Isabela Penov é poeta, atriz e mãe, autora de “Aves Marias (ou A Revoada)” (Patuá, 2019).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina muda radicalmente a depender dos dias da semana, pois durante metade dela, de sexta à segunda, minhas duas filhas pequenas ficam comigo. A rotina de uma mulher que escreve e a rotina de uma mãe que escreve são completamente diferentes. Quando estou com elas, consigo cumprir muito melhor uma rotina, pois o ritmo das crianças é imperativo. As crianças são fiéis às suas necessidades: não deixam a fome, a sede, a carência, o sono ou a diversão para depois, elas sabem se escutar, obedecem aos desejos com urgência, exigem que sejam atendidos. Em contrapartida, o tempo escorre pelos dedos, e entre lanchinhos, brincadeiras e joelhos ralados a noite chega. Prometo a mim mesma que depois de elas dormirem irei ler, estudar ou escrever, mas eis que acordo já de madrugada percebendo que acabei pegando no sono com elas. Os dias são tão prazerosos quanto cheios.
Quando elas não estão comigo, o tempo fica mais dilatado e menos produtivo em termos de quantidade de tarefas cumpridas, mas consigo colocar o ofício da escrita na pauta do dia. Busco então criar uma rotina de autocuidado pela manhã. Algo que faça a transição entre o sono e o dia de maneira gentil. Um banho quente ouvindo música, um café ou chá na companhia de meu companheiro, ler as notícias deitada na rede, fazer uma lista de tarefas e mandar mensagens para pessoas queridas – algo que antes era trivial e ficou indispensável durante esse período de isolamento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O horário melhor para trabalhar depende muito do que estou escrevendo. Cada período do dia nos transmite energias diferentes. Há trabalhos que carecem do silêncio da noite, da sua aura de mistério, suspensão, solidão e sensualidade. Outros, se nutrem melhor com a luz do sol, com a sensação de que a vida está acontecendo, esse ímpeto que a claridade e o calor nos dão e que ajudam a estabelecer uma conexão com o “fora.” Sou uma pessoa diurna, no sentido de que durante o dia geralmente fico mais alegre. Mas a escrita se comporta de maneiras diferentes em cada horário, há alguns poemas que simplesmente não deslancham, e depois me dou conta de que é porque eu estava trabalhando neles no horário ou no ambiente “errados.” Essa escolha costuma ser intuitiva, mas às vezes a intuição falha.
Quanto a um ritual de preparação, o germe de um poema ou de uma série deles se dá geralmente durante uma leitura. Não é uma regra, às vezes acontece mais ao acaso, a partir de acontecimentos, imagens ou com trechos de falas das pessoas, também, mas quando eu me organizo objetivamente para escrever, geralmente começo o processo com leituras. Abro um ou mais livros que têm a ver com o trabalho, ainda que subjetivamente; gosto quando são de gêneros diferentes entre si; gosto de ter um dicionário por perto, também; e cadernos, vários cadernos, cada um para certo tipo de anotação – na tentativa de ser organizada, mas em pouco tempo tudo vira um caos. Costumo utilizar um caderno apenas para vocabulário, palavras soltas do livro que me causam algum impacto, a partir das quais estabeleço relações – sinônimos, antônimos, rimas ou sentidos. Faço grandes listas de palavras e associações livres a partir delas. Alguns poemas surgem dessas listas. Outro caderno é para quando esses livros são teóricos ou exigem alguma pesquisa, faço nele um fichamento ou anotações da pesquisa. Outro é para frases soltas que são despertadas, ideias de poemas que “invadem” a leitura e muitas vezes não terão grandes consequências literárias. Por vezes, meses ou anos depois retorno a esses versos e tiro dali o argumento para um novo trabalho. Mas a maioria fica ali abandonada, servindo só para “tirar da frente” um pensamento e dar espaço a outros.
