Isaac Reis é professor na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Costumo acordar bastante cedo, não importa a hora em que vou dormir. Sou daqueles em quem o cérebro funciona melhor logo depois de acordar. Então, a rotina consiste em tomar uma xícara de café e ler, sempre escrevendo notas e comentários às leituras. Deixo as palavras fluírem ora como brainstorm, ora como exercício de síntese de ideias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não possuo um ritual para escrever. Ao contrário, isso pode acontecer a qualquer momento do dia (na biblioteca, em casa ou em uma fila). Os atuais smartphones possuem aplicativos que facilitam muito essa “escrita difusa”. É possível escrever um ou dois parágrafos em uma sala de espera e depois utilizá-los como ponto de partida para um artigo ou texto acadêmico.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não gosto da ideia de trabalhar com metas diárias, embora reconheça que, para muita gente, esse recurso funciona. De todo modo, às vezes me questiono sobre essa noção de senso comum de que escrever é “colocar ideias no papel”. A escrita muitas vezes me domina, toma posse de mim e leva a caminhos que não tinham sido ainda pensados. Confundem-se produto e produtor. Escrever nos constitui como sujeitos da escrita, e com o texto acadêmico não é diferente. Por isso, a escrita tem muito mais a ver com criação do que com condicionamento. É mais artesania que automação.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é sempre o momento mais difícil. Estar diante de uma folha (ou tela) em branco representa o imenso desafio de ter diante de si todas as possibilidades. Cada frase nova condiciona as demais, reduz os horizontes possíveis. No meu caso, gosto de construir primeiro o texto em forma de esquema, estabelecendo a disposição dos argumentos e dos parágrafos, de modo a ter uma visão do todo. Ou seja, primeiro, vem a estrutura lógico-ideal (= de ideia), depois a escolha do melhor modo de enunciá-la.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É preciso compreender que esses sentimentos não surgem do acaso, nem tampouco são sintomas totalmente individuais. São também produtos de uma concepção epistemológica ainda hegemônica nas universidades, mas que causa sofrimento e dor psíquica na maioria das pessoas, sobretudo nas mais jovens.
Essa concepção epistemológica, cuja marca maior é o solipsismo, postula que o conhecimento é produto de indivíduos, que o produzem ou desenvolvem ideias de modo isolado, entrando para o olimpo dos gênios admirados e invejados, se dão alguma contribuição considerada inovadora e importante, ou sendo condenados ao limbo do esquecimento e do desprestígio, se não o fazem. Essa herança foi bem enunciada por Descartes no Discurso do Método, ao afirmar que não há tanta perfeição em obras produzidas pelas mãos de várias pessoas quanto naquela em que só um trabalhou.
Sobre essa visão foi construída uma concepção de ciência: uma linha evolutiva e progressiva do conhecimento humano, cuja continuidade é alimentada por ideias geniais e descobertas originais.
Pois bem, esse modelo não é apenas ruim existencial e humanamente, como é errado historicamente. O avanço do conhecimento (que nada tem a ver com evolução ou progresso) é feito a partir de trabalho cooperativo, em que cada pesquisa, por mais inovadora que seja, se beneficia muito mais de trabalhos passados (ainda que equivocados) do que contribui em termos de inovação. Ou seja, qualquer um de nós, por mais genial e original que seja, estará sempre em dívida com um empreendimento que é coletivo, historicamente situado, repleto de rupturas e continuidades e, ainda que não se perceba, colaborativo.
No fundo, esse modelo também é injusto, pois institui uma corrida pelo sucesso sem questionar as condições reais em que cada pesquisador se encontra, ou que herdou do seu passado pessoal e acadêmico. Todos são obrigados a cumprir as mesmas metas, sem muitas vezes possuírem condições pessoais ou institucionais para tal. A meritocracia acadêmica irrefletida retroalimenta o solipsismo, gerando injustiça, dor e sofrimento.
Se você muda o foco e percebe o empreendimento científico a partir da noção de comunidade acadêmica, o medo de não ser bom o suficiente, a ansiedade por não conseguir produzir mais do que se pode e a procrastinação que deriva desses sentimentos perdem muito do seu poder opressor. Isso não é fácil de ser feito, dado o contexto em que, de fato, vivemos, mas precisa estar colocado como horizonte possível.
Atualmente, e mesmo sabendo de que esse é um paradigma contra-hegemônico, tenho apostado em atividades e projetos coletivos, em que coaprender e coensinar sejam realidades cotidianas, fundadas em um pluralismo de saberes. Tenho percebido não apenas uma diminuição das frustrações, do medo e da ansiedade, mas sobretudo da melhoria da qualidade dos resultados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um texto nunca está pronto. Um texto é um diálogo de ausências, que se mediatizam em uma escrita. É como se alguém te perguntasse, em um diálogo, se o que você acabou de falar é definitivo, se está pronto. Um texto acadêmico deve ser uma proposta de debate, de crítica e de envolvimento. Como nós, ele nunca está pronto e essa incompletude primordial e inexorável precisa ser apr(e)endida. Não há texto sem contexto, como não há diálogo fora do tempo. Quando era estudante de graduação em Direito, sempre me espantava que nós líamos textos sem saber quando, onde, por quem e em que contexto eles tinham sido escritos.
