Isa Rossi é escritora latino-americana.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia colocando água nas plantas da varanda e preparando o pó, para passar o café. Depois disso, eu me oriento pelo lema do samurai Paulo Leminski – “não discuto/ com o destino/ o que pintar/ eu assino”. Mas pra não ficar tão romantizado eu digo: saio sempre, correndo, a trabalhar. Eis a minha rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pelas manhãs, quando o sol começa a nascer, por volta das 6h. Também ao final das noites, quando os ruídos da cidade já são distantes e quase todos na casa já estão entregues ao sono. Sinto que são bons horários para trabalhar com a palavra.
Escrevo em lugares diversos, uso muito o bloco de notas do celular e um conjunto de três cadernetas que carrego comigo. Aí talvez não consiga estabelecer algum ritual para a escrita. Quando estou na minha casa, no entanto, começo a escrever depois que esvazio inteiramente a pequena escrivaninha que tenho no quarto e, ao meu lado, disponho o maço de cigarros e um café forte. Vez ou outra escrevo no metro quadrado da lavanderia, lugar de onde pode-se olhar a cidade. De lá veem-se casas pequenas, como nas vilas do interior, a brotar feito erva-daninha em meio aos prédios prateados da megalópole. As casinhas estão sempre iluminadas. Então, com o café, com os cigarros, ajeito apenas uma cadeira ali e pronto!, pronto!, podemos começar a experimentar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quase sempre escrevo na mesma pulsão do meu caminhar. O que quero dizer com isso? Se num dia eu caminho bastante, provavelmente escreverei muito. Se num dia acabo por passar muitas horas sentada ou parada n’algum canto da cidade, provavelmente o conteúdo será pouco. Mas não há uma regra para isso. Há dias que caminho por duas ou três horas seguidas e consigo apenas anotar uma palavra solitária na folha. E lá deixo a palavra. Sem frustração. Digo isso pois não tenho uma meta diária para a escrita. O exercício da poesia é, para mim, o único lugar da vida no qual não preciso corresponder a uma expectativa. Se algum dia ele se transformar nisso, então já não faz mais sentido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bem, aqui preciso falar de algo muito sério, e que começa com a palhaçaria. Depois que conheci e comecei a trabalhar com a máscara (do palhaço), relaciono o processo da escrita a um estado parecido com a presença que a máscara instaura no nosso corpo, no modo como nos colocamos no espaço em que vivemos. Isso significa que há muita seriedade, repetição e improviso na prática dessas atividades. Essas três coisas de que falo são as que dão chance para que a intuição e espontaneidade guiem um pouco o rumo dos processos. Seja na lavoura da palavra, seja na vida mesmo.
Encontrar esse estado espontâneo não é algo simples. Pois em alguma medida é necessário alimentar a nossa sensibilidade para que ela esteja aguda às demandas do tempo presente. Mas alimentar sem que o sentimento do mundo, aqui assaltando o Drummond, não nos paralise. Não nos adoeça. Então, no processo que vou descobrindo e construindo ao longo do tempo, a estes fazeres é necessária uma entrega por inteiro. Como quando estamos meio que apaixonados, sabe?
Se tenho muitas notas em mãos, dou um urro de alegria. Vou começando numa combinação aleatória dos materiais, colando uns aos outros, vendo que imagens eles trazem à tona. Faço isso porque estou sempre próxima da lata de lixo. E sem piedade eu descarto tudo quando o material fica mirrento ou ensimesmado.