Tudo isso acontece à mão, e comigo deitada na cama ou na rede, invariavelmente. Deitada fico mais espontânea, sentada raciocino melhor. Assim, quando obtenho a forma central de um poema, sento no computador para trabalhá-lo melhor e digitar sua “forma final.” Coloco entre aspas porque, em geral, dificilmente considero que um poema chegou a uma forma ideal, e sempre que for reler, farei alguma modificação. Quando publico, é porque desisti.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, mas gostaria muito de criar esse tipo de rotina diária. Admiro quem o faz, e acho que me faria bem. Costuma ocorrer comigo ter fases em que escrevo bastante, quase diariamente, alternadas com outras em que não escrevo quase nada. São fases de crise criativa, ou de atarefamento, ou períodos em que sinto que preciso me reciclar apenas lendo, absorvendo obras de outras linguagens, ou vivendo experiências que preciso viver.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo costuma ser caótico. A pesquisa e a escrita ocorrem quase sempre simultaneamente, apesar de que atualmente tenho pesquisado muito mais do que escrito, pois estou imersa em um projeto que me exige muita informação histórica, teórica. Mas mesmo a teoria me desperta algumas ideias em lapsos, então posso estar lendo um livro de ciência social ou antropologia ou história, mas os tais cadernos sempre estarão ali ao lado à espreita de algum verso solto ou poema que certamente transbordará da leitura. As palavras me suscitam associações o tempo todo, criam imagens que preciso anotar imediatamente porque podem ser úteis ao trabalho mais, digamos, criativo, posteriormente. A pesquisa e a criação se retroalimentam.
Não é difícil começar, para mim o difícil é organizar um amontoado de notas e transformá-las em algo esteticamente relevante. A maior parte das notas soa para mim como algo que tem um potencial, mas que não consigo desenvolver satisfatoriamente. Depois vem o desafio de avaliar quais poemas têm ou não sentido e valor dentro da unidade do livro, criar essa coerência, desapegar, reformular. Isso para mim é algo que não consigo vencer sem ajuda externa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei. Risos. Sobre as travas, eu considero que se o poema não está acontecendo é porque não está maduro. Não brigo com as palavras. Eu me recolho humildemente, pensando que às vezes é preciso ficar mais tempo na parte do poema que antecede a escrita propriamente dita, a parte de se nutrir da vida, de contemplar o mundo, de ouvir as pessoas, de ler outras referências, de ter orgasmos, abraçar amigos, e descansar e colocar o pé na terra, enfim, a vida. Porque até chegarmos na escolha das palavras é preciso que haja o acúmulo de outro tipo de substância, a substância da vida mesmo, que vai perpassar os versos. Esse acúmulo que toma forma até virar o fragmento que falta ou o start de um poema que parecia nunca acontecer. Eu dedico o tempo que estaria brigando com as palavras a viver minha vida, e me consolo pensando que as experiências que estou tendo estão me alimentando para os poemas que escreverei.
A procrastinação segue sendo um desafio. Durante a pandemia a exaustão emocional intensificou esse problema, a sensação é de que a mente sempre está a ponto de transbordar, e a necessidade de distração e entretenimento às vezes suplanta o que é mais importante. Mas realmente tenho tentado ser compreensiva comigo, no sentido de ter trocado a ansiedade por produtividade na quarentena pelo objetivo de sobreviver fisicamente sem sucumbir emocionalmente. Isso se tornou, atualmente, um desafio por si já tão grande, que aceito dedicar um tempo a “produzir” apenas na medida em que isso é fundamental para me sustentar materialmente ou fundamental para me alimentar espiritual e emocionalmente. Nada mais é urgente agora.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, isso é uma angústia constante bastante aprofundada pela era das mídias sociais, que nos colocam sempre à prova e nos medem por likes. Recentemente passei alguns meses distante das redes exatamente para me desintoxicar da necessidade de aprovação, algo mais comum em escritores relativamente iniciantes como eu. Esse afastamento tem sido periódico, quando sinto que a ânsia por aceitação está influindo em minhas escolhas artísticas, me afasto das redes. Ah, e levo para a terapia, claro. Risos.
