Ione Mattos é socióloga e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Somente a rotina de acordar quando a manhã já não é (ou quase).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor à noite e durante a madrugada. Privilégios que alcancei depois de velha e aposentada. Sem rituais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Conhece o ditado: “comer e coçar, basta começar”? Para mim, escrever idem. Começo, fico meio compulsiva, horas a fio, não quero parar. Outras ocasiões, por situações (ou escusas) de vida e de cotidiano, passo dias e dias sem escrever. Uma certa tendência à bipolaridade, quem sabe?
Prazos. Prazos funcionam comigo e essa é mais uma das razões pelas quais gosto de trabalhar frequentando oficinas de produção de texto. Lembro do Henfil, que admitiu imaginar um buldogue correndo atrás para forçá-lo a desenhar, e me imagino correndo atrás dele (do Henfil), com o computador nas mãos. Boa companhia para uma corrida, apesar do cachorro.
Mas um dia ainda espero incorporar o ritual de estabelecer metas e escrever todo dia. Todos falam muito bem desse hábito e, admito, se eu o seguisse, seria mais produtiva.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo muda de acordo com o tipo de texto que estou escrevendo. Para um trabalho acadêmico ou jornalístico (o que não faço mais), partia em geral da coleta de dados e, montado o arcabouço, a escrita acontecia.
Agora, porém, só estou escrevendo ficção – contos e meu primeiro romance – e, neste caso, estou a meio caminho entre o “planejador” – aquele que estrutura o seu texto, criando ‘a priori’ um esboço sequencial de suas partes, cenas ou eventos; e, o “possuído”, aquele que deixa a história ir acontecendo ao sabor da inspiração.
Começo em geral a partir de um tema ou de uma frase temática. Quando uma ideia temática me conquista, personagens e história vão se apresentando e são eles que escolhem em que gênero se enquadram. Aí entra o meu lado cerebral, planejador, em que consigo organizar dados, estruturar relações e conexões, tudo a partir de como a história se oferece para ser desenvolvida. Penso que é o gênero, compreendido como “forma de ação simbólica” tal como conceituado por John Frow (“Genre: the new critical idiom”, Kindle edition), o primeiro elemento que a história e seus personagens determinam. A partir daí, tendo encontrado o que me parece sua melhor forma de ser contada, entro na fase em que a história me possui. Então é escrever e tudo que escrever demanda – incluindo leituras e pesquisa – mas com total liberdade de mudar, fazer e desfazer, cumprir e não cumprir o que foi planejado. Tenho a sensação de que os personagens me usam para se “manifestar” – e eu adoro isso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinar é um verbo que conjuguei por quase toda a minha vida, por isso (acho eu) só aos 68 anos publiquei meu primeiro livro, uma coletânea de contos. Há muitas razões para isto ter acontecido assim, todas excruciantemente válidas, posso assegurar. Mas ainda assim todas comprovando minha dificuldade em priorizar o exercício da escrita. Por isso, embora repetente na matéria, consegui algumas estratégias eficazes para contornar o problema. Participar de oficinas de produção de texto (sou aluna permanente do Instituto Estação das Letras/RJ) é uma delas (os prazos, certo? – o cachorro correndo atrás, Henfil e eu à frente).
O medo de não corresponder às expectativas existe sempre, mas consigo lidar com ele na camaradagem. Face a face, pisco o olho e pergunto: cara sra. Agradorilda Expectante (esse é o nome da minha monstra vontade de agradar), pode me dizer com as expectativas de quem, especificamente, faz sentido eu me preocupar? Nosso diálogo em geral coloca o medo em seus devidos lugares e me ajuda a encontrar a opinião de quem realmente me interessa, sendo a minha própria uma prioridade.
Quanto aos projetos longos, não me causam ansiedade. Sou daquelas que planejou casamento para durar a vida toda, imagina só! No caso de escrever, nem tenho razão para aflição. Primeiro, porque nunca sei a priori se o projeto vai ser longo ou não. Segundo, porque ando curtindo muito o processo em si. Logo, dá para pensar que será prazerosamente suportável, ainda que dure.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso o que escrevo muitas vezes, até que eu mesma esteja satisfeita. Após a conclusão da primeira versão, que chamo “rascunhão”, e antes das revisões técnicas e editoriais, faço pelo menos três a quatro revisões. Além disso, participo de oficinas de produção e mantenho um grupo de leitores críticos especiais – todos queridos o suficiente para eu poder desconsiderar a opinião, se achar por bem, sem que ninguém se ofenda. Esses leitores especiais (como os colegas e o mestre da oficina) leem os textos durante a criação, de modo que o número de revisões em processo é significativo. Esta forma de trabalhar, com leitura crítica durante a fase de escrita, é desaconselhada por muitos escritores. Até agora, por meus próprios critérios, tem sido bem interessante, motivador e produtivo. Mas preciso estar preparada para ouvir as opiniões, considerá-las sem me ofender pessoalmente, mantendo minha liberdade de aceitar ou não o que me é proposto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrever à mão? Máquina de escrever? Nem pensar. Só escrevo no computador. Adoro a tecnologia, para escrever e para ler. Quem sempre viaja comigo, atualmente, é meu leitor digital – 3G, leio e baixo novos livros onde estiver, sem precisar de wi-fi. Isso é mágica para quem esperava meses por um livro importado na época da faculdade. Quando conseguia!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de quaisquer coisas que me provoquem em termos de conexões temáticas. Imagens, cheiros, sons, palavras, paladares, lembranças, emoções, sensações, objetos, frases, poesias, pessoas, acontecimentos, notícias, citações, todas as formas de arte e etc, etc, e muitos etceteras. Se algo me sugere um tema eu saio mentalmente atrás da história. Na verdade, essa é uma estratégia humana; quero dizer, do cérebro humano: dar significado criando narrativas. Todos nós fazemos isso. Mas nem todo mundo está interessado em escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mudança mais radical foi de postura. Meus primeiros textos eram mais subjetivos, fechados, herméticos – ou, como opinou um dos meus filhos, muito “cabecinha”. Certa vez, fazendo uma oficina com Sérgio Sant’Anna, ouvi dele sobre um conto meu a seguinte pergunta: ─ Você não queria dizer nada? E não foi para desmerecer o texto. Não. Mas também não era a minha intenção. Eu queria dizer alguma coisa, sim. E comecei a me trabalhar para alcançar o leitor, para que fosse entendida, para que meu texto não fosse “cabecinha” e chegasse ao leitor médio como uma experiência de troca de ideias prazerosa e enriquecedora. A pergunta de Sérgio Sant’Anna – eu a faria a mim mesma se voltasse atrás.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer, no momento, é o romance que estou escrevendo. Estou “possuída” por ele, prazerosamente envolvida com o enredo, com os personagens, com as reviravoltas que me colocam lendo, pesquisando, criando.
Há muitos livros que eu gostaria de ler que, se não existem, estão sendo gerados. Tenho contato com muita gente que está criando literatura, expressando suas ideias, ocupando seu lugar de fala, encontrando sua voz. Sobre outros eu fico sabendo e quero conhecer o que estão produzindo, fico esperando essa produção. Para dar um exemplo a partir de depoimento aqui mesmo no “como eu escrevo”: minha colega Márcia Cristina Silva, respondendo a este mesmo questionário, revelou estar escrevendo um romance. Ainda não existe, mas já quero ler.