Agora, da pesquisa para a escrita, aí sou uma viajante mesmo. Levo um tempo enorme, tateio quase tudo que me aparece pela frente em torno do tema ou assunto trabalhado. Depois que sinto que estou quase me afogando no acúmulo, eu mesmo lanço a boia salva-vidas e começo a escrever algo. Nesse sentido me esforço para cuidar com zelo daquilo que, num primeiro momento, pode parecer medíocre no processo criativo. Fico extasiada com essas formas que parecem obsoletas, miseráveis e decadentes. Elas me lembram os personagens do filme “Feios, sujos e malvados”, do Ettore Scola. Personagens que na vida real estão sempre entregues às periferias do capital, mas que movimentam sempre um lance de beleza absurdo, muito comunicativo e genuíno na sua existência.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A minha posição diante da literatura é a de uma mulher compromissada com o deboche, com a Voz e com os mundos que podemos imaginar a partir de processos de composição. Como na cenografia. A não ser as poucas vezes que escrevi cartas de amor, ainda não fui tomada pela angústia em corresponder a uma expectativa, seja nas pequenas realizações ou nos projetos a longo prazo. Como eu disse, as cartas de amor, essas sim, me provocam arrepios na sua ausente correspondência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso apenas uma vez dedicando extrema atenção e cuidado ao momento da releitura. Minha primeira leitora é sempre uma grande companheira, a minha mãe.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Estou imersa e entregue à tecnologia, pois quer queira quer não, ela pode ser um instrumento bastante poderoso se bem orientada. Na prática, a tecnologia ajuda muito na compilação de materiais. Mas jamais abandonei as cadernetas para as notas, carrego-as comigo desde os 11 anos de idade. Então, eu escrevo os rascunhos com o material que estiver à frente. Por vezes anoto até na palma das mãos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do caminhar pela cidade (mas sem bancar a Baudelaire, ein?). O caminhar, para mim, está associado à condução dessa vida ordinária mesmo, essa que nos leva ao trabalho pela manhã, a que nos conduz aos nossos erros e as nossas cicatrizes, essa que também faz com que encontremos as pessoas que são, por vezes, encruzilhadas, por outras, relicários. Anoto muito do que vejo no meu caminhar. Nesse sentido, minha cabeça funciona bastante de forma imagética e o ato de escrever necessita do meu corpo se movimentando por aí. Estou em função do meu olhar. Que vagueia tímido e curioso. De outra parte, aí, essa é muito prazerosa mesmo, as ideias vêm das leituras que vou fazendo ao longo dos dias e das conversas que tenho com as pessoas. Sou boa em duas coisas aqui nessa existência: ouvir e ler. As duas me inspiram imensamente a escrever.
Acerca do estado criativo, bem, posso apenas dizer que enquanto a morte não vem, tento sempre me manter VIVA – full time.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu primeiro contato com a escrita foi no lapso da criança (que começa a conhecer uma estrangeira adolescência) em querer expurgar algo que não fazia sentido na vida pacata do interior paulista. Ao mesmo tempo naquele momento de passagem, escrever significava também me inscrever, de alguma forma, na minha própria vida; ter uma sensação corpórea de tudo que se passava ao meu redor, como num diário em que anotamos os acontecimentos do dia-a-dia. Aos treze anos, por doações e achados de rodoviária, algumas importantes leituras chegaram então às minhas mãos: os poetas da geração beat, os contos do Edgar Allan Poe e dois autores latino-americanos, o Júlio Cortázar e o Eduardo Gudiño Kieffer. Foi no contato com a obra desses autores que posso falar de uma inteira transformação na minha relação com a palavra, pois eu compreendi que não se tratava apenas do prazer da escrita, mas de um compromisso com a Linguagem. Um compromisso em manter a Linguagem viva. Bem, e nessa história de manter viva a Linguagem, há uma dimensão política, uma responsabilidade com a vida pública. Responsabilidade com nada menos que seja o movimento de uma vida livre dos necrotérios da mercadoria.
Eu diria para continuar apaixonada e debochada. Não ter medo de escrever sonetos de amor e fuga. Afinal de contas, como escreveu pra nós o Torquato – é sempre um risco.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre que tenho uma ideia eu a anoto numa das minhas cadernetas. São todas ideias muito ordinárias e sem vergonha, já aviso. Só de anotá-las, para mim, elas ganham existência na ordem dos dias, pois em algum momento propício, eu penso, essas danadas serão compartilhadas, maturadas, mortas de uma vez por todas ou terão sua chama aumentada. Então não há projeto, mas muitos começos na minha jornada, cada qual com sua história.
Gostaria muito de ler algo que fosse um trabalho comprometido e apaixonado acerca de meninas que tinham no jogo de futebol um espaço para experimentarem outros modos de brincar e se relacionar, lá pro início do século XX, aqui na América do Sul. Falo do futebol pois é algo de que gosto imensamente e um lugar que pelo qual mulheres e meninas, ainda hoje, tem de fazer um esforço tremendo para serem reconhecidas também como grandes atuantes, passando a bola, marcando na trave, driblando, na malandragem, todos os patrões e bonachões que topamos pelo caminho.