Quanto a trabalhar em projetos longos, é a primeira vez que trabalho em um, desde que tive o privilégio de ter um projeto muito importante para mim aprovado no edital Rumos do Itaú Cultural, o que me convoca para me dedicar a longo prazo para sua realização. Existe a ansiedade, que acho que se reflete no fato de que tudo na vida parece convergir para esse trabalho. Cada filme que vejo, livro, acaso ou paisagem parece me levar diretamente a esse recorte, a esse universo particular do livro que ainda vai nascer. E me colocarei diante do aprendizado de domar meu caos criativo em prol de um cronograma de realização, algo que acho que será de muita utilidade para os projetos futuros. É uma ansiedade que consigo manter nos limites do que é prazeroso, do frio na barriga, e que me move a seguir – inclusive, sendo um alento e um antídoto contra o desânimo típico destes tempos de pandemia e isolamento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso inúmeras, desisto por um tempo, retorno depois e, geralmente, ao retornar modifico muita coisa. Mostro os trabalhos para outras pessoas, sim, de preferência de universos distintos: pessoas que são do campo da literatura, pessoas que são artistas de outras áreas, e pessoas que são “apenas” leitoras, e que podem me trazer um tipo de retorno muito especial e importante sobre o impacto que o trabalho terá no público de um modo geral, e não na crítica ou no pequeno clube de escritores e escritoras da minha bolha pessoal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre à mão, nos cadernos que citei, deitada, relaxada. Depois, sento-me diante do computador e visualizo os poemas enquanto digito, e isso costuma me causar uma impressão muito diversa. É curioso: observar os versos digitados me dá a impressão de “ver com outros olhos”, cria uma sensação de maior distanciamento em relação ao que fiz à mão. Muitas vezes, depois de digitar, aquilo que parecia uma grande ideia quando manuscrito se mostra totalmente insatisfatório. Outras, uma solução que não encontro à mão, surge subitamente quando estou diante da tela. Questões relacionadas à métrica e ritmo costumam ser melhor solucionadas no computador do que na fase de escrever à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Elas surgem obsessivamente o tempo todo – o que obviamente não significa que todas as ideias que surgem são boas. Risos. A maioria delas nem chego a anotar, elas passam e nem dou a atenção que algumas merecem. Mas o dia todo ocorrem situações que me sugerem imagens poéticas, ou obras de outras linguagens que me inspiram intensamente. Mas, objetivamente, o que podemos chamar de inspiração, para mim, acontece de modo mais organizado e concreto a partir de outras obras, literárias ou não – a fotografia, por exemplo, também é muito potente para mim nesse sentido.
Já as ideias que surgem ao acaso são muito estimuladas por histórias que escuto. Histórias reais, frases impressionantes que muitas vezes surgem despretensiosamente em minhas conversas com estranhos, com minha mãe, com minha avó. Minha avó materna é um poço de poesia em estado bruto. Uma vez ela me dizia de uma situação que a deixou em choque, desta forma: “fiquei olhando para ele assim, coagulada.” Como esquecer uma frase dessas?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu pediria para levar mais a sério um trecho do livro Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke, que li naquela época ainda pela primeira vez de muitas, e que diz o seguinte: “O senhor é tão jovem, tem diante de si todo começo, e eu gostaria de lhe pedir da melhor maneira que posso, meu caro, para ter paciência em relação a tudo que não está resolvido em seu coração. Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um belo dia, sem perceber, a viver as respostas.”
Acho que o que mudou é que deixei de pensar na figura da artista como alguém que deve, ou mesmo pode, dar respostas. Eu achava que seria uma boa artista quando conseguisse encontrar a melhor forma estética para responder a questões sociais, filosóficas, políticas… e gastei bastante tempo nisso, fadada à frustração, e recaindo em um tipo de panfletarismo que atualmente considero inócuo. Hoje, feliz e humildemente me contento com a busca (já suficientemente desafiadora) de fazer boas perguntas. De perguntar sem ter em mente uma resposta certa que deseje ouvir. Perguntar honestamente. Perguntar com outros e outras, da maneira que me cabe. Os e as artistas que mais admiro e que mais foram e são fundamentais para mim, são as que me preencheram de boas perguntas, muitas das quais mal consigo formular em palavras. São as boas perguntas o que agora estou buscando.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de romance que está esquematizado, mas que ainda não me sinto pronta para iniciar. Estou, como disse acima, me nutrindo de um bocado de vida, de experiência que falta para cumprir fragmentos que ainda considero fundamentais.
Para responder à segunda pergunta, sobre o livro que ainda não existe e que eu gostaria de ler, trago um verso de Drummond que sempre carrego comigo: “eu preparo uma canção / que faça acordar os homens / e adormecer as crianças.” É esse o poema tão necessário que gostaria de ver escrito em nossos tempos.