livro!
Estou escrevendo um – despacito, passito a passito – com a Angelina Peralva sobre as grandes redes do narcotráfico, suas conexões com a política, as instituições policiais e judiciais no Brasil e a violência. Tenho um livro quase encaminhado sobre a minha pesquisa Violência e relações raciais, ele precisa de uns meses de concentração e é um livro que eu considero fundamental de ser escrito. E tenho um próximo projeto sobre os e as policiais negros e negras no interior das polícias, estou começando a pesquisa e muito interessada em saber por onde serei levada.