Isaque de Moura é escritor, autor de “No meio do tiroteio” (Ed. Kazuá, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia mal. Não poderia ser diferente – sou, por natureza, um madrugador, razão pela qual vivo oscilando entre turnos inadequados e nada encorajadores. Estou convencido, aliás, de que essa é uma forma meio estúpida de levar a vida, mas de alguma maneira tenho me especializado nisso – em formas estúpidas de levar a vida. Nesse aspecto, minha relação com o sono não é das melhores. Impossível encontrar uma lógica: posso estar alerta às três da manhã, como posso estar dormindo às sete da noite. Qualquer horário me parece um bom pretexto para despencar na cama.
Há dias, no entanto, em que o sono não chega nunca. Nessas condições, é preciso forçá-lo a qualquer custo, ocasião em que recorro a calmantes – eles são eficazes na tarefa de me manter provisoriamente desligado. Não sei quanto às outras pessoas, mas gosto da sensação de dormir sedado; de perceber o gradual adormecimento do meu corpo graças à ingestão de algumas gotinhas. Bem ou mal, tenho financiado com muito gosto a indústria dos benzodiazepínicos.
Quanto à minha “rotina matinal”, se é que podemos chamar assim, imagino algo nada menos que banal: acordo, mijo, escovo os dentes, engulo comprimidos, tomo banho, às vezes cago; às vezes, não. Bebo um copo de suco de maracujá – e somente isto, porque me falta apetite durante a manhã (condição que pode se estender durante o dia). Saio de casa por volta das oito e atravesso a cidade em meio a um trânsito infernal, cheio de motociclistas apressados, caminhões de carga e ônibus sucateados. Nessas horas, penso que seria melhor estar morto. Não raro me ocorre a ideia de jogar o meu carro de cima da ponte, mas acabo lembrando que tenho um montão de trabalho a fazer, e isso, por si só, é um elemento distrativo para mim. Em outras palavras: a perspectiva de ser útil numa estrutura institucional que me explora sistematicamente me tranquiliza.
Durante o percurso, vejo pessoas indo ou voltando de academias de ginástica com seus tênis coloridos e coqueteleiras, e penso: “Que vida extraordinária essas pessoas devem ter”. Não sou uma delas. Não faço parte do time que venceu. Da mesma forma, a ilusão de prolongar minha própria existência puxando pesos não me convence. Vejo a vida passar diante dos meus olhos e isso, para mim, já basta.
Demoro cerca de cinquenta minutos até estar são e salvo na porta do meu trabalho. Estaciono, bato o ponto, cumprimento a recepcionista, os vigilantes, os colegas. Dou um belo sorriso a todos eles, porque sei o quanto se esforçaram para também estarem ali. E faço o que deve ser feito. Sofro, é claro, mas certamente não sou o único.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quem se mete a escrever ficção assina a própria condenação. É forçado a jamais abandonar o trabalho, inclusive nos momentos em que não está diretamente debruçado sobre ele. A verdade é que apenas uma pequena parte do processo criativo se faz diante do computador. A merda, a grande merda, vem muito antes – está exposta nos miseráveis conflitos diários que somos obrigados a suportar. Tudo isso para dizer que o escritor vive em permanente estado de estranhamento: recusa-se a aceitar a realidade da forma como ela se apresenta, e então decide realçá-la da maneira que lhe convém. Sua vaidade está muito além de qualquer prova: é tão obcecado pela ideia que faz de si mesmo a ponto de não conseguir enxergar um mundo que não seja em primeira pessoa. Tenta esconder a própria vulnerabilidade concebendo universos fictícios, arrotando frases opulentas, evacuando frustrações pessoais em personagens pouco verossímeis. Mas isso é uma boa conversa fiada, e estou me afastando da questão.
Objetivamente, sinto que trabalho com mais liberdade durante a madrugada, entre três e cinco da manhã. É um período bem curto, mas também é o único que tem funcionado para mim. Percebo ainda que a minha produção tende a ser melhor nos fins de semana, sobretudo aos sábados. Sim, sem dúvida, os sábados me animam: posso me entregar de forma total à narrativa – e, de quebra, frequentar festas maravilhosamente decadentes, onde não há espaço para a literatura. Numa boa, qual a importância da ficção no Bagaços Bar? Quem quer saber se você escreve ou deixa de escrever? Ninguém dá a mínima. Estão todos muito concentrados em encher a cara, rir um pouco, esquecer os problemas. Não lhes tiro a razão.
