Ingrid Cyfer é professora de Teoria Política da Universidade Federal de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim. A rotina da manhã é indispensável para a organização de todo o meu dia. Acordo em torno de 8h, tomo café lendo jornal, checo e-mails e vou para a ginástica a pé ouvindo música. Gosto muito de começar o dia assim. Fico bem-humorada e mais disposta física e mentalmente. Às vezes dá preguiça, começo a inventar desculpas para ficar em casa, mas sempre que isso acontece, me arrependo. Para mim, o exercício físico funciona como uma descarga de ansiedade. Além disso, me dá oportunidade de encontrar regularmente pessoas que, embora me conheçam há certo tempo, sabem pouco ou nada sobre minha profissão. Isso me ajuda a me descolar da persona intelectual. Por incrível que pareça, quanto mais consigo me liberar dessa personagem, mais me engajo no trabalho. Provavelmente porque ao não deixar o trabalho se apossar de toda a minha identidade, eu consiga diminuir o medo do fracasso e, assim, ficar mais à vontade e relaxada para trabalhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu “expediente” começa em torno das 14h, depois do almoço e do cafezinho. Eu procuro reservar um ou dois dias da semana para trabalhar na biblioteca. Ali, estudo sem internet e com o celular no silencioso. Algumas pessoas ficam enlouquecidas porque não conseguem falar comigo nesse período, mas eu acho absolutamente indispensável garantir isolamento de corpo, mente e alma pra estudar e escrever. Não abro mão disso.
Nos dias em que fico em casa, começo a trabalhar mais ou menos no mesmo horário, mas, se não estiver muito inspirada, meu ritmo cai. Levanto bastante para tomar água, fazer café, abro e-mail; enfim, adoto as mais clássicas e eficazes estratégias de procrastinação. Mas eu acho esse dia em casa importante também para resolver pendências da pesquisa e do trabalho em geral que exigem conexão com a internet. Os outros dias são dedicados à docência, reuniões, grupos de estudos e o que mais aparecer.
Sobre ritual para escrever, talvez meu hábito mais constante seja o de tornar meu ambiente de trabalho o mais agradável possível. Quando estou em casa, gosto de ligar um difusor aromatizante e uma música instrumental, geralmente um jazz bem suave. Na biblioteca, eu procuro as mesas dos cantos e janelas, pois acho esses espaços recolhidos mais aconchegantes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever todo dia é praticamente impossível na carreira acadêmica no Brasil. Mas isso tem, acho eu, um aspecto positivo e outro negativo.
O negativo vem do tempo roubado pelas obrigações administrativas, muitas das quais me parecem não ter nenhum sentido prático. Logo que passei no concurso, levei um baita susto com a monstruosidade do aparato burocrático da universidade pública brasileira. Mas com os anos fui percebendo que me revoltar contra da burocracia é ainda mais inútil do que ela própria e, assim, fui conseguindo aos poucos confiná-la em um espaço limitado do meu tempo (e da minha mente). Mas ainda hoje esse processo de resignação é instável. Volta e meia me flagro bufando e esbravejando contra o excesso de reuniões longuíssimas e de papeladas e procedimentos de utilidade duvidosa.
O aspecto positivo de não poder escrever todo dia é que acho que desviar da pesquisa para me dedicar a outras atividades tipicamente acadêmicas pode ser proveitoso, inclusive para a pesquisa. Quando estava no doutorado, e tinha possibilidade e até obrigação de escrever todo dia, eu me sentia isolada demais, sentia falta de encontrar pessoas, trocar ideias. Agora, como professora, tenho várias oportunidades para isso.
A docência é uma delas. Sempre gostei da sala de aula. A minha experiência como professora começou com dezoito anos, quando dava aulas de inglês em empresas no Rio de Janeiro. Embora o contexto dessa experiência fosse bem diferente das aulas em uma universidade pública, acho que me ajudou a perceber desde cedo o quanto a sala de aula pode ser intelectualmente estimulante.
Além disso, os grupos de pesquisa e estudos são preciosos para mim. É ali que me sinto mais livre para me arriscar a pensar alto, a expor em público uma ideia embrionária, e é onde posso ouvir as impressões e questões que o texto desperta em outras pessoas, e que eu jamais poderia antecipar. Esses são para mim os espaços de troca acadêmica por excelência. Desde o mestrado, acho que minhas experiências intelectuais mais ricas, produtivas e, devo dizer, mais felizes, foram em grupos de estudo e pesquisa.
Finalmente, há aquelas atividades como bancas, pareceres, eventos e congressos que, apesar de muitas vezes serem também gratificantes, competem mais com o tempo da escrita, ao menos para mim. Isso porque sua demanda é mais caótica, é mais difícil ter controle sobre ela. As aulas e os grupos de pesquisa são planejados no início do semestre, têm dias fixos, os textos são previamente selecionados. Mas os pareceres, os eventos e bancas brotam do chão quando você menos espera.
