Izilda Bichara é escritora, autora de Térreo e Desculpa o atraso e outros contos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo muito cedo todos os dias, por volta das seis horas, e, ainda na cama, dou uma olhadinha nas redes sociais pelo smartphone. Isso é inevitável, embora eu tente me policiar para não perder muito tempo. Tenho uma rotina idealizada (que nem sempre é seguida) de me dedicar à leitura, ao menos por meia hora, logo pela manhã, e de escrever um pouco também. Às vezes consigo, às vezes não. Depende muito das outras demandas de minha vida pessoal. Essa escrita matinal é uma espécie de exercício espontâneo. Escrevo sobre o que penso, sobre o que sinto, às vezes rabisco o começo de um conto. Lá pelas oito horas, oito e meia, tomo meu café da manhã e então me ocupo de mil outros afazeres, mas me sinto voltada para a escrita o tempo todo, porque vivo em meu dia vários momentos de escrita de pensamento. Chamo de escrita de pensamento as ideias que surgem da minha observação de fatos, pessoas, situações corriqueiras, frases que ouço, notícias. Muito desse material acaba se perdendo, mas sempre que possível, faço alguma anotação ligeira ou gravo a ideia no celular. Tenho milhões de anotações, aqui e ali, para serem compiladas e desenvolvidas. Espero que um dia eu consiga tempo e disciplina para aproveitar melhor esse material.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor quando estou sozinha em casa. Geralmente, à noite. Quando escrevo, entro num estado de concentração que é fundamental para o desenvolvimento do meu texto e por isso evito ter por perto pessoas conversando, música ou televisão ligada. A única exceção são os miados da minha gatinha, que geralmente vem se deitar perto de mim assim que ligo o computador (às vezes em cima do teclado!). Quanto aos rituais, gosto de estar com uma roupa confortável e de ter sempre um copo e uma jarra com água por perto. Nos dias mais frios, troco a água por um chá quentinho ou mesmo por uma taça de vinho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tento exercitar a escrita todos os dias, mas só produzo mesmo, em períodos concentrados, quando estou envolvida com algum projeto. Nessas ocasiões, movida por uma demanda específica, entro numa outra frequência. Fico louca para começar a escrever e não tenho hora para parar. Muitas vezes varo a madrugada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Varia muito. De um modo geral, eu escrevo contos, uma prosa mais condensada, com poucos personagens e trama bastante pontual. Quando tenho de escrever sobre um tema predeterminado, para uma antologia coletiva, por exemplo, sempre sinto muita dificuldade para começar a desenvolver uma ideia. Escrevo e abandono meus textos inúmeras vezes, até chegar a um que realmente me agrade. Noutras ocasiões, em que tenho liberdade de escolha e nenhuma pressão, funciono de forma diferente. O início do conto surge em minha cabeça por meio de uma frase e nunca sei bem aonde ela vai me levar. A maior parte dos meus contos foi criada assim. Eu tinha apenas o início e eles foram fluindo aos pouquinhos. Há quem escreva seguindo uma estrutura preestabelecida, esquematizada, sabendo tudo o que vai acontecer, do princípio ao fim. Comigo não funciona assim. Minhas anotações servem apenas como gatilho e depois a escrita vai tomando seu próprio rumo. Quanto a pesquisas, eu as faço durante o próprio processo de escrita. Paro para pesquisar e recomeço quantas vezes for preciso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido bem com nada disso, é claro. Mas esses obstáculos são reais, existem o tempo todo. Se tenho de escrever por encomenda, sobre um tema determinado, a trava é imediata. Fico me torturando durante um longo tempo, por não saber bem o que vou dizer ou por onde vou começar. São textos sofridos, feitos e refeitos muitas vezes, trabalhados arduamente.
Já o medo de não corresponder às expectativas, ele sempre precede qualquer publicação. Para um escritor é fundamental ter seu texto referendado por um leitor, seja ele especializado ou não. E, ao término de um trabalho, sempre vem a insegurança quanto à qualidade do que foi escrito. Por isso acho muito importante ter alguém que faça uma leitura crítica antes da publicação.
Com relação à ansiedade de trabalhar em projetos longos, não tenho certeza se ela me acompanha. Até agora, em produção autoral, só publiquei uma novela (Térreo, 2012, Ed. C. I. Almeria e 2014, e-galáxia – edição digital) e um livro de contos (Desculpa o atraso, 2017, ed. @link). Desde 2014, venho escrevendo um romance, que aguarda conclusão. Já escrevi dez capítulos, mas tenho muitas dúvidas a respeito dele. Não acho que seja o caso de procrastinação ou de ansiedade. Acho que ele precisa ser amadurecido mesmo. E isso leva tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso e reviso e reviso e reviso e continuo revisando. Só paro quando o livro é publicado. A partir daí, procuro nem ler mais qualquer texto meu, senão vou querer alterar alguma coisa aqui ou ali.
Escrever é um exercício solitário, mas é fundamental que o escritor esteja em contato com seus pares.