Do mesmo modo, sábado é o dia da semana em que posso ler exaustivamente, sem ter que me preocupar com o dia seguinte (a leitura é a matéria-prima da escrita, além de ser um ótimo exercício contra o tédio e contra a ignorância. Posso aceitar muitas incoerências, mas não acredito num bom escritor que não seja, antes de tudo, um bom leitor). Enfim, o fato é que enquanto algumas religiões guardam o sábado, eu o escancaro. Sou o adventista da pá virada. Ao que me consta, é o melhor que posso fazer por mim. No domingo, em contrapartida, estou liquidado, consumido pela ressaca e pelo mau humor. Ódio é único sentimento que posso compartilhar com os meus semelhantes. Não deveriam existir, os domingos.
Quanto aos meus hábitos, não me considero um escritor de muitos rituais. Silêncio é o mínimo – num sentido mais amplo, eu diria que é condição fundamental. Nada de música, nada de movimento, nada de distração. Um copo de coca-cola não me parece uma má ideia. Um boquete também não, mas pode atrasar o processo.
Às vezes é bom atrasar o processo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando num projeto mais extenso (um romance, por exemplo), tento escrever todos os dias. Ou ao menos regularmente durante a semana – o que na prática não significa grande coisa. Meu nível de improdutividade beira a dislexia, digo isso sem nenhum constrangimento. A escrita nunca sai fácil e muitas vezes me pergunto o que diabos estou fazendo. Na realidade, se esse é o parâmetro para definir o talento de um escritor, decididamente estou na lista dos incompetentes. Assumo com orgulho a condição.
Minha cabeça funciona no modo editor: “está ruim”, “está mal feito”, “mas que porcaria é essa?”, e assim por diante. Todas essas são as minhas obsessões. Posso ficar durante horas num mesmo parágrafo, o que mais uma vez comprova a minha inaptidão para o ofício. De resto, meu controle de qualidade é a exaustão: se vejo que esgotei todas as possibilidades de dizer o que eu tinha a dizer da forma mais simples e inteligível, deixo pra lá. Caio fora. E se me ponho a ler algo que não segue esse critério, estou tentado a abandonar o texto sem pensar duas vezes. Bons escritores escrevem com o máximo de clareza, simplicidade e concisão. Não acredito na teoria de que por trás de uma escrita difícil há necessariamente um pensamento difícil: acredito em competência, e se alguém não é capaz de desenvolvê-la, que vá fazer outra coisa. Há um mundo de possibilidades, e a escrita certamente não é a mais inteligente delas.
De minha parte, quando escrevo contos, tento trabalhar em períodos concentrados. Deixo os textos apodrecerem numa pasta do computador e, semanas depois, volto a eles. Leio tudo de novo até perceber que não poderia ter escrito de outro modo. Não parece uma fórmula muito prática; em todo caso, tem sido a minha.
Em relação às metas, gosto de ter como referência 500 palavras por dia de trabalho. Parece pouco, mas para mim está ótimo. Não tenho tanta coisa assim a dizer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é extremamente fragmentado. Faço muitas anotações – todas esparsas, sem linearidade. Frases breves. Esboços de personagens ou diálogos. Rascunhos de ideias que surgem em momentos inoportunos, mas que acabam me ajudando de uma forma ou de outra. Uso bastante o bloco de notas do celular. Depois do Spotify é seguramente o aplicativo mais acessado. O problema é que muitas dessas anotações são tão descontextualizadas que não me levam a lugar algum; outras, tão surpreendentemente estúpidas que não mereceriam posição mais confortável (vá lá, talvez na lixeira tivessem melhor proveito). Seja como for, esse método funciona particularmente quando desenvolvo cenas secundárias, ao passo que os conflitos principais da narrativa são definidos com muita antecedência, antes mesmo de criar o arquivo no computador. A dinâmica é cíclica: se há um personagem, preciso saber o que o atormenta (para, em seguida, levá-lo a circunstâncias extremas; algumas, nem tanto). Por outro lado, se nada o atormenta, não há personagem. Se não há personagem, não há conflito; se não há conflito, não há história, e é mais ou menos por aí.