A escrita, portanto, precisa se encaixar no meio dessas atividades. Embora seja celebrada como a principal e talvez a mais nobre atividade da carreira acadêmica, é preciso levantar trincheiras contra o excesso de demandas para lhe garantir o espaço que merece. De qualquer modo, tenho bastante claro para mim que se não consigo encontrar tempo para escrever, a responsabilidade por isso é minha mesmo. Afinal, nós temos bastante autonomia para definir nossa agenda. O problema é que a autonomia tem seu preço. Além de muita disciplina, exige que se aprenda a definir prioridades e a dizer não a projetos e convites (quase) irrecusáveis.
Eu aprendi isso na marra. Depois de uma fase muita intensa em que queria fazer absolutamente tudo, comecei a me dar conta de que na tentativa de abraçar o mundo acabei ficando ansiosa, frustrada e fisicamente esgotada. Por isso, decidi recentemente limitar os projetos nos quais me envolvo. Para mim, o trabalho acadêmico é artesanal, além de dedicação e esforço, demanda uma cabeça criativa. E cabeça criativa é cabeça descansada. Por isso, ao contrário de muita gente, acho que escrever não combina com pressão. É claro que às vezes o prazo está estourando e você simplesmente senta e escreve. O trabalho sai. Mas dificilmente os trabalhos que produzo assim se tornam os meus preferidos. Por mais que reconheça que às vezes trabalhar sob pressão seja inevitável e até mesmo eficiente, eu procuro fugir dessas situações sempre que posso. Minha estratégia para isso é investir na regularidade. Por isso valorizo tanto meus momentos semanais na biblioteca.
Sobre metas de escrita, eu não estabeleço nenhuma, simplesmente porque não adianta. Posso escrever dez páginas em um dia e travar em outros dois. Parece que a escrita tem seu próprio ritmo, no qual não consigo intervir muito. Isso não significa, evidentemente, que surja do nada. É da leitura regular e cuidadosa que nasce aquele misterioso momento em que o texto parece andar com as próprias pernas. Por isso, minhas metas são de leitura, e não de escrita, e procuro ser razoavelmente rígida no seu cumprimento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu invisto bastante tempo nas leituras mais centrais à pesquisa. Leio, ficho e faço resenhas que me ajudam a reconstruir os argumentos do texto e a esboçar minhas primeiras impressões sem ainda ter o compromisso de articulá-las ao problema teórico do meu artigo.
Antes de começar o meu próprio texto, faço um esquema para ter uma ideia de como estruturar os argumentos e encaixo as resenhas ou parte delas nos tópicos. Eu começo a trabalhar no artigo a partir daí. No entanto, na sua versão final dificilmente sobra alguma coisa das resenhas e da estrutura inicial. Ainda assim, essa fase para mim é fundamental, pois me ajuda a driblar a “síndrome da tela em branco”. Depois disso, o processo costuma ir de forma mais fluida. Vão surgindo travas no meio do caminho, é claro, mas quando o argumento já está mais amadurecido, a escrita costuma se desenvolver bem. Quando isso acontece, posso ficar muitas horas escrevendo sem parar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca escrevi um texto sem tropeçar em algum momento. Por isso, acho que é melhor aprender a lidar com as travas do que passar a vida lutando contra elas. O que tem me ajudado bastante de uns tempos pra cá é evitar moralizar a procrastinação. Dificilmente consigo sair desse estado quando estou me acusando de preguiçosa e irresponsável. Bem mais eficaz do que isso tem sido procurar identificar o porquê do bloqueio. Geralmente, minhas travas vêm da ansiedade por não me sentir capaz de cumprir um prazo ou da falta de clareza dos meus argumentos. Quando travo por medo do prazo, fracionar as tarefas e distribuí-las em cronogramas mais fáceis de cumprir funciona muito bem para mim. Já quando o bloqueio vem do fato de minhas ideias estarem ainda muito confusas, eu desenho um esquema mais detalhado do argumento ou releio algum texto que possa me ajudar a ir adiante. Outro recurso ao qual às vezes recorro é fazer uma gravação no celular como se estivesse explicando minha ideia para outra pessoa. Sim, é um pouco maluco mesmo. (risos) Quando estava no doutorado, ouvi alguém dizer que mudar o modo de expressão da ideia pode ajudar a desbloquear. Por isso, às vezes, ao invés de ficar insistindo na escrita, eu mudo pra fala. Quando nem isso funciona, aí é sinal de que o problema não é a dificuldade de formular o argumento, mas sim o fato de a ideia estar capenga mesmo. Nesses casos, o melhor é voltar pra leitura.