Isabelle Borges é escritora, educadora e roteirista e fundadora da POAMA – Escola de Memórias.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A manhã é a parte mais importante do dia para mim. Acredito que é nela que comunicamos a qualidade de energia e de intenção que queremos que se apresente ao longo do dia. Eu tenho, portanto, um ritual matinal. A primeira coisa que faço quando acordo é escrever. Deixo na minha cômoda meu caderno e uma lapiseira e escrevo pelo menos três páginas. Faço isso há dois anos, seguindo as orientações de uma técnica chamada Páginas Matinas do livro “O Caminho do Artista”, de Julia Cameron. Algumas vezes também anoto meus sonhos em um outro caderno. Também escolho um livro de poesia e leio pelo menos cinco poemas antes de sair da cama. Depois, faço umas respirações e uns exercícios de canto e medito por vinte minutos e parto para fazer minhas atividades físicas. Só depois desse ritual que vou para os compromissos do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A minha escrita é sempre atrasada. Todo dia eu perco um poema. As palavras chegam nas horas mais impróprias, quando estou atravessando a rua no meio da chuva, quando estou com a mão atolada de sacola de supermercado ou no meio da conversa com alguém que possivelmente me acharia completamente maluca se eu pedisse “me dá um minutinho para eu escrever uma coisinha que me veio à cabeça a partir do que você falou e desse jeito que mexeu a mão”. A maior parte dos dias sou só uma promessa. Em resumo, tudo isso é para dizer que minha escrita não entende muito de hora. Trabalho melhor quando estou ciente que minha criatividade carece de cuidado, quando dou espaço e tempo na minha vida para ela. Então escuto uma vozinha aqui dentro que diz “Isabelle, vai escrever” e na maior parte das vezes uma outra voz responde “Mas eu estou sem ideia nenhuma”. Então meu lado compromissado e cuidadoso me alerta que os textos já estão em mim e que só preciso parar para escrever, porque a verdade que o segredo para escrever é escrever. Então no decorrer da rotina, vou mexendo entre mim mesma para dar esse tempo aos meus textos. Minha forma de me preparar para a escrita se dá pelo modo que me porto na vida, no cotidiano. Isso pode parecer meio clichê, mas levo isso bem a sério. Acredito que a escrita antecede a escrita. Antes de eu colocar o texto em um papel, a escrita já está acontecendo em mim, já está sendo elaborada, já está maturando junto com minhas células, minhas memórias e os cheiros que me cortam no ar. Busco a presença no cotidiano, estar com meus sentidos todos de poros abertos, sentindo, ouvindo, mirando. Meu ritual para a escrita é me dar tempo de viver as coisas com beleza, com o meu corpo todo em estado de viver. E se no momento exato de escrever eu não estiver conseguindo, eu medito, danço, mexo o corpo, leio um parágrafo de um livro que me inspira, sento e confio nas palavras que me chegam.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meta todos temos. Aliás acho meta uma palavra tão longa que parece que nunca vou alcançar o fim. Meu sonho é escrever no mínimo três horas por dia. E cada vez que escrevesse saísse uma obra de arte, digna de prêmio, de gerar amores, de fazer gente de de aço chorar. Mas a verdade é que tem dia que o que me resta são mensagens no whatsapp com palavras abreviadas e erros de português. O que me salva para eu não duvidar que escrever pode ser mesmo meu ofício, é que escrevo todo dia quando acordo (nas tais páginas matinais) e a minha absolvição de mim mesma vem daí. Tem períodos que estou escrevendo muito, todo dia chegam muitas ideias, embalo em um texto e não quero parar até a próxima lua chegar. Já outros dias, olho para o teto, para o papel, para a janela, para meu pé, para o celular, para a unha que tenho que tirar o esmalte, para minha agenda do mês, para as cinzas do incenso que caíram no chão e não escrevo nada. O que me acontece muito são frases que chegam todos os dias, possivelmente versos se oferecendo para virar um poema, e eu mantenho a dignidade de anotá-los. Isso já deixa meu coração mais descansado para dormir em paz.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ah, os começos! Começar é uma palavra tinhosa, cheia de medos, de reviravolta, de procrastinação. Às vezes ela vêm de supetão como quando saímos da barriga da mãe e somos agarrados pelo pé. Não adianta berrar, a vida começou. Na escrita não é diferente, pelo menos para mim. Começar um texto algumas vezes é assustador e me dá vontade de voltar para a barriga da minha mãe, mas não tenho escolha, preciso escrever senão não vivo. O começo exige paciência e disciplina. Muitas vezes arrumo mil coisas para não ter que iniciar um texto e prefiro até lavar louça que olhar dentro de mim e ver tudo branco. “Ei, tá vazio aqui dentro. Mas tem que escrever, vai lá!”. Por isso, dou tanto valor para as frases que chegam de repente. São elas, tantas vezes, que me salvam.
Quando estou em um trabalho que exigiu uma pesquisa maior, eu organizo todo o material, todas as ideias e busco encontrar uma linha de raciocínio para elas e então monto possíveis categorias ou divisões temáticas e vou deslocando as ideias para cada um desses temas ao longo do documento do word. E então começo a escrever, buscando contemplar aquelas ideias, aqueles recursos. Para mim é fundamental essa organização prévia, porque me tira da desorganização mental e me coloca em um caminho possível de realização e isso traz uma leveza e clareza para escrever.