Como nós, os textos são impuros. E não há modo de torná-los perfeitos, fora do tempo e de nosso contexto. Trabalhos acadêmicos não podem ser produtos de (auto)eugenia intelectual! (risos)
Assim, creio que é importante mostrar os trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los, desde que isso não implique a crença de que eles estarão “prontos” e alheios ao debate depois de publicados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou, como alguns e algumas colegas de minha geração, um neófobo, amedrontado pela tecnologia e suas “artificialidades”. Creio que a internet e os computadores abrem novas dimensões para a pesquisa e para o trabalho acadêmico.
Um exemplo: hoje é possível escrever um texto em tempo real e simultaneamente com um/a pesquisador/a, que está do outro lado do mundo e com quem nunca conversamos pessoalmente! É fabuloso! Por que não expandimos as nossas formas de trabalho até as fronteiras que a tecnologia permite? Onde está esse limite? Na verdade, em nossas cabeças.
Basta olhar a maioria de nossas aulas. Continuamos a cobrar presença física de estudantes e professores em um mundo em que a própria noção de presença já foi relativizada, como escreveu Pierre Lévy.
Ou seja: ainda somos conservadores demais para toda a tecnologia que nós mesmos produzimos.
Por outro lado, a internet tem sido um instrumento para o qual canalizamos a nossa dispersão e ansiedade. Informação demais para tempo de menos. Muita leitura para pouca reflexão; muito falatório para pouco silêncio. Por isso, muitas vezes, é melhor deixar o computador de lado, e trabalhar, como nos velhos tempos, apenas com uma caneta e uma folhinha de papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De onde vêm as ideias… Essa é uma pergunta filosófica tão difícil como importante. Mas do ponto de vista da pesquisa e do fazer acadêmico, acho que as ideias vêm, em primeiro lugar, da capacidade de espanto, isto é, da postura de não “acostumar-se” com a linguagem, os conceitos, as instituições e as relações sociais.
Isso é muito difícil no Direito, pois toda a formação dos bacharéis é pautada pela ideia de absorção passiva e esforço adaptativo. As ideias, os institutos e as instituições são assim retiradas da história e, portanto, naturalizadas.
Então, penso que uma boa dica para se ter boas ideias é desnaturalizar o conhecimento e os panoramas teóricos existentes, readquirindo a capacidade de estranhá-los, pensando que sempre poderiam ter sido de outra forma.
Em segundo lugar, a produção de boas ideias depende inexoravelmente da interação com o contexto do pesquisador. A inserção dos trabalhos naquilo que poderíamos – não sem alguma polêmica filosófica – chamar de realidade, passa a ser um requisito fundamental para a qualidade e o grau de interesse que um trabalho desperta. No mundo inteiro, parece haver cada vez menos espaços para universalismos abstratos, para ideias sem território.
Por fim, pensar por problemas, sejam, como dizia Marx, do estômago ou da fantasia, também parece ser uma técnica interessante para se ter boas ideias. O pensar problemático é um estuário fértil para as ideias de espanto e de contextualização, para produzir aquele momento crucial de qualquer pesquisa: a problematização. Problematizar o óbvio, o banal, o tradicional, o assente e o aceito é uma das mais conhecidas formas de produzir ideias interessantes.
Receita para ter boas ideias e ser criativo?
Enriquecer a experiência, experimentar a diferença, “levar, sempre que possível, os olhos para passear”, reservar tempo para contemplar o mundo, a natureza, as pessoas e as relações sociais, “resetar os olhos”, isto é, tentar pensar e experimentar o mundo fora dos condicionamentos, deleitar-se com (não apenas consumir) arte, desatar as armadilhas disciplinares do saber, ler, viajar, conversar. Parafraseando o Brecht de “O passageiro”, nunca escrever mais rápido do que o que nos permite pensar; pensar no leitor, a quem o texto será dado como presente e pretexto para mais uma conversa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A experiência nos dá mais serenidade, sem dúvida. Considero o doutorado um processo muito menos complicado que o mestrado, não apenas pelo tempo maior mas, sobretudo, por que, como doutorando/a, normalmente já se tem mais experiência, mais reflexão e mais leitura (de livros e de mundo) acumulada.
O meu doutoramento é relativamente recente e ainda não tenho o distanciamento necessário para dar conselhos ao pesquisador que eu fui outrora. Mas, eu diria a ele para conversar ainda mais com outras pessoas, participar de debates, de eventos, de seminários de pesquisa, e equilibrar essas atividades com o tempo na biblioteca ou no escritório, na solidão com os livros e o computador.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vontade de escrever um livro que unifique dissertação e tese, buscando um fio de Ariadne nos 10 anos que as separam entre si. Hoje percebo que apesar do longo intervalo (em que me dediquei à docência e à gestão acadêmica), elas têm muito em comum entre si e que minhas ideias permaneceram fieis a muitos pontos, muitas sem que eu mesmo percebesse. Perceber esses pontos de continuidade e permanência nos próprios escritos ajuda a nos constituir como sujeito de conhecimento.
Que livro eu gostaria de ler que (ainda) não existe? Essa pergunta é impossível de ser respondida. Como se eu pudesse saber de todos os livros que existem! Acho que o maior desafio hoje é podermos de fato ler livros, e não apenas consumi-los, como se fossem discursos sem história, sem contexto, “sem pai nem mãe”. Leio alguns trabalhos acadêmicos e fico com a impressão de que os/as autores/as leram as obras como quem vê um filme em modo fast foward, sem aquela arte que Nietzsche chamava, quanto à leitura, o ruminar.