Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, tradutor e roteirista cinematográfico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Café. Comprimidos. Orações.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de escrever ao amanhecer, ou melhor, gosto de ir do escuro e do silêncio para a iluminação e o ruído, ainda que grande parte dos meus textos dramatize justamente o inverso deste processo, indo, o mais dos casos, da iluminação ao escuro, a uma certa ceguez quanto ao que fazer agora, e também a uma certa mudez quanto ao que fazer agora. Rituais, e isto talvez possa soar um pouco ríspido, mas qualquer coisa que exceda o preparo do café ou do chazinho me soa um pouco como uma espécie de luxo. Uma amiga minha costumava dizer coisa das mais perspicazes e que eu não vou saber citar direito agora, mas era algo assim: “a história da maioria dos escritores é também a história do que eles precisam fazer para continuar escrevendo”. Digamos, então, que meu ritual de preparação para a escrita seja, em uma palavra, me desafogar das tarefas mundanas. Não que escrever seja tarefa sublime. Pelo contrário. Mas como a sociedade em geral parece laborar neste erro, o de que a literatura é coisa sublime, praticada por gente sublime, eterizada, então, não há muito o que fazer. Ficar esmurrando ponta de faca é cansativo e destrói as unhas. Ademais, temos muito a ganhar encarando certas realidades de frente e sem fumos místicos. Nesse momento da minha carreira literária – momento em que não consigo nem pronunciar a palavra “carreira” sem ter uma espécie de frouxo de riso –, seria um pouco descabido falar em “rituais de preparação”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende: do tanto de trabalho que tenho em mãos e de que preciso me desempenhar etc. Mas tento escrever um pouquinho todos os dias, sim. Escrever criativamente.Tenho fichas espalhadas pela casa nas quais vou anotando coisas que depois de alguns meses tornam-se imensamente enigmáticas para mim mesmo. “Rota memória!”. “Paletó vomitivo”. “Metáfora da colmeia”. “Não esquecer de pagar o gás”. É frutífero partir também dessa incompreensão quanto ao que diabos eu quis dizer em determinado momento. Tendo a ser mais observador de metas diárias de leitura do que de escrita. Minha educação é muito lacunar e me empenho um bocado no sentido de torná-la mais robusta. Passei longo tempo da minha vida acreditando que Oswald e Mario de Andrade eram aparentados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bom, tem as fichas. Os testes de memória a que costumo submeter ideias para poemas e narrativas breves (me demoro, me demoro bem). Tento me organizar, mas as coisas fogem facilmente ao meu controle. Já não percebo, no entanto, real deslocamento entre a pesquisa e a escrita – as atividades ocorrem em paralelo. Talvez seja esse um dos únicos trânsitos graciosos de que me percebo capaz no momento, esta passagem sem muito atrito da pesquisa ao mãos-à-obra e vice-versa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já fui mais suscetível a este tipo de coisa – bloqueios repentinos, adiamentos a perder de vista, medo de frustrar o leitor etc. Hoje em dia, se paro por algum tempo, é porque não tenho mesmo nada a dizer. É possível viver assim também. A coisa se coloca, se impõe mesmo, como um esgotamento. Passa-se um bocadinho de tempo e tudo recomeça. Um belo dia me ocorreu uma formulação bem Steinianazinha da breca, mas que vem me acompanhando há certo tempo: “um escritor escreve”. Pegar nesta frase, revirá-la, assim, com os dedos, apertá-la como uma daquelas bolinhas antiestresse que dormem profundo nas gavetas de escritórios do mundo inteiro, isto me dá um grande alento de vez em quando. Não é sempre. É como o “begin anywhere” do Cage. Porém, é uma colocação que me força a olhar para as coisas de maneira mais chã e torna real diante de mim mesmo a dimensão de trabalho que há no que faço. A dimensão feitora. Um escritor escreve. Pouco, muito, por quantas horas diárias, gozando ou não de boas relações com o público, isto é secundário. Tudo isto devese tornar secundário, para que o real trabalho aconteça, para que a parte densa possa chegar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Pode-se dizer que este processo de revisão não acaba nunca. Isto é uma coisa que nem a publicação dos livros realmente pacifica. É bastante angustiante. Quando estou trabalhando num determinado apanhado de poemas, posso passar horas simplesmente OLHANDO para eles, ocasionalmente reposicionando palavras e sinais de pontuação, testando possibilidades. Geralmente passo este tempo de braços cruzados e cara de poucos amigos, como quem avalia a decoração de uma sala e pensa: “há algo faltando, há algo errado”. E vai, muda o abajur de lugar pela enésima vez, etc. Nesta fase da operação, gosto de mostrar para algumas pessoas, sim, mas são poucas. Não gosto de incomodar e tempo, hoje em dia, para as pessoas da minha idade, é uma coisa muito batalhada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É uma relação, no geral, bastante pacífica. Neste exato momento, estamos passando por uma pequena crise, eu e a tecnologia, porque a tecla “A” do meu teclado está soltando. Eu não dou para Perec, preciso muito desta vogal, conto com ela, não estava preparado para esta baixa. Talvez eu consiga resolver este enguiço com fita adesiva. De resto, o computador está trançado no meu cotidiano de tal maneira que não penso muito nele. O que é exatamente o que ele quer.Avalio que, neste sentido, perdi algum tipo de batalha. Quanto aos primeiros rascunhos, eles ocorrem geralmente no suporte que estiver mais próximo, o que inclui comprovantes, recortes de jornal, papel higiênico etc.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias costumam germinar de minha própria vida, que é bem pouca, como são bem poucas as ideias. Vejo matéria em tudo, não exatamente matéria de poesia ou de prosa, só “matéria”. Acho tudo muito olhável. Posso passar horas olhando fixamente para uma quina ou uma dobra de lençol, tendência que me torna socialmente inviável. Os hábitos que cultivo para me manter criativo não surpreenderão a ninguém. Busco não me distanciar muito das coisas que de fato me mobilizam – discos, livros, filmes. Busco não tratar nada disso como penduricalho, capital intelectual, e tento tocar uma vida em que estas coisas têm de fato algum relevo de estrutura. Trata-se de buscar um engajamento vital nas coisas de redor. Só isso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A grande mudança que detecto tem relação com parar de beber. Antes, escrever era muito mais fácil. Agora é mais difícil, mas infinitamente mais gratificante. Portanto, eu diria para o Primeiro Ismar – “largue a cachaça, desista agora dos anos triunfantes, você vai amargar horrendamente este tempo que perdeu na gandaia”. Mas ele não me ouviria. No que estaria besuntado de razão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São inúmeros. Encartam agora todas as manifestações artísticas. Tornei-me um homem ambicioso e tentacular com o passar dos anos. Quero expor minhas fotos, fazer um show de cabaré para cantar velhas canções da Broadway, escrever uma peça sobre as estadas de Franz Kafka em colônias de nudismo, escrever um ciclo de monólogos em torno da figura de Adão. Quero escrever uma noveleta que misture diatribes iracundas contra os Futuristas Italianos e meditações amenas sobre as aspirações profissionais de meus amigos mais próximos.
O livro que eu gostaria de ler deve existir, e o que é mais angustiante, talvez esteja em algum lugar desta casa, só que não sei bem onde pus.