Uma coisa que faço muito é anotar trechos de livros que li, ou frases que vieram a cabeça, ou coisas que vi na rua. Do mesmo modo, monto um documento pra organizar essas ideias e vejo se há conexões entre elas e muitas vezes os textos surgem dessa brincadeira de um tanto de coisa que me atravessou.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu me observo e escuto as coisas que digo para mim. Anoto as frases que soam na cabeça “Isso não é bom. Ninguém quer te ler. Você não tem nada de interessante para dizer. Aliás, você nem escreve bem”. Eu anoto todas essas vozes que me chutam e crio antídotos contra elas. Escrevo outras frases positivas que combatem essas mentiras que dizemos para nós mesmos. E quando estou com medo ou muito dispersa, eu vou para o corpo. Coloco uma música e danço, me trago para o estado de presença, para meu ser essencial e me conecto com o que há de mais genuíno em mim. É um exercício constante e se tornou um objeto de pesquisa, pois um dos meus trabalhos é estimular pessoas na descoberta da escrita e no desbloqueio de processos criativos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu leio muitas vezes. Muitas até perder a conta. Tenho que decidir que o texto terminou, senão eu revisaria eternamente. Isso é uma coisa que a escrita me ensinou: o fim é uma decisão e não um fato. Há de se decidir que algo acabou. Eu tenho um consultor literário que revisa todos meus textos mais importantes e o olhar dele enriquece muito meu próprio olhar sobre o que escrevi. Aprendi tanto com ele e com outros mestres que hoje também realizo esse tipo de consultoria. Também tenho o costume de mostrar para alguns amigos escritores e outras vezes peço para amigos que não são da área para sentir como o texto chega ao leitor. É muito importante que eu me distancie de meus olhos. Às vezes estamos tão atrelados ao texto que não conseguimos enxergar algumas coisas. Acredito que é essencial que qualquer pessoa que escreva permita que outra também possa acolher o texto. Por isso, escolho pessoas cuidadosas que sei que olharão para as palavras com amor, sentindo-se um pouco pertencente daquela arte e que perceberão que o doar do meu texto para aquela opinião é um gesto de amor e confiança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando paro para escrever um texto, vou direto para o computador, mas eu sempre ando com um caderno e muitas vezes quando estou na rua escrevo nele primeiro quando vem uma ideia. É comum, por exemplo, eu revisitar um livro antigo que eu estava lendo e encontrar na última página alguns rascunhos que eu nem lembrava ter escrito. Às vezes tenho que tirar um tempo para encontrar meus escritos por aí e salvá-los de um esquecimento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Do dedão do pé. Dedão do pé? É isso. Quando falo com crianças sobre processo criativo eu conto a elas que minhas histórias nascem no dedão do pé e ai sobem pelo tornozelo, pelos joelhos, passam pelo quadril, dão a volta no umbigo, sobem pelo tronco, vão pelos braços até os dedos da mão, depois voltam passam pelo sovaco faz cosquinha, vai pelo ombro, pelo pescoço, boca, nariz, olhos, sobrancelhas até sair na ponta do fio de cabelo. É que conto a elas que as histórias passam pelo corpo inteiro. É daí que elas nascem. De como meus sentidos estão abertos ao mundo. Minhas histórias surgem de como vejo as coisas, como ouço, toco, sinto gosto, cheiro. A qualidade e atenção ao que vivencio é que me dá material de criação. Acredito que uma vida criativa se dá em colocarmos poesias no cotidiano. Busco viver pelo menos uma poesia por dia. Algo que me dê extremo prazer onde eu possa estar completamente presente naquele momento. É buscar beleza, bem viver. Pode ser desde tomar um sorvete, a balançar num balanço, dançar no chuveiro no escuro, deixar o vento bater no dente, olhar uma flor por cinco minutos. Tem uma frase que eu sempre digo para mim mesma “O paraíso é onde estou”. E em qualquer lugar que estou me falo isso e vejo como naquele momento é possível encontrar a poesia, a beleza, o sentir. E a poesia do cotidiano sempre aparece e isso me mantém constantemente em estado poético.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Houve um amadurecimento, mas ao mesmo tempo acho que perdi um pouco a espontaneidade que tinha e disso sinto saudade. Hoje eu exploro mais as palavras, tenho menos excessos, conheço mais meu mecanismo criativo, mas quando comecei a escrever eu me divertia mais, ficava mais encantada comigo mesma e tinha uma inocência em me arriscar. Porém, acho bonito ver meu próprio processo de amadurecimento, em como fui desenvolvendo as palavras e os recursos poéticos. Eu diria para mim mesma “Sinto muito orgulho por ter permito e acreditado que suas palavras mereciam ser escritas. Obrigada por ter iniciado e me trazido até aqui.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um projeto de um livro sobre as descobertas e pesquisas que tenho desenvolvido sobre a poética do ser, sobre como a conexão com a poética interna nos leva ao processo de criação. Ele está sendo feito aos poucos enquanto vivo e crio. Sinto no meu coração que quando chegar o momento dele nascer será uma grande doação que poderei dar ao mundo. Gostarei de poder lê-lo e rabiscá-lo todo com as frases que me arrepiam, assim como faço com os livros que passam por mim. Esse será um grande dia.