Isabor Quintiere é escritora, autora de “A cor humana” (Escaleras, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu relógio biológico soa o alarme bem cedo, mesmo nos dias em que tenho tempo de sobra para dormir. Gosto disso porque posso aplicar toda a minha produtividade durante a manhã, tanto em termos de estudos e trabalho quanto em termos de escrita – aliás, não consigo lembrar da última vez em que sentei para escrever à noite e consegui passar de uma linha. A rotina matinal em si geralmente consiste de ir para a universidade uma ou duas horas antes do início das aulas do mestrado, e aproveitar esse tempo livre para ler na biblioteca ou na mesa de alguma lanchonete mesmo. Assim me mantenho em contato diário com a leitura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Aqui a musa bate o ponto e vai embora com o cair da noite. Frequentemente ouço amigos escritores comentarem sobre a inspiração que vem com a madrugada, ou sobre seus hábitos de virarem a noite escrevendo, e acho graça porque nesses horários eu já estou no décimo quinto sono. Trabalho muito melhor de manhã cedo e especialmente à tarde, que é o momento do dia em que minha mente costuma estar no ápice da produtividade e também o momento em que escrevi a maioria dos meus contos.
Infelizmente, nada de rituais de preparação aqui. É sentar e escrever na hora em que o impulso pela escrita surge – se eu esperar um pouco, disser que vou ali me preparar rapidinho, ele se enfeza e vai embora feito bicho. E aí fico de mãos abanando, sem conseguir escrever satisfatoriamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevia um pouco todos os dias quando estava focada na escrita do meu projeto de romance, agora em hiato. Me ajudava muito porque me mantinha em um contato diário com os personagens, assim a narração fluía mais facilmente, porque eu sentia que os conhecia bem, que lembrava bem deles. Eu também relia os capítulos mais recentes todos os dias, para fortalecer essa conexão.
Quanto aos contos, não me imponho metas. Esses funcionam na base do “se surgiu a ideia, vamos trabalhar; se não surgiu, vamos esperar surgir”. Minha produção de contos é bem mais relaxada, mas isso não afeta o rigor literário que tenho para com eles. Posso passar meses sem escrever um único conto, mas a partir do momento em que brota um na mente, é cair em campo e ficar em cima, escrever, reescrever, lapidar e relapidar até ele ficar como quero que fique.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho o hábito de compilar notas, e as pesquisas que faço são muito pontuais (conferir nomes, termos específicos, eventos históricos). Parando para pensar agora, meu processo de escrita pode até parecer caótico visto de fora por não ter uma organização aparente nenhuma, mas na minha cabeça já está tudo sempre mais ou menos estruturado e dentro dos conformes. É natural para mim organizar enquanto escrevo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando um conto trava e não sai do lugar, por exemplo, eu não forço a escrita a vir. Não tenho pressa para concluir conto nenhum. Deixo o danado quieto na dele, sim, mas volto até ele várias vezes na semana, o releio por inteiro, fico tentando encontrar o que falta na “equação”. Eventualmente encontro, tenho o momento de eureka! e descubro como começar o próximo parágrafo ou encerrar a narrativa satisfatoriamente.
Quanto a corresponder às expectativas, acho que minha única expectativa de verdade é comigo mesma. Eu tenho certos padrões particulares que tento atingir sempre. Com isso, algum conto meu pode até receber elogios, mas se eu não estiver satisfeita com ele, vou continuar achando um lixo! Ou o contrário também pode acontecer, de acharem um conto fraco e eu estar plenamente satisfeita com ele.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até chegar a um ponto em que leio duas, três vezes e já não me pego fazendo mais alteração alguma. É aí que penso, “ok, tá bom já”.
Meu marido é meu principal “leitor de teste” – os textos passam pelo crivo dele primeiro e só então para outras pessoas, geralmente amigos escritores em quem confio e que sei que também poderão dar sugestões ou críticas contundentes, se for preciso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já tentei andar com vários cadernos na bolsa, para escrever pelos cantos e tal. Nunca foram usados. No máximo, escrevo umas palavras-chave que só fazem sentido para mim mesma, que é pra me lembrar de alguma ideia a ser escrita mais tarde. De resto, é tudo no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ainda não aprendi a responder essa questão. Minha mente parece estar sempre ligada a alguma versão do Gerador de Improbabilidade Infinita de Douglas Adams – em outras palavras, pensamentos surreais me surgem com a naturalidade de quem pensa em tomar um cafezinho, e talvez por isso eu me sinta tão próxima de gêneros como o realismo mágico. Estar aberta à estranheza do mundo ajuda muito, porque o abstrato se esconde em todo canto do cotidiano, basta procurar.
Também acho que tem muito a ver com o fato de eu ter sido uma criança que foi criada como filha única e que também não tinha tantos amigos onde morava. Você aprende a se divertir sozinha, e se divertir sozinha requer criatividade. Minha infância nunca foi entediante precisamente por causa desse mundo mental extremamente ativo que eu mantenho até hoje. Sem contar que estou sempre lendo autores de todos os tipos, de todos os gêneros e nacionalidades, consumindo artes variadas que me façam imaginar além.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a querer escrever mais seriamente, ainda na adolescência, eu tentava emular o estilo de cânones como Clarice Lispector e Machado de Assis, ou de outros autores clássicos com os quais eu acabasse topando. Achava que, para escrever boa literatura, precisava aprender a escrever como eles. Isso tornava o processo de escrita muito não-orgânico e sem qualquer identidade pessoal. Comecei a me libertar disso quando conheci a literatura de autores como Italo Calvino, Julio Cortázar e Maria Valéria Rezende, e um novo mundo de possibilidades se abriu. Lembro de ler o livro de Calvino, “Cidades invisíveis”, pela primeira vez e pensar: caramba, é possível escrever assim! Parece óbvio agora, mas na época não era. Conhecer outros gêneros me permitiu expandir minha própria criação literária, me deixou mais solta, e eu só me beneficiei disso. Se eu pudesse cochichar alguma coisa no ouvido daquela Isabor, eu diria: “Clarice Lispector já existe! Inventa outra coisa!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há pouco tempo escrevi um conto em específico que brinca muito com sons, então tenho vontade de transformá-lo em um audioconto eventualmente. Talvez faça o mesmo com outros depois dele. Também penso em escrever roteiros para eventuais curtas-metragens. Quanto ao livro que eu gostaria de ler, adoraria ler o bendito romance no qual estou trabalhando desde 2016, a dificuldade é só fazê-lo existir, porque aí é responsabilidade toda minha!