Tenho a sorte de fazer parte do Coletivo Literário Martelinho de Ouro. Somos treze escritoras vindas das oficinas de escrita de Marcelino Freire e estamos juntas desde 2012. Quando Marcelino nos deu “alta”, resolvemos montar, ao invés de uma nova oficina, um “martelinho de ouro”, para dar uma “garibada”, um acabamento final, em nossos textos. E, desde então, nos reunimos quinzenalmente para ler e trocar ideias sobre o que escrevemos para nossas publicações autorais e coletivas. Juntas, já publicamos as seguintes coletâneas: Achados e Perdidos (RDG, 2013); Serendpt (Livrus, 2014); SUB (Patuá, 2016) Eu não sou aqui (Patuá, 2017) e os Fanzines: 50 anos daquele 64 (2014); Fancine (2015); Sóis e Sombras (2018).
Também faço parte do Mulherio das Letras e tenho me reunido periodicamente com outras escritoras de São Paulo para conversar e discutir ações e projetos literários. Batizamos nosso grupo de Divina Estação, nome da padaria onde sempre nos reunimos, e, com algumas dessas escritoras, entre outras, vamos lançar em breve a coletânea Úmidas Paisagens, que trata do feminino e do sexo na maturidade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu registro minhas notas e rascunhos como e onde for possível. Escrevo muito no smartphone ou no tablet e também costumo gravar fragmentos de ideias, especialmente quando estou no carro, parada no trânsito. Também não fico sem uma cadernetinha e uma caneta. Tenho várias espalhadas para anotar minhas observações e ideias, ao lado da minha cama, em minha bolsa e até no banheiro. Mas onde escrevo de fato é no computador. É nele que desenvolvo meus textos a partir dessas notas e rascunhos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De toda a parte. O escritor tem um material muito rico e vasto à sua disposição. Minhas ideias vêm da minha observação e sentimento em relação à vida. De qualquer acontecimento banal ou inusitado. De uma notícia, um filme, uma música, um grito, do próprio silêncio. De uma injustiça ou fragilidade, de um sorriso ou de uma lembrança. Procuro manter meus canais de percepção abertos, miro tudo com o olhar de escritora. Se estou na rua, analiso as características, peculiaridades, sotaques, trejeitos e reações das pessoas. Tudo isso pode me ajudar na construção de um personagem. Da mesma forma, um fato corriqueiro, aparentemente sem importância nenhuma, pode ser fundamental para dar verossimilhança a uma história.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Eu comecei ainda menina, escrevendo diários, poemas e alguns textos em prosa. Hoje já não me reconheço nesses escritos. Eram textos espontâneos, bastante amadores. Amadureci com o tempo.
Nos anos 1990, comecei a frequentar o laboratório de redação do Professor Gílson Rampazzo, no Museu Lasar Segall, e aprendi muito com ele. Também participei de alguns concursos literários e ganhei alguns prêmios, o que me estimulou a continuar escrevendo.
Em 2005, criei o blog Escritos Esparsos, onde escrevia regularmente pequenos contos autorais. O blog teve uma aceitação bem grande e chegou a figurar entre os mais acessados na UOL.
Depois de uns três anos, esses escritos passaram a se tornar cada vez mais esparsos. Mas a literatura não saiu de mim. Em 2010, frequentei a oficina de escrita criativa da Academia Internacional de Cinema e lá conheci pessoas incríveis, como Marcelino Freire, João Anzanello Carrascoza, Roberto Taddei, Donizete Galvão, Verônica Stigger, Rodrigo Petrônio e mais uma turma de aspirantes a escritores que se tornaram amigos queridos. Com esse grupo da AIC, participei da antologia Na Mesma Lona.
A partir daí, fiquei mais próxima de quem estava fazendo literatura em São Paulo e comecei a frequentar as Oficinas de Escrita do Centro Cultural Barco, dadas por Marcelino Freire e Nélson de Oliveira, entre outros.
Em 2012, fui para o Martelinho de Ouro, criado nesse mesmo ano, sob a idealização e coordenação da escritora Regina Junqueira. Essa trajetória foi muito enriquecedora para a minha escrita.
Por isso, eu não mexeria em nada nos meus primeiros textos. Eles fazem parte desse processo todo. Um escritor não nasce pronto. Vai se formando aos pouquinhos, com muito treino, insistência, noites em claro, leitura e preparo. E acredito que frequentar uma oficina de escrita é fundamental e estimulante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que todo escritor sonha em escrever livros que façam a diferença, daqueles que arrebatam o leitor e o marcam para sempre. Eu gostaria de ser autora de um livro assim.
Não consigo pensar em um livro que ainda não existe. Os que eu gostaria de ler já existem e são muitos. Grande parte deles está aqui em casa, abarrotando minhas estantes e, infelizmente, eu precisaria de muitas vidas para conseguir ler todos, como eu gostaria. Mas não tem jeito. Sigo me encantando e comprando livros aos montes. Quem sabe não seja esse um modo de me iludir de que vai dar tempo de ler tudo?