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Milhões de vezes. Tenho uma dificuldade absurda de me desapegar do texto. Eu mostro para outras pessoas e reviso várias vezes. Ainda assim, eu tenho mania de, logo depois de enviar o artigo, abrir o arquivo novamente para dar mais uma olhadinha. O duro é que sempre encontro vários erros que não consegui enxergar cinco minutos antes. Por isso, o ideal pra mim é terminar com bastante antecedência e deixar o texto descansando por alguns dias. Só assim consigo me distanciar do artigo suficientemente para identificar seus erros. O problema é que nem sempre dá tempo de fazer isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço os esquemas e fichamentos à mão, já as resenhas e artigos, eu escrevo diretamente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Geralmente surgem da minha própria leitura, de debates em congressos, seminários e das discussões nos grupos de estudo e pesquisa. Estes últimos, aliás, têm sido para mim uma verdadeira fábrica de ideias. Como estão consolidados há alguns anos, já puderam acumular muitas leituras e reflexões mais amadurecidas. Em um ambiente como esse, a discussão de um novo texto equivale a jogar gasolina na fogueira. Os debates pegam fogo e a cabeça também.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Se pudesse dar um conselho para a Ingrid doutoranda, eu diria: vá se aconselhar com a Ingrid mestranda. O processo de escrita do meu mestrado foi tranquilo e prazeroso. Essa foi a fase em que me mantive mais fiel a essa rotina que descrevi anteriormente: começar o dia com exercício físico e depois passar o resto do dia na biblioteca para cumprir um dado cronograma de leitura. Na verdade, foi no mestrado em que essa rotina surgiu espontaneamente. Nessa época, eu participava também de um grupo de estudos sobre a Hannah Arendt, que complementava na medida certa a introspecção da escrita, me estimulando a pensar alto e em conjunto sobre a obra arendtiana. Esse grupo reunia pessoas muito queridas e apaixonadas pelo que estavam fazendo. Até hoje guardo recordações especiais desses encontros.
No doutorado, eu enfiei na minha cabeça que precisava produzir mais rapidamente. Testei vários métodos diferentes de estudo, pedia conselhos para me inspirar. Eu persisti nisso quando passei no concurso para professora, afinal, a partir de então, parecia ser ainda mais urgente aprender a acelerar o processo de escrita.
Depois de muito estresse e ansiedade gerados por essas tentativas de reinventar a roda, eu resolvi recentemente voltar ao meu esquema do mestrado. É claro que hoje as múltiplas atividades da carreira acadêmica me impedem de reproduzir fielmente a rotina daqueles tempos. Ainda assim, percebi que selecionando e restringindo as atividades que estão sob meu controle, posso recuperar, ao menos em parte, aquele modo de trabalhar. É isso que tenho tentado fazer nos últimos dois anos. Estou ainda muito longe de alcançar o equilíbrio que desejo, mas aos poucos estou me aproximando dele.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dois projetos de médio prazo. Um deles é cavar espaço na agenda para fazer um curso de formação em psicanálise. Na minha pesquisa, a relação entre ação política, vulnerabilidade e reconhecimento me colocam cada vez mais na interseção entre teoria crítica e psicanálise. Há alguns anos, venho trabalhando nisso em um grupo de pesquisa do CEBRAP e, desde então, tenho estado completamente fascinada pelo campo. É claro que dá para avançar na pesquisa sem me especializar em psicanálise, mas como acho essa área muito interessante, não me seria nenhum sacrifício (muito pelo contrário) fazer esse investimento.
Outro projeto que também está no meu horizonte é a introdução da literatura na minha pesquisa. As relações entre self e narrativa na teoria crítica contemporânea, que estão no meu radar desde o doutorado, me colocaram mais recentemente em contato com uma bibliografia que discute o self em abordagens ético-políticas e psicanalíticas no contexto da literatura. Não vejo a hora de começar a explorar esse caminho também.
Quanto ao livro que gostaria de ler e que ainda não existe, eu tenho dificuldade até de imaginar, pois acho quase impossível fantasiar sobre o que outra pessoa poderia escrever. Mas, se for para soltar a imaginação e pensar em livros que eu mesma gostaria de escrever, aí me vêm varias coisas à cabeça. Nenhuma delas acadêmica. (risos)
Um livro de literatura está entre elas. Sempre que estou muito envolvida na leitura de um romance, me dá vontade de resgatar uma relação mais lúdica e livre com a escrita, de me permitir escrever um livro sem nota de rodapé… Mas o livro inexistente com que mais sonho não é exatamente um livro, mas sim um songbook, escrito em parceria com meu filho, Thiago.
Há pouco mais de três anos, ousei escrever algumas letras de música pela primeira vez, e meu filho começou a musicá-las. Isso foi uma coisa que nunca imaginei fazer. Apareceu de um jeito totalmente inesperado quando estava fazendo pós-doutorado nos Estados Unidos. Não entendo bem o motivo. Desconfio que seja porque, no deslocamento da vida no exterior, eu tenha me sentido mais livre para me arriscar nesse terreno desconhecido.
Eu não sei direito o que acho das letras e, por isso, morro de vergonha de mostrá-las para as pessoas. Apesar disso, cultivo esse desejo secreto (agora já nem tanto) de escrever esse songbook com meu filho algum dia, nem que seja apenas para musicar os fins de semana aqui em casa.