Sobre começar a escrever… não, não é difícil. Desconfio que qualquer desmiolado é capaz de fazê-lo. Chegar ao fim é outra coisa. A escrita é naturalmente traiçoeira; ter ideias para livros, todos as tem. Mas escrever não se trata simplesmente de ter ideias (a bem dizer, eu diria que esse é o último dos problemas). O grande lance é estar disposto a ir fundo. E, para ir fundo, você precisa admitir que está sozinho. Assim como precisa compreender que não há garantias, independente dos seus esforços. Aprender a se odiar – primeiro como escritor, depois como ser humano – também é um bom passo. Talvez o maior deles. Mas isso não se ensina.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido bem, e para falar a verdade também não sei até que ponto o exercício da escrita é saudável para mim. Escrever absorve a minha energia de uma forma tão violenta que muitas vezes me parece um ato nocivo. Uma espécie de autoagressão. Todo o processo é antinatural – e, como qualquer processo antinatural, tende a gerar desconforto. Em compensação, se uma pessoa me diz que “adora escrever” ou que se sente bem “despejando os sentimentos no papel”, tenho uma grande tendência a desacreditá-la (especialmente se estivermos tratando de textos em prosa). Acredite, dá pra ouvir a água da privada escorrendo de longe. E a experiência apenas confirma: não posso esperar nada de bom.
Em circunstâncias tão negativas, por que insistir na ação criadora? Vaidade? Teimosia? Masoquismo? Um pouquinho de cada coisa, eu acho. Do mesmo modo, após uma série de decepções e decisões lamentáveis, o escritor compreende, no fim das contas, que não restam muitas alternativas: ou ele organiza os pensamentos em torno de parágrafos e mais parágrafos, ou simplesmente entrega os pontos.
Quanto às outras questões, vamos com calma. Travas acontecem e sempre acontecerão. Quanto a isso, não há muito que fazer, a não ser aceitá-las. E, claro, estar disposto a lutar contra elas. Já a procrastinação tem seus méritos: impede precipitações. Pode ser um bom recurso contra a ansiedade. Você sabe, a escrita é um processo exigente, e o bom texto requer maturação. Subestimar essa etapa pode ser um erro fatal.
Quanto às expectativas dos outros… são apenas expectativas. Mas, se isso é um grande problema para você, existe uma ótima saída: tente decepcioná-los o quanto antes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrevo pouco. Reviso obsessivamente. Há uma máxima que diz: escrever é reescrever. Nada pode estar mais longe da verdade.
Além disso, não gosto de compartilhar o meu trabalho antes de publicá-lo, exceto com as mulheres às quais me envolvo sexualmente no momento. Para mim existe uma relação íntima entre “mostrar o andamento do meu livro” e “mostrar o meu pau”. Possivelmente pela mediocridade de ambos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia? Muito tranquila. Escrevo tudo no computador. Acho que perdi a habilidade caligráfica. Mas ainda consigo tocar umas punhetas – até quando, ninguém sabe.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Observação, imaginação e extrapolação – é a minha Santíssima Trindade. Mas não me considero um sujeito de muitas ideias. Tenho um instinto executivo, pouco criativo – e uma péssima memória. Esqueço nomes, senhas, lugares e fisionomias. Em termos pessoais, posso ser assustadoramente misericordioso: não por elevação espiritual, mas por um princípio de Alzheimer. Sou incapaz de guardar rancores porque tenho dificuldade de lembrar fatos importantes de minha própria vida. Dizei uma palavra e sede salvo.
Quanto à segunda pergunta, não sei o que responder. Criativos ou não, não mantenho hábitos de qualquer espécie.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Aos quinze anos imaginei que eu soubesse de alguma coisa. Aos vinte, desconfiei que não. Aos vinte e cinco, tive certeza que não – e foi essa certeza que me fez publicar o meu primeiro livro. Aos poucos você compreende a sua insignificância. É doloroso, mas perfeitamente saudável. Ninguém se interessa pelo seu trabalho e não há nenhuma urgência no que você tem a dizer. O mundo segue girando e as contas não param de chegar.
No entanto, há um comentário comum entre todas as pessoas que leem os meus livros: elas dizem que tenho potencial. É incrível. E vão continuar dizendo até que o último dos meus ossos apodreça; evidentemente, com uma simples flexão verbal: “Isaque tinha potencial”. Ter potencial significa que você pode melhorar, e a verdade é que você sempre pode melhorar, se estiver disposto a isso.
O que eu diria se pudesse voltar aos primeiros textos? “Sai dessa, meu chapa. Você não sabe um terço da encrenca em que está se metendo”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto? Desistir o quanto antes, pelo amor de Deus. Minhas ambições são todas póstumas. Quer dizer, talvez algum dia meus livros façam sentido para alguém. Se não fizerem, tudo bem também. A essa altura, veja só que maravilha, não restará mais nada de mim.
Estarei mortinho da Silva.