Íris Ladislau é editora e escritora e formanda em Letras/Edição pela UFMG.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes da pandemia, meu horário era muito confuso, por causa das aulas, estágio, reuniões etc. Então eu começava o dia já nessa loucura, saía cedo, frequentemente passava o dia inteiro fora e chegava tarde da noite; era difícil manter uma rotina fixa porque os compromissos variavam muito de horário. Mas, devido à quarentena, isso mudou muito nos últimos meses, tanto que tenho escrito muito mais, seja pelo tempo disponível, seja para conseguir lidar com o caos. Antes eu geralmente só conseguia ter tempo suficiente para escrever nos finais de semana (com exceção de coisas relacionadas a faculdade ou a trabalhos). Mas ultimamente tenho seguido mais ou menos uma rotina matinal, que é lidar com questões domésticas primeiro (faxina, lavar roupa, ir ao supermercado, preparar almoço etc.), dedicar um tempo à leitura e então me voltar totalmente a estudos, trabalho e escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu costumo preferir começar os trabalhos logo após o almoço, pois já terei completado meus afazeres e terei tempo suficiente para escrever e trabalhar. Quando sento para escrever, tenho que estar com a cabeça livre de compromissos para poder me concentrar. E, dependendo do dia, fico horas e horas trabalhando no mesmo arquivo, por isso gosto de começar cedo e ter tempo livre para não precisar interromper o processo criativo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende um pouco da época e do que eu estiver escrevendo, mas eu diria que escrevo mais em períodos concentrados. Se for algo da faculdade ou relativo a trabalho, eu tento escrever pelo menos um pouco todos os dias. Agora, quando se trata de algum livro em que eu esteja trabalhando, eu costumo intercalar períodos concentrados e pausas medianas, para o material respirar e para mudar um pouco a minha cabeça. Geralmente, após essas pausas, volto ao arquivo com outros olhos e outra percepção e isso costuma gerar mudanças e ideias interessantes, além de me fazer enxergar erros que a leitura viciada anterior havia deixado passar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu gosto de escrever gêneros textuais variados, meu processo de escrita varia de acordo com o que eu estiver escrevendo. Contos curtos e crônicas, por exemplo, acabam surgindo ao acaso e, quando isso acontece, tenho que parar absolutamente tudo o que eu estiver fazendo e ir escrever. Se não for possível, preciso no mínimo anotar em algum lugar as ideias principais e, tão logo eu consiga um tempinho, sento e escrevo tudo de uma vez. Se for um conto ou crônica um pouco mais extenso ou se eu sentir que preciso de uma pausa para poder render melhor, volto ao esquema de anotar as ideias principais que tenho para continuar o texto no dia seguinte. Esse tipo de coisa acontece também com poemas avulsos; às vezes, já estou deitada tentando dormir, mas me vem alguma frase ou ideia e tenho que anotar no bloco de notas do celular e continuar na manhã seguinte.
Agora, quando se trata de um livro, já tenho um processo mais focado e autoconsciente, por assim dizer; menos dependente de inspirações aleatórias. Quando é prosa, o mínimo de que preciso para começar é saber como quero terminar a história, ter pelo menos uma noção. Preciso saber para onde quero levar a narrativa e, por meio disso, direcioná-la e desenvolvê-la apropriadamente, ainda que eu possa vir a fazer mudanças bruscas durante o percurso. A partir daí, posso começar a pensar em como dar início; crio também uma linha do tempo com os momentos principais, os quais moverão a narrativa; faço alguns arquivos com a história de vida e personalidade de cada personagem, para conhecê-los e fundamentar suas atitudes, ainda que muito do que estiver nesses arquivos nem vá aparecer na história. Tudo isso em arquivos de Word separados e organizados. Mas, antes e durante todo esse processo, mantenho um arquivo em que vou anotando de um tudo: uma espécie de rascunho meio caótico, já que vou escrevendo tudo à medida que a inspiração vai surgindo, para depois ordenar, já no original do livro.
Quando se trata de livro de poesia, o processo é mais complexo. Geralmente a ideia surge a partir de um poema, do qual já vem o rascunho de uma possível temática. Da mesma forma que faço com prosa, também crio um arquivo meio caótico de anotações, no qual vou salvando ideias, como símbolos que quero usar para construir a alegoria no livro; obras que pretendo ler ou reler, as quais penso que serão boas fontes de inspiração de acordo com o que quero criar; trechos de pesquisas que faço sobre os temas e símbolos que estarão presentes no livro; ideias de temas para poemas etc. Só começo mesmo a editar o original quando já tenho uma ideia mais ou menos sólida do “esqueleto” do livro, por exemplo, se ele será dividido em partes ou não, título, quantidade de poemas etc.
Trabalhos de pesquisa da faculdade já são mais simples, nessa questão. Leio e releio bastante meu objeto de estudo e vou anotando trechos que poderão ser úteis e ideias que vão surgindo durante a leitura. Faço primeiro um rascunho, escrevendo de forma bem livre e descompromissada. Depois passo bastante tempo lapidando o resultado, relendo várias vezes e tentando me aprofundar no material.
Por fim, para ser sincera, para mim é mais difícil terminar do que começar. Sempre fico muito empolgada para começar e só o faço quando sei bem o que quero criar (mesmo que possa haver mudanças no decorrer do processo). Agora, saber quando terminar é bem mais difícil, pois, por mais pronto que o livro pareça, sempre fica a vontade de continuar trabalhando nele, aperfeiçoando os mínimos detalhes. Quando se trata de prosa é mais fácil, o que fica incomodando mais é só a vontade de revisar e tentar eliminar ao máximo os erros (mesmo sabendo que o livro terá que passar por uma revisão profissional, de qualquer forma). Agora, com poesia já é mais complexo, sempre. Mesmo quando já fechei o número de poemas e já revisei várias vezes cada um, ainda fico algumas semanas lendo e relendo o livro, intercalando também com pequenas pausas, para ter certeza de que fiz o melhor que poderia dentro do que havia proposto a mim mesma desde o início. Quando percebo que em todas as últimas leituras minhas mudanças foram mínimas, aí começo a pensar que o livro pode já estar “pronto”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando se trata de crônicas e contos curtos, essas travas não surgem, porque tudo acontece muito rápido e nasce de uma inspiração motivadora. Mas, tirando esses casos, eu tento ter paciência comigo mesma, sabendo que nada feito às pressas gerará um resultado satisfatório. Sou uma pessoa ansiosa, então às vezes surge um conflito realmente angustiante entre a vontade de escrever e essas travas da escrita. Às vezes a própria inspiração acaba sendo um problema, porque vou pensando em mil coisas de uma vez, sem saber em qual me focar. Então, como sempre, recorro ao rascunho, que é o lugar em que posso “jogar” as minhas ideias e deixar para me preocupar com foco e organização depois de dar vazão a essa euforia inicial. Além disso, quando já estou trabalhando em algo específico, procuro entender meu próprio tempo e o tempo da obra. Como eu disse, essas pausas que eu dou entre períodos concentrados de escrita servem para dar o gás necessário para lidar com a procrastinação e outros problemas, além de ser o momento de organizar meus pensamentos para os próximos passos que quero dar na obra. Às vezes, durante essas pausas, nem sequer abro o arquivo, procuro mesmo me distanciar dele. Já o medo de não corresponder às expectativas, quando é um trabalho pessoal, não chega a ser uma grande trava, pois já começo o livro tendo em mente que vou tomar o tempo que for preciso para que ele fique de acordo com o que eu quero. Se por fim eu achar que não dou conta, naquele momento, de alcançar o objetivo que tenho com a obra, eu prefiro engavetá-la por um tempo, enquanto estudo e pesquiso mais, mesmo que leve anos.
Agora, quando se trata de materiais relacionados a pesquisa, faculdade etc., meu processo inteiro é muito mais disciplinado e focado. Então, mesmo com medo e ansiedade, me esforço todos os dias para produzir mesmo que seja o mínimo. Se eu estiver com a escrita muito travada, procuro me dedicar a leituras que irão embasar a pesquisa, de modo a não perder tempo, mas também não me forçar de forma exagerada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Dezenas e dezenas de vezes, principalmente quando se trata de poesia. E nunca parece suficiente. Trabalho como revisora e editora, então acabo sendo ainda mais apegada aos mínimos detalhes, até por isso que é tão difícil sentir que o livro está pronto. Volto ao livro várias vezes, mudo uma vírgula, um ponto, uma letra, faço mudanças revolucionárias, depois desfaço a mudança que tinha feito logo antes; é uma revisão constante, tenho que praticamente me obrigar a parar.
Com exceção das crônicas e contos que posto no meu blog, sempre mostro meus trabalhos a alguns amigos. A Caroline Lima, por exemplo, já tem que lidar com os meus escritos há uns dez anos. Se for livro, mando para dois ou três amigos mesmo enquanto ainda estou trabalhando nele, pois gosto de ter o feedback, saber se minha escrita está gerando as reações e sensações que pretendo gerar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É muito raro eu escrever a mão. Até tenho uma caderneta que serve para anotar ideias súbitas, quando estou longe do PC; embora ultimamente eu esteja usando mais o bloco de notas do celular, então até essa caderneta não é tão usada. Tenho um caderno também em que escrevo trechos de músicas, desenhos, frases, poeminhas avulsos, que provavelmente nunca publicarei. Mas meu trabalho mesmo é todo no PC. Rascunho, originais, coisas do tipo, é tudo no Word.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu sou muito apegada às artes no geral e muito imaginativa, então as ideias podem surgir dos lugares mais variados. Até mesmo uma única palavra pode gerar um poema, conto ou crônica. Mas normalmente a inspiração vem de filmes, quando se trata de prosa, e de música, quando se trata de poesia. Sou realmente muito apegada a cinema e música e, embora ainda prefira a literatura, é o cinema e a música que acabam sendo minhas principais fontes de inspiração. Inclusive, gosto de escrever ouvindo música. As passagens que escrevi totalmente sob influência de alguma canção específica acabaram tendo um resultado mais profundo; percebi isso pelo feedback de amigos meus, que enfatizavam justamente tais passagens. Muitos de meus poemas também são fortemente influenciados por músicas. E eu nem falo das letras em si, mas da melodia, do som, do ritmo. Há alguns poemas, inclusive, os quais assim que eu bato o olho, a canção que os inspirou começa a tocar automaticamente na minha cabeça.
Meu maior hábito para me manter criativa é estar sempre consumindo artes as mais variadas. Embora cinema e música sejam fontes principais, isso não descarta outras fontes. Eu estou sempre lendo dois ou três livros, seja de poesia, literatura, filosofia ou até mesmo técnicos. Livros como O estudo analítico do poema e Na sala de aula, ambos do Antonio Candido, foram grandes motivadores dos meus últimos escritos. Acredito que quem gosta de escrever e tem intenção de se profissionalizar deve ler de tudo, ver filmes variados, consumir obras tanto antigas quanto atuais. Nunca se sabe de onde pode vir a inspiração.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Depois que entrei para a faculdade de Letras, principalmente depois que comecei a pesquisar poesia, meu processo de escrita se tornou muito mais focado e autoconsciente, em vez de ficar à mercê de inspirações espontâneas. Embora esses momentos de “epifania” continuem sendo grandes motivadores, o processo posterior a eles é que é o grande diferencial, pois é a partir dele que irei moldar a minha criação. Antes da faculdade, meu processo de escrita carecia de técnica e foco, e por meio de disciplinas como Teoria da Literatura e oficinas de escrita criativa pude desenvolver melhor esses dois elementos. Aliás, esse lado técnico é algo que tenho trabalhado constantemente.
Eu acho que não diria nada a respeito dos textos em si, penso que é natural que nossas primeiras tentativas de escrever algo mais elaborado sejam insatisfatórias, é uma eterna aprendizagem, tentativa e erro. Mas eu certamente aconselharia a mim mesma a ser mais paciente, dar tempo ao tempo e não me apressar. Quando eu estava ali no início da vida adulta, entre 18 e 20 anos, não parava pra pensar no quanto eu tinha para aprender e que eu tinha tempo e possibilidade de melhorar, então acabava me desesperando à toa, por exemplo, quando acabava estagnada em uma história ou quando ficava insatisfeita com a minha escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu até já comecei, mas deixei estacionado, pois senti que ainda não é o momento: um livro de prosa poética mais introspectivo e reflexivo, tendo como base um amor platônico de uma fotógrafa por uma modelo e que fale sobre a complexidade da sexualidade, sobre desejo e sobre a beleza. Mas ainda preciso ler e estudar muito para conseguir o resultado que almejo.
Ultimamente tenho lido muito poesia contemporânea e gostaria de ver mais conteúdo LGBTQIA+ sendo publicado nesse meio. E quando falo isso, não me refiro necessariamente a poesia de cunho social, mas romântico mesmo. Gostaria de ler mais obras que celebrassem o amor, com todos os seus percalços, fora do já tão explorado relacionamento